6 de setembro de 2014

Pequena Cartografia da Prosa Brasileira Contemporânea por Marcelo Ariel : Amélia Loureiro



MENINÍNIMA

Ao nascer disse C’EST PLUS TARD.

Agora eu só quero dizer daquilo que não compreendo. Quero ver se posso ficar inteira fazendo isto: escrever. Se isto pode me ajudar a atravessar a superfície comum. Se posso misturar isto ao meu corpo que dança e continuar sentindo a alegria delicada desse delírio cheio de luz. Se escrever me fizer notar a dor no maxilar agora que rio depois de toda a vida séria.

Se for capaz de me fazer aceitar todo o poder do tremor, se escondido não vier o nauseante que já existe. Sim, o que sempre se adianta sou eu, este texto escrito pelo mundo. Mas este tremor! Como é diferente e divertida a dança impressa no meu corpo por este relâmpago. Trovão, pode me rasgar, mostre a sua luz e o seu som ao meu medo! Medo, pode se mostrar inteiro agora que eu te olho. Nunca cantei e nunca ouvi o que me vem agora.

Se eu puder ouvir é o projeto da escrita. Se escrever me ajudar a permanecer no presente por meses sem fim... Estar com o presente e não com a literatura. 

Nasci, grita o corpo. Se escrever me ajudar a esperar a chegada das entidades inéditas de dentro deste corpo...no corpo com o corpo....do corpo....

Se a escrita me tirar de dentro do meu quarto 2x2, e me fizer dobrar sobre mim para ouvir o som do sangue dentro da abóboda do corpo. E se não me fizer desejar um outro momento igual, penso que o tempo da escrita pode me salvar.

Se eu permanecer apenas olhando o que sai pela mão do meu corpo, a escrita não me permitindo pensar, as lágrimas poderão vir e trazer o muito além da palavra e levar.

Um terremoto está acontecendo dentro de mim ao chorar com pleno gosto, humilhando-me no recurso da escrita. Agora este gozo por ter o meu corpo de volta. A sua música. (Quanta surdez!) Mas meu corpo não fica comigo continuamente. O Belo Estranho.

E a escrita me faz aceitar que seja apenas agora. Não sei por quanto tempo Esta Presença, os ditames. A marca, minha desconfiança. Ainda esta lua-de-mel aterradora. A escrita prolongando tudo. Alarme! Não sei o quanto posso suportar da realidade do meu corpo junto a mim!

Prece: que eu me abra à minha própria presença. Exigência: liberdade para meu corpo, civilização. (Eu te dei o nome, você se esquece.) Corpo sem lar. Corpo-lar. Meu corpo não é uma palavra.  E se a escrita pode me mostrar este momento e expandir a experiência, isto é tudo.

Letras e sonoridades, uma trama embrionária, um urdir esgarçante é a minha vida. De ponta cabeça na escuridão da linguagem. Procuro o tom para dar início ao canto. Não sei o que faz o fio ficar esticado, vou querer observar. (Sempre bambo, coração rimando com mão, o medo de repetir e ainda assim repetir.) Esperar é o fio esticado?

Se a escrita puder ser para mim um lugar onde por minhas mãos enquanto aguardo, e se junto não vier o nauseante que já existe e me faz sofrer ânsias de tédio. Se a escrita puder ser um cipó sobre abismos, um fundo fofo e falso me convidando a soltar meus braços e pernas de uma vez. A escuridão fofa bem funda explodindo em sumos e painas de volumes desconhecidos, e talvez de tão fundo um céu se abra. E mais um e outro céu: céus e céus com abismos se abrindo!

O tempo necessário para escrever as palavras é vivido por mim como se estivesse desenhando cada letra. A cobiça exaspera-se no tempo da engrenagem motora, e não posso garantir se conseguirei atravessar o universo mecânico. O medo de não poder me apoderar de tudo que já me pertence parece adiar aparições.

_Não vou a esse aniversário de um ano. Sei que a criança perceberá a minha opacidade. Você vive comigo e não percebe, e não perceberão as pessoas que lá estiverem, os amigos. Mas a criança verá a minha radiação sem fulgor. Por isto, somente, eu não vou.

Agora estou aqui cheia de ideias, sem lugar para mais nada, MENINÍNIMA. Anoto este nome na agenda vazia do ano passado.  


Amélia Loureiro

Comentário: Amélia Loureiro nasceu em Patos de Minas e reside em São Paulo, seus contos dialogam com o trabalho de Maura Lopes Cançado, no deslocamento da interioridade capaz de criar camadas de significado profundamente conectadas com a interioridade do mundo.