17 de julho de 2014

Les saisons de passage, de Andrée Chedid


A sensibilidade de Andrée Chedid
Fragmento de Les saisons de passage

Tradução de Carla M. C. Renard*

Descobri Andrée Chedid por acaso. Fã de seu neto, famoso músico francês, percebi que algumas de suas letras eram poéticas e pesquisei quem as tinha escrito. Era Andrée. Poeta, escritora e dramaturga de origem sírio-libanesa, nascida no Egito e cidadã francesa (1920-2011), que possuía mais de 40 publicações entre romances, novelas, peças teatrais e letras de música, além de adaptações ao cinema. Suas obras haviam sido traduzidas em aproximadamente 15 idiomas e ela recebeu, ao longo de sua carreira, cerca de 20 prêmios, dentre eles o Goncourt de Novela em 1979 e o de Poesia em 2002. O Goncourt é, nada menos, do que o principal prêmio literário francês, concedido desde 1903. Ainda, em sua homenagem, a associação Le printemps des poètes criou em 2009 o ‘Concours Andrée Chedid du poème chanté’ (Concurso Andrée Chedid do poema cantado), que ocorre anualmente desde então.
Curiosa, comprei alguns de seus livros. Apaixonei-me por L’Autre e embarquei no enredo, que prioriza a alteridade. A sensibilidade com a qual ela trata, de maneira indireta, questões relacionadas à guerra e à efemeridade da vida, no conjunto de sua obra, tocou-me profundamente e, de certa forma, preencheu um vazio interior. Não apenas pelo conteúdo, mas também pela forma. Sua escrita rítmica, desenvolvida por meio de um vocabulário rico, me dava fome de leitura.
Para minha surpresa, nenhum dos livros de Andrée tinha sido traduzido para o português. Há alguns anos, interessada em compartilhar a descoberta com o grupo de escrita criativa do qual participava, traduzi um pequeno trecho do romance que lia: Les saisons de passage. A obra é uma linda homenagem à sua mãe. E o trecho, cujo original disponibilizo abaixo seguido da tradução, mostra algumas das características dessa grande autora contemporânea. Convido-os a conhecê-la e a, assim como eu – quem sabe –, devorar suas obras.


Referência: Chedid, Andrée. Les saisons de passage. Paris: Flammarion, 1996.


Original
Vieillesse

Ma mère. Je ne peux me détacher de ton dernier visage. De cette peau trop fine, plissée, adhérant à tes pommettes. Cette peau rayée, filetée, désormais tienne après un commun et si long parcours.
Je ne peux oublier ton frais visage de jadis, réduit à présent à ses linéaments. Je remarque tes fossettes défaites, ton bel ovale ravagé. Tes yeux d'un bleu déterminé, traversés d'éclairs, sont devenus cette matière vague et grisâtre, noyés dans leur cécité. Transpercés, par à-coups, d'éclats surgis de sursauts intérieurs-— que tu provoques et sollicites —, ils s'anémient très vite, se résorbent dans tes pénombres, répondent de moins en moins à tes appels.
Je me glisse en toi, comme un poisson. Je m'incorpore à ton corps. Je m'engloutis dans cette mare stagnante de la vieillesse, dans ses pièges refermés. Je perds, avec toi, ce fil qui relie à l'écheveau de l'existence. J'accomplis en toi cette descente vers l'antre, le nid ? Ou bien le gouffre, qui nous aspire irrémédiablement.
A quatre-vingt-seize ans, tu n'as plus l'âge des rémissions, des résurrections, des espérances. A quatre-vingt-seize ans, il n'y a pas, il n'y a plus de lutte possible, de combat, ni d'avenir !
Tout doit te paraître brumeux, lointain. Tu voudrais saisir les choses, les êtres, l'instant ; tu n'en as plus le pouvoir, ni Ia force. Alors tu joins les lèvres pour un baiser qui te raccorderait, encore une fois, à un visage aimé, ou simplement à un visage qui passe ; un visage qui répondrait à ce baiser de tes lèvres fripées. Un visage qui t'offrirait une expression de tendresse ; même de brève compassion, tu t'en contenterais ! Un visage qui dissiperait, pour quelques secondes, ce temps qui t'a vaincue, cernée, te laissant orpheline de toi-même comme un enfant abandonné face à l'indescriptible, à l'inconnu.
Je suis toi, je suis moi. Telle que je deviendrai si ma vie se prolonge ; soumise à ce temps qui nous traque, déposant ses stigmates sur Ia surface et les recoins de notre chair.
            Tu restes belle cependant. Par moments ta peau est translucide, ton œil s'éveille, ton sourire se propage. Comme en ce dimanche, veille de ta mort.


Tradução
Velhice

Minha mãe. Não posso me desprender de suas últimas expressões faciais. Da pele muito fina, enrugada, aderindo às maçãs do rosto. A pele riscada, marcada, de hoje em diante sua, após um comum e tão longo percurso.
Não posso esquecer seu rosto vigoroso de outrora, reduzido agora a contornos. Percebo as covinhas vencidas, o belo formato oval devastado. Seus olhos, de um azul determinado, atravessados por feixes sombrios, tornaram-se essa matéria vaga e acinzentada, afogados em sua cegueira; transpassados, de maneira descontínua, por feixes luminosos vindos de tremores internos – que você provoca e solicita –, eles se debilitam muito rapidamente, fundem-se em suas névoas, respondem cada vez menos aos seus chamados.
Eu me deslizo em você, como um peixe. Incorporo-me ao seu corpo. Desapareço nessa poça estagnada da velhice, em suas armadilhas obstruídas. Perco, com você, o fio que se conecta à meada da existência. Realizo, por você, a descida em direção ao antro, o ninho? Ou mesmo ao abismo, que nos aspira irremediavelmente.
Aos noventa e seis anos, você não está mais na idade de compaixões, ressurreições, esperanças. Aos noventa e seis anos, não há, não há mais luta possível, nem combate, nem futuro.
Tudo deve parecer confuso, distante. Você gostaria de compreender as coisas, os seres, o instante; você não tem mais o poder, nem a força. Une então os lábios para um beijo que te faria lembrar, uma vez mais, de um rosto amado ou, simplesmente, de um rosto de passagem; um rosto que responderia ao beijo dos seus lábios enrugados; um rosto que te ofereceria uma expressão de carinho, ou de singela compaixão, contentar-te-ia! Um rosto que dissiparia, por alguns segundos, o tempo que te venceu, encarcerada, deixando-te órfã de ti mesma, como uma criança abandonada diante do indescritível, do desconhecido.
Eu sou você, eu sou eu. Como me tornaria se minha vida se prolongasse, submissa ao tempo que nos persegue, deixando estigmas na superfície e em todos os cantos de nossa carne.
Mas você continua bela. Em alguns momentos sua pele é translúcida, seu olhar desperta, seu sorriso se propaga. Como neste domingo, véspera de sua morte.



* Tradutora e jornalista, mestranda em Letras (Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês) na Universidade de São Paulo, onde desenvolve a pesquisa de tradução comentada da obra L’enfant multiple, de Andrée Chedid.