28 de agosto de 2014

O primeiro blogueiro (ou o escritor como passaporte)

Duas obras experimentais mostram que, aos cem anos, o argentino Julio Cortázar vivia no futuro




Grandes escritores são aqueles que conformam lugares tão pitorescos em suas tonalidades territoriais que se derramam para além da fronteira da ficção, vestindo uma geografia real, sem encanto. É o caso da assombrada Antares, de Érico Veríssimo; da furtiva Santa Maria, de Juan Carlos Onetti; e da remota Macondo, de Gabriel Garcia Márquez.
Já escritores fabulosos são aqueles que abastecem a realidade com elementos fantásticos capazes de transformar as camadas cotidianas em andaimes ficcionais. É o caso da literatura do argentino Julio Cortázar, um escritor fabuloso.
Nascido em Bruxelas, há cem anos completados ontem (26.8.14), porém migrado para Buenos Aires, aos quatro anos, onde se estabeleceu até o exílio em Paris nos anos 50, sempre utilizou o fantástico como argamassa para sua ficção. Seu debute literário ocorreu na década de 40, com a publicação de ‘Casa tomada’, nos Anales de Buenos Aires, periódico secretariado por Jorge Luis Borges. O conto foi o ponto de partida para o lançamento da coletânea considerada seminal para sua obra, ‘Bestiário’, de 1951.
Cinco anos depois, a publicação do volume ‘As armas secretas’, seu terceiro livro, ganharia projeção mundial através da adaptação do conto ‘As babas do diabo’ para o cinema, pelas lentes de Michelangelo Antonioni, em ‘Blow up’. Em 1962, já como tradutor da Unesco, lançou o magnífico ‘Histórias de cronópios e de famas’, um trabalho de sete anos que leva as intervenções do fantástico sobre a realidade a um estágio pleno, criando um universo de manuais insólitos, percepções mundanas e seres inimagináveis e encantadores.
No ano seguinte, quando parecia que sua ficção convergia para outro estilo, Cortázar rompeu com os esteios da literatura, descobrindo uma obra composta pela desconstrução da estrutura narrativa e da significação das palavras. ‘O jogo da amarelinha’ foi eleito, pelos críticos, um dos livros mais influentes da literatura hispano-americana, ao lado de ‘Cem anos de solidão’, do supracitado Garcia Márquez de Macondo. Numa alusão à brincadeira infantil, a obra permite uma leitura tanto linear quanto aleatória, pulando capítulos e, assim, cambiando o sentido da história.
Todavia, arriscando-me a um ninho de controvérsias, mais adiante estariam as duas maiores experimentações literárias de Cortázar. Lançados por aqui com 40 anos de atraso, ‘A volta ao dia em 80 mundos’ e ‘Último round’, ambos divididos em dois tomos, são elogios a incoerência. Um sortimento de relatos que se apresenta em contos curtos, poemas, ensaios sobre literatura, reflexões e crônicas diversas. ‘Último round’, por sinal, é uma espécie de crônica estendida sobre a última luta de um velho e alquebrado pugilista, embrulhada em reminiscências e modulações de jazz.
As observações cortázianas, embora concisas, não têm qualquer preocupação em denotar clareza ou sentido, são impulsos literários, onde o escritor expõe seu ponto de vista, furtivamente, sobre temas dos mais variados. No texto ‘Mais sobre gatos e filósofos’, em ‘A volta ao mundo...’, ele se vangloria: “que sorte excepcional, ser um sul-americano e especialmente um argentino que não se sente obrigado a escrever a sério, a ser a sério, a sentar-se em frente à maquina com os sapatos engraxados e uma sepulcral noção da gravidade-do-instante”.
Em ‘A volta ao mundo...’, a propósito, a liberdade em brincar com a linguagem, salpicar as reflexões, mesmo as críticas, com humor e nonsense, traz ao livro uma alma dadaísta (movimento artístico que defendia o absurdo, a incoerência, a desordem). Intitulada numa referência óbvia a obra-prima de Júlio Verne, a quem o escritor atribui seu mergulho no absurdo, a obra é uma viagem pelos muitos mundos que é a imaginação, orientada por pinturas, gravuras e fotos. Um prenúncio do que se formataria, algumas décadas depois, como um blogue.
É preciso atentar, porém, que nenhum dos livros é recomendado para aqueles que querem descobrir a ficção cortáziana. Neste caso, o mais indicado é ‘Histórias de cronópios e de famas’, uma coleção de divertimentos que é o melhor ingresso para o universo inventivo deste fabuloso escritor. Já entendê-lo é outra questão. Ao adentrar o território de Cortázar, é impossível sair incólume desta viagem.
“Um cronópio pequenininho procurava a chave da porta da rua na mesa-de-cabeceira, a mesa-de-cabeceira no quarto de dormir, o quarto de dormir na casa, a casa na rua. Por aqui parava o cronópio, pois para sair à rua precisava da chave da porta”.
Ou nunca mais sair.