18 de setembro de 2014

Seleção de poemas de Manuel de Freitas


Manuel de Freitas nasceu em Santarém, Portugal, em 1972. Publica seu primeiro livro, Todos contentes e eu também, em 2000, dando início a uma série de numerosas e regulares publicações. Além de poeta, é ensaísta, com publicações sobre a poesia de Al Berto e Herberto Helder. Em 2002 lançou a antologia Poetas sem qualidades, que une alguns dos poetas portugueses da nova geração. Atualmente é um dos responsáveis pela editora Averno, uma das casas de edição que tem feito um trabalho importante de publicação de poesia contemporânea portuguesa. A editora é responsável ainda pelas revistas Telhado de Vidro e Cão Celeste. Aos que forem a Lisboa, recomendo a visita à Livraria Paralelo W (rua dos Correeiros, 60, 1o esq.), dedicada exclusivamente à poesia e gerenciada pelos poetas da Averno.
Os poemas abaixo foram retirados da antologia A última porta, organizada por José Miguel Silva, e da antologia brasileira organizada por Luis Maffei e publicada pela Oficina Raquel, em 2007.


"O estilo sóbrio e prosaico de Manuel de Freitas, isento de torceduras sintácticas e pouco dado à ornamentação retórica, o seu desapego por quaisquer enleios abstractos ou parafilosóficos, a preferência por um léxico corrente e assuntos comuns - nada nesta poesia, que aspira a uma espécie de comunicação directa com o leitor, justifica a necessidade de aclarações." José Miguel Silva, posfácio da antologia A última porta (Assírio & Alvim, 2010)


Errata

Onde se lê Deus deve ler-se morte.
Onde se lê poesia deve ler-se nada.
Onde se lê literatura deve ler-se o quê?
Onde se lê eu deve ler-se morte.

Onde se lê amor deve ler-se Inês.
Onde se lê gato deve ler-se Barnabé.
Onde se lê amizade deve ler-se amizade.

Onde se lê taberna deve ler-se salvação.
Onde se lê taberna deve ler-se perdição.
Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui.

Onde se lê Manuel de Freitas deve ser
com certeza um sítio muito triste.


Duas vezes nada

É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.

Constatamos o pior,  os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alccolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos  os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
(Não temos, ao que parece, serventia.)

Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.

Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:

não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas,
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.


The heart of saturday night

Noites. Demasiadas noites,
sobre um cinzeiro repleto
onde os nomes dos amigos que
não tinhas deixaram de caber.

E, no entanto, parecia tão fácil.
O acaso de uma boleia
que te pusesse à mercê de um charro
e das piores companhias.
Quase gostavas do abandono
que cerzia solidão e solidão,
entre esses que bebiam
por cima de escuros degraus,
parados num arco como nunca viste.

Desceste, voltas a descer com eles,
para a mesma áspera certeza.
Nomes que naufragavam,
evocações inúteis. A casa
que mais querias foi sempre essa:
o esquecimento.


Retrato de poeta desconhecida (I)

Abordou-me em frente à
Brasileira, na fria tarde
de Janeiro. Hesitante,
segurava uma mochila preta.
Pensei que ia pedir uns trocos,
cigarros, respostas inúteis
a um inquérito de passagem.

Enganei-me. Afinal, estamos
todos demasiado habituados
a dizer que não. Queria apenas
saber se eu gostava de prosa
- ou de poesia. Se gostasse,
tinha um livro para me mostrar, dela,
que vendia com dedicatória e tudo.

Embaraçado, não quis ver
- e caiu-me redondo o sorriso,
ao perceber-lhe no rosto o desânimo.
A culpa, essa, chegou pouco depois.

Nunca saberei se falava
com a melhor ou a pior
poeta da minha geração.
Mesmo em frente à Brasileira,
sob o frio irrespirável de Janeiro.


Love me tender

Estou cansado de pessoas.
Contudo, sentado ao balcão
e sua garrida mini-saia, Daisy
insiste em chorar sobre a quinta imperial.

Ainda bem que neste bar
não são admitidos pessoanos
(seria concorrência desleal,
convenhamos). E contudo Daisy
chora, esconde o rosto em lenços
de papel expressamente concebidos
para atenuar o desamor
e precaver a melancolia atípica.

Daisy chora, chora - e eu,
que nem disso sou capaz,
prometo a mim mesmo
deixar de sair à noite e começar
a escrever poesia metafísica.