1 de novembro de 2010

Entrevista com Nei Lopes

Publicado na Revista Confraria #25










Escritor, pesquisador, compositor, cantor e ativista. Além do interesse pela cultura afro-brasileira, que é evidente, qual outro enredo toca o seu samba? O que harmoniza essa polifonia?

Meus interesses não constituem uma polifonia. É um delicioso ensopado, tudo combinando, se entrosando: África, samba, subúrbio carioca, macumba, jazz, rumba, quiabo, quimbundo, maxixe, quicongo... Quando começa a esquentar a mufa, a gente senta no boteco (hoje, aqui no próprio Lote) e fala um montão de bobagens, amplificadas por uma cerveja em copo fino e alto, com três dedos de espuma branquinha, daquela de fazer bigode.

Dentre os seus livros publicados constam um dicionário e uma enciclopédia. Onde você enquadraria o valor literário dessas obras? Ou nelas a literatura só cabe no espaço de um verbete?

O conceito de “literatura” abrange também as obras científicas, como é o caso dos meus dicionários, um multidisciplinar (a Enciclopédia), outro etimológico (o Banto), outro específico sobre Literatura Afro-brasileira e um sobre Antiguidade Africana, que está no prelo da Ed. Civilização/Record. No fundo, é tudo na área das Ciências Sociais, porque até o nosso Dicionário Literário Afro-brasileiro tem por objetivo o combate ao racismo. Mas, péra aí! Eu já publiquei contos e poemas. E tenho no prelo (Ed. Língua Geral e Agir) dois romances. Então, eu sou um escritor, sim. Mais do que alguns imortais da ABL. Me respeitem, rapazes!

Receber o prêmio TIM ou ser homenageado por uma escola deixa o seu samba mais bamba?

Negócio de prêmio tem sempre uma sacanagem no meio. Inclusive tem um amigo meu que diz que o Grammy Latino é a Medalha Pedro Ernesto (que eu já ganhei) da música pop. Maldade dele! E tem mais: minha música não é “bamba”, pois não bambeia. Ela é firme e forte.

Já que não achamos no Google Maps, você poderia descrever a geografia do samba na cidade do Rio de Janeiro?

Aquele mesmo amigo diz que essa geografia, hoje em dia, começa na Lapa e termina na casa do Moacyr Luz. Mas isso é uma safadeza, pois a Lapa tem revelado grandes sambistas, e meu parceiro Moa é um artista de respeito. O caso é que vocês não procuraram direito. Tem um livro, parece que do Luiz Fernando Viana e de mais um outro jornalista, que traça essa linha direitinho, inclusive com fotos espetaculares. Agora, traçar um mapa, mesmo, é complicado. Porque, no Rio, em cada esquina tem um samba bom sendo feito. Dos redutos tradicionais até os moderninhos. Só que esses, hoje, eu só conheço mesmo de ouvir falar.

O samba ligou o subúrbio à Zona Sul antes mesmo que o metrô. Se o samba dependesse do metrô, você acha que somente agora a classe média carioca permitiria que ele chegasse ao Cantagalo?

O que ligou, mesmo, a Zona sul – onde eu enquadro a Barra, que não tem nada de Zona Oeste – ao subúrbio (a direção certa é esta: de lá pra cá) foi o Norte-Shopping.

Aliás, existe intelligentsia na Zona Norte?

É... tem uma vanguarda intelectual nas paradas. Confraria, lonas culturais, Marco Palito, o cinema em Guadalupe. Mas ninguém pode deixar a TV Globo descobrir. Senão, vira minissérie.

Com o “choque de ordem”, a revitalização dos blocos de rua depende da revitalização dos banheiros públicos?

Pra mim, a vitalidade do carnaval de rua se prova principalmente por sua espontaneidade. Mas no meu tempo as chamadas “necessidades fisiológicas” não eram satisfeitas tão à vontade como hoje. A gente sempre procurava um cantinho, um terreno baldio, uma obra. Mesmo porque banheiro público, quando havia, como na Praça Tiradentes, era sempre arriscado pra quem não gosta muito de certas intimidades, como nós aqui em casa. Hoje, como o carnaval já não me interessa mais, penso nos banheiros públicos como uma coisa do ano todo, como era antigamente. Não é o caso de revitalizar, e sim de projetar e fazer de novo. O que talvez seja preciso fazer também com o próprio carnaval; e com a educação e a civilidade da rapaziada.

O que significa cultura popular num mundo globalizado? Ou a cultura popular é somente uma ilusão global?

Quando ouço falar em cultura, eu puxo logo o meu McLuhan, calibre 32. No mundo de hoje, cultura de massa, mesmo, que todo mundo engole, é o popular biscoito Globo. Que, bem a propósito, é farinha, água e sal; e desmancha todinho na boca.

O terreiro de samba é o único lugar onde a democracia racial deu certo no Brasil?

O terreiro, onde o Neguinho gostou da filha da Madame, acabou há muito tempo. Hoje é “quadra”, item de mercado. E, no mercado, já viu, né? Vale tudo.

Se o Michael Jackson pleiteasse uma vaga na universidade pública brasileira, você acha que ele seria cotista?

Michael Jackson é mais chegado a um colégio Sacré Coeur. Mas ele poderia ser um cotista, sim. Li hoje que o Governo brasileiro já tem um “Plano Nacional de Promoção da Cidadania de Direitos Humanos” da turma LGBT.

Fosse a vida um samba, que instrumento seria o céu?

O bandolim. Na Bíblia não tem a “escada de Jacob”? Pois é... Aliás, Jacob tem um choro chamado Partido-alto. E o pessoal não gosta quando eu digo que o choro é o samba instrumental.

E, afinal, como você avalia a poesia feita na Finlândia nos últimos 50 anos?

Na verdade, embora alguns neguem – tá? –, a poesia da Finlândia existe e opera, tá? Ela está presente hoje – tá? – no hinário de 98% das igrejas pentecostais que, tipo assim, à razão de 7 por semana – tá? –, são fundadas, hoje, na hinterlândia carioca, percebe? Na verdade, é uma poesia, tipo assim, pra cima, tá? Hiperjovem, megapop, tudo de bom.