10 de novembro de 2014

Fragmentos inéditos de "O piano à imagem do deserto", de Marcos Ramos





[Imagem de Sunil Padwal]


1.

Ouvida da escadaria, a música aponta um caminho inviolável. A supressão do tempo, da responsabilidade, do juízo, da infância. Balanço os braços regendo a graça. Entre quatro paredes, na cadeira gelada, é gelada a nuca apesar da febre. O peito acusa a pulsação, o olho o esplendor. Alcanço algumas páginas quase muito anêmicas. É escasso o corpo, permanece o alumbramento. Ceguei-me para entrever estas linhas. Um dia eu era desejo, um dia eu era torvelinho.

Como quem recua depois de experimentar a água gelada, escrevo à margem. O equilíbrio e a harmonia já não são urgências. Me libero, sentada no sofá, olho o corpo conscientemente e me libero. O poeta escreve uma carta audaz, severa. O recado do mundo nas palavras do poeta não tem tema. O recado é uma colisão. A faca, o que reluz na faca se estende, um sol. O corte nos altera. Um fio de sangue escorre do estômago do poeta, tece na camisa branca aos poucos uma mesa de jantar. Escura. Tardia. A família não tem fome. A irmã anoréxica, o pai vigilante, a mãe todos os dias agride com afeto responsável, ébrio de responsabilidade, Eros infértil.

O indivíduo vai no rumo da faca. A palavra lâmina ainda não é moradia. O poeta vai no rumo da faca. Urina. Um movimento comprometeria a pele. A insistência não alivia, mas é uma sobrevida. Abro os braços, deito sobre a ponta do metal que me sustenta. O tecido não cede, o osso não cede. O indivíduo vai no rumo da faca porque não encontra outra solidez. O corpo simultaneamente pressiona o tórax, a nuca. Um desvio seria fatal. Comprimo a pedra. A pedra lamenta um poema como quem pariu um punhado de sal.


2.

Esperava um ônibus e imaginava o velho, a origem de uma gagueira que ele não podia evitar. Imaginava o dia em que os movimentos começavam a desrespeitar uma vontade intacta. Imaginei um osso vacilar. O fêmur violar o tédio. Depois imaginei dois velhos. E apesar do que soa lamentação, imaginei a potência resguardada nos corpos cansados de vida. Desejei o rigor estampado na escolha dos quadros das antigas casas. Desejei o rigor do cimento. Hoje, um lugar permanece amanhecido, o dia toma a água de assalto, o mar engole a pedra que resiste. Recomeçarei a cantar a praia, meditar o grão da memória, espiar o átimo, sacrificar a permanência.

Um acontecimento precisa de um instante. Um personagem poderá sobreviver sem voz? Uma voz poderá a sobreviver sem boca? Escrever é uma tal pobreza que tudo mais além de um trapo aniquila qualquer possibilidade de tocar o que é mais oblíquo. A dor que dói a escrita é oblíqua. Há algo na escrita que aos poucos se insinua no despreparo e de repente rompe o que há de mais tênue em cada singularidade. O nome é uma antiga palavra e fura como espada posta sobre o sinal da cruz.


3.

Depois de setenta anos, a tensão de sustentar certa euforia se dissipa, a vontade sozinha não seduz. Vivia desconfiada da escuridão se exaltar, do solstício erguer-se melancolia, da multiplicação solilóquio. O cortejo durante os anos, durante o corpo, tornou-me inseparável do que trepida. Depois de setenta anos, precisaria iniciar o movimento com antecedência ou retirariam o meu corpo de cena. Os parentes se afastavam. O gosto amadureceria ainda na boca, se instalaria um amargo no ventre da velha de agora. Os parentes se alternariam. Os que tivessem pouca sorte exercitariam o desafeto, a possibilidade de testemunhar o gesto que aos poucos se apaga.






Marcos Ramos nasceu em 1988, em Vitória (ES). É formado em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo. O piano à imagem do deserto — seu primeiro romance — será lançado em breve. O autor estreou com o poema longo Um corpo que se escreve Pedra (2011).