10 de abril de 2014

Duas cartas de amor: Fragmentos do diário de Frida Kahlo




O diário de Frida Kahlo, além de ser o relato de um dos ícones da arte do século XX, é o autorretrato de uma mulher intensamente apaixonada e tragicamente atingida em seu corpo por um acidente. Entre cartas, imagens e rabiscos, o conjunto de seus escritos é um impressionante caderno de artista, onde a irreverente Frida também incluiu esboços de suas obras. Frida iniciou o diário em 1940, aos 36 anos, e nunca imaginou que um dia seria publicado. Seguem-se dois fragmentos de suas cartas à Diego, palavras, imagens, rabiscos, cores, confissões, que revelam o que foi para ela um amor onipresente.

*

Diego.

Verdade é que, muito muito, eu não queria, nem falar, nem dormir nem ouvir, nem querer.
Sentir-me fechada, sem medo de teu sangue, sem tempo nem magia, dentro de teu mesmo medo, e dentro de tua grande angústia, e na mesma batida de teu coração. Toda esta loucura, se tu pedisses, eu sei que seria, para teu silêncio, só turvação.
Peço-te violência, na irracionalidade e tu me agradeces, tua luz e teu calor. Pintar-te eu queria, mas não há cores, por havê-las tantas, em minha compreensão, a forma concreta de meu grande amor.

F.

Cada momento, ele é meu menino, meu menino nascido, cada instantinho diário, de mim mesma.


*

Meu Diego:
Espelho da noite.
Teus olhos espadas verdes dentro de minha carne. Ondas entre nossas mãos.
Tudo tu no espaço pleno de sons – na sombra e na luz. Tu te chamarás AUTOCROMO o que capta a cor. Eu CROMÓFORO – a que dá a cor. Tu és todas as combinações dos números, a vida.
Meu desejo é entender a linha a forma a sombra o movimento. Tu preenches e eu recebo. Tua palavra percorre todo o espaço e chega em minhas células que são meus astros e vai para as tuas que são minha luz.


Era sede de muitos anos retida em nosso corpo. Palavras encadeadas que não pudemos dizer a não ser nos lábios do sonho. Tudo rodeava o milagre vegetal da paisagem de teu corpo. Sobre tua forma, ao meu tato, responderam as pestanas das flores, os rumores dos rios. Todas as frutas no sumo de teus lábios, o sangue da granada, o que se oculta no sapoti e a integridade do abacaxi. Apertei você contra meu peito e o prodígio de tua forma penetrou em todo meu sangue pela gema de meus dedos. Olor à essência de carvalho, à lembrança de nogueira, a verde alento de freixo. Horizontes e paisagens = que percorri com o beijo. Um esquecimento de palavras formará o idioma exato para entender a mirada de nossos olhos fechados.      
= Estás presente, intangível e és todo o universo que formo no espaço de meu quarto. Tua ausência brota tremulando no ruído do relógio, no pulsar da luz; respiras através do espelho. Daí até minhas mãos, percorro todo teu corpo, e estou contigo um minuto e estou comigo um momento. E meu sangue é o milagre que vai pelas veias do ar de meu coração ao teu.
1 A MULHER
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 #O HOMEM   ############.
O milagre vegetal da paisagem de meu corpo é em ti a natureza inteira. Eu percorro-a em voo que acaricia com meus dedos os montes redondos, minhas mãos os sombrios vales em ânsias de possessão e me cobre o abraço das ramas suaves, verdes e frescas. Penetro a secura da terra inteira, me abrasa seu calor e em meu corpo todo roça a frescura das folhas tenras. Seu orvalho é seu dom de amante sempre novo. Não é amor, nem ternura, nem carinho, é a vida inteira, a minha que encontrei ao vê-la em tuas mãos, em tua boca e em teu peito. Tenho em minha boca o sabor amêndoa de teus lábios. Nossos mundos nunca se distanciaram. Só um monte conhece as entranhas de outro monte.
Por instantes flutua tua presença como envolvendo todo meu ser em uma espera ansiosa de manhã. Neste momento pleno ainda de sensações, tenho minhas mãos fundidas em laranjais, e meu corpo sente-se rodeado por teus braços.
                                                                                                                 *                   

Tradução: Jussara Salazar

Fonte: O diário de Frida Kahlo, ed. José Olympio, 1995

Foto: Frida Kahlo aos 39 anos, em Nova York, captada pelo fotógrafo americano de origem húngara Nicholas Muray (1892-1965), seu amante, como foram Trotski e Tina Modotti.