19 de junho de 2014

Inédito de Afonso Henriques Neto, do livro A outra morte de Alberto Caeiro

 Golden Fish in the foreshortenings - Oleg Korolev
                     


NOITE DO POEMA

uma arraia de ouro se acende
em noturno mar fosforescente,
quente bafio de um dicionário abafado.
pois por tudo
é treva trancada, breu sem remédio.
arraia a arrastar o poema no escuro lodoso,
quando a noite crava no peixe
fósforo apagado, caligem a roer o maravilhoso.
então aguardar o sol para entrever o poema.
de permeio
não lhe conceder nenhum alimento, somente o esteio
da escuridão natural, o silêncio do segredo.
às vezes leva tempo, às vezes o tempo inteiro,
velha tinta presa em velhíssimo tinteiro.
o bicho se arremete por todos os lados,
mas o verso não sai, a chuva não cai,
semente seca entre rochedos.
e aqui ficamos a imaginar a festa,
a explosão da manhã
que tarda, que talvez arda em cimos de impossível,
esperança vã.
é preciso tamanha paciência que o poeta é sem palavras.
de raiva escrever a esmo no centro da sombra,
mas o que resta é sempre engasgo que não presta.
o poema arraia de ouro ainda é tanta noite
que bocejamos, exaustos.
quem sabe tudo amanheça em casamento sumarento e súbito,
poema a se cumprir em sua força animal.
porém se nada alvoreça
sonhar que um sonho se esqueça
ausência em som abissal.

Afonso Henriques Neto é autor de 11 livros de poesia, o primeiro publicado em 1972 ("O misterioso ladrão de Tenerife", em co-autoria com Eudoro Augusto). Participou intensamente da geração que construiu a chamada poesia marginal na década de 1970 e integrou várias antologias no Brasil e no exterior, entre elas "26 poetas hoje", organizada por Heloísa Buarque de Hollanda.