18 de março de 2014

Enquanto alguém voraz me observa

Por Sérgio Tavares.

Todo mundo deveria ler Juan José Arreola para entender a literatura fantástica, principalmente porque não era o gênero que ele escrevia




Numa noite de 37, os confrades Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Simone Ocampo parolavam sobre literatura fantástica. De maneira despretensiosa, quase recreativa, anotavam num caderninho seus contos prediletos no gênero, lançando mão de um critério validado unicamente pelo cruzamento do gosto pessoal. Pouco a pouco, a lista adquiria corpo com uma estamparia de passagens vistas independentemente e breves narrativas de nomes como Lewis Carroll, Franz Kafka, James Joyce, Guy de Maupassant e H. G. Wells. Casares assim explica a escalação:


“Analisada sob um critério histórico ou geográfico, (a escolha) pareceria algo irregular. Não buscamos ou rechaçamos os nomes célebres. Era uma lista composta simplesmente pela reunião de textos da literatura fantástica que nos pareciam os melhores.”

Três anos depois, numa aposta editorial, a tal lista do caderninho tornou-se o sumário da mais representativa seleta de contos da literatura fantástica de todos os tempos; para os mais devotos ao gênero, a “bíblia”. O êxito foi tamanho que, em 65, a antologia ganhou uma reedição acrescida de textos de Julio Cortázar, Carlos Peralta e Elena Garro, entre outros. Essa versão foi lançada por aqui, no final do ano passado, num projeto luxuoso da Cosac Naify. Algo para se ter na prateleira e congratular-se todas as quartas-feiras por isso.

Ocorre que, como na maioria das listas, o relevo da ausência é mais sensível que o da presença. Casares, na introdução da versão original, não se presta a justificar a exclusão de autores do naipe de Ambrose Bierce e E. T. Hoffman, alegando, na linha seguinte, falta de espaço para abrigar demais nomes.

E quanto a Juan José Arreola?

Na metade dos anos 60, o escritor mexicano era uma figura no proscênio do palco cultural latino-americano, mantenedor da revista Mester e da coletânea Los presentes, para a qual teve em mãos os primeiros contos de Cortázar e nada menos que o original de Pedro Páramo, além de já ter publicado o soberbo Confabulário. A que decisão, portanto, cabe a sua ausência: a deliberada ou a optativa?

Voltando à introdução da antologia de 40, Casares elenca algumas características para que um conto (e daí por diante) possa ser classificado como fantástico: 1) Explica-se pela ação de um ser ou de um feito sobrenatural, 2) Tem explicação fantástica, mas não sobrenatural, 3) Explica-se pela intervenção de um ser ou de um feito sobrenatural, mas insinua também a possibilidade de uma explicação natural. Esforço-me a acreditar que a resposta esteja aí. Embora sua prosa contenha lampejos do verniz fantástico, o eixo temático dos seus escritos não apreende nenhuma das naturezas supracitadas. Arreola escreve sobre os planos e os seres reais, sobre o que há de mágico na massa plástica que adesiva a realidade. Tome-se, como exemplo, o volume Bestiário.

Como é notório, há alguns bestiários rondando pelas estepes literárias. Entretanto, ao contrário dos unicórnios, das sereias, do Spider-master, do Bahamut, dos centauros, das ninfas, do Collete, das mancúspias e do Wülkh, habitados em Cortázar (Bestiário), Borges (O livro dos seres imaginários) e Flanders (Bestiaire Fantastique), as bestas de Arreola são potenciais atrações de um zoológico municipal. Não há qualquer manifestação de sobrenaturalidade no rinoceronte, no elefante, na girafa ou no urso. O que se vê são descrições luminosas de animais reais, que demonstram uma disposição incansável para o exame mais íntimo e agudo dos traços singulares. Assim é o sapo:


“Salta, vez por outra, apenas para demonstrar sua estática fundamental. O salto possui a aparência do palpitar: bem observado, o sapo é todo coração.

Sob uma camada de lodo frio, submerge no inverno como uma pobre crisálida. Desperta na primavera, consciente de que nenhuma metamorfose se operou nele. É mais sapo do que nunca, em sua profunda dessecação. Aguarda em silêncio as primeiras chuvas.

E pesado de umidade, encharcado de seiva rancorosa, um belo dia emerge da terra mole, como um coração arremessado ao solo. E em sua atitude de esfinge há um secreto desejo de permuta: a fealdade do sapo nos sugere uma obsessiva qualidade de espelho.”

Mas quem é Juan José Arreola, de fato?

Numa frase: um autor imprescindível do século 20.

O caso é que Arreola não é apenas um autor, é um estilo. Mestre da carpintaria do conto curto, um artesão dotado de uma prosa que pede contínua frequentação, após o início de sua primeira e assombrosa leitura. Nascido em 1918, em Jalisco, México, Arreola nunca superou o ensino primário, aprendendo a ler “de ouvido” (convenço-me que seja lenda). Ainda adolescente foi trabalhar como encadernador, de onde extraiu a economia necessária para ir viver na Cidade do México, ingressando na Escola Teatral de Bellas Artes, em 37. Lá integrou o grupo de teatro Poesia en voz alta, de onde recolheu entusiasmo para fundar as publicações Cuadernos y libros del unicornio, Mester, Los presentes e Pan, esta última em parceria com ninguém menos que Juan Rulfo.

Em 41, publicou seu primeiro texto, Sueño de navidad. Quatro anos depois, ganhou uma bolsa para estudar em Paris, cujo distanciamento serviu de catalisador para seu estilo único de escrita, solidado em Varia invención, de 49, uma colagem de prosa e poesia. Com esse debute, conquistou o Prêmio Fundación Rockefeller. Em 52, sua obra-cervical Confabulário recebeu a premiação Jalisco de Literatura, seguida do Prêmio do Festival Dramático do Instituto Nacional de Bellas Artes e o Prêmio Xavier Villaurrutia. Há um episódio que combina jocosidade e prestígio nesse período. Arreola viajou a Cuba a convite de Gabriel Garcia Márquez que, ao apresentá-lo a Fidel Castro, disse: “Quero que conheça Juan José Arreola, o escritor que mais gosto, depois de mim”.

Dando dois saltos temporais em sua biografia, em 58, o escritor mexicano publicou Bestiário e, em 63, sua primeira novela, La feria, uma sobreposição de vinhetas, lembranças, relatos e piadas acerca da imaginária cidade de Zaplotán, localizada em Jalisco, que muito lembra o condado de Yoknapatawphe, inventado por Faulkner, onde jaz o tronco familiar dos Compson. Todavia, a decisão mais acertada de Arreola foi ter reunido seus breves volumes, de 41 a 61, num tomo chamado de Confabulário total (ou Confabulario definitivo).

Esse é, sem dúvida, o zênite de sua criação. Composta pelos capítulos Confabulário, Vária invenção, A hora de todos, Bestiário e Prosódia (confira, ao fim do artigo, dois textos dessa coleção), a obra é uma mescla de vários gêneros literários: o relato, o ensaio e a poesia, cujas influências vão de Kafka a Borges, de Baudelaire aos pensadores gregos. Arreola transforma a língua numa criação coletiva de um único indivíduo. Um mosaico conformado por apontamentos aforísticos, radiação poética, exercícios de ensaios e clímax súbito da narrativa romanesca.

Borges, certa vez, declarou que todos os escritores fazem apenas um livro na vida. Confabulário total é a prova concreta disso. Um universo incomparável, com contornos severamente polidos que, sob o respirar da leitura, parecem adquirir musicalidade. Para a citação que introduz o livro, Arreola pinçou um verso do compatriota poeta modernista Carlos Pellicer: “... mudo contemplo enquanto alguém voraz me observa”. A iminência de algo insaciável talvez explique a obsessão do escritor em encontrar a página perfeita. Mudos (e maravilhados), contemplamos Arreola.


O encontro

Dois pontos que se atraem não têm por que seguir forçosamente uma linha reta. Sem dúvida, é o caminho mais curto. Há, no entanto, os que preferem o infinito.
As pessoas caem umas nos braços das outras sem delinear a aventura. Quando muito, avançam num ziguezague. Mas, uma vez no rumo certo, corrigem o desvio e se juntam. Amor tão repentino representa um choque, e aqueles que assim se defrontarem são devolvidos ao ponto de partida como por efeito de um disparo. Projetados violentamente, sua trajetória de retorno os incrusta novamente, canhão adentro, num cartucho sem pólvora.
Vez por outra, um par se afasta desta regra invariável. Seu propósito é francamente linear, não carece de retidão prévia. Misteriosamente, escolhem o labirinto. Não podem viver separados. Esta é a única certeza que os possui, e terminam perdendo-a ao se procurarem. Quando um deles erra e marca o encontro, o outro finge não perceber e passa sem cumprimentar.


Liberdade

Acabo de proclamar a independência dos meus atos. À cerimônia compareceram apenas alguns desejos insatisfeitos, duas ou três atitudes condenáveis. Um propósito nobilitante, que prometera aparecer, enviou à última hora sua escusa humilde. A cena transcorreu num silêncio pavoroso. Creio que o erro esteve na proclamação ruidosa: trombetas e sinos, foguetes e tambores. E, para culminar, uma engenhosa queima de moral pirotécnica, que não chegou a arder de todo. No final das contas, achei-me sozinho comigo mesmo. Despojado de todos os atributos de caudilho, os confins da noite me encontraram empenhado na simples tarefa de escritório. Com os últimos restos de heroísmo, atirei-me à penosa incumbência de redigir os artigos de uma extensa constituição, que amanhã submeterei à assembleia-geral. O trabalho divertiu-me um pouco, apagando do meu espírito a triste impressão do fracasso. Leves e insidiosos pensamentos de rebeldia voam como mariposas noturnas em volta da lâmpada, enquanto sobre os escombros de minha prosa jurídica passa, de quando em vez, um tênue sopro da marselhesa.