1.
Ouvida da
escadaria, a música aponta um caminho inviolável. A supressão do tempo, da
responsabilidade, do juízo, da infância. Balanço os braços regendo a graça. Entre
quatro paredes, na cadeira gelada, é gelada a nuca apesar da febre. O peito acusa
a pulsação, o olho o esplendor. Alcanço algumas páginas quase muito anêmicas. É
escasso o corpo, permanece o alumbramento. Ceguei-me para entrever estas
linhas. Um dia eu era desejo, um dia eu era torvelinho.
Como quem recua
depois de experimentar a água gelada, escrevo à margem. O equilíbrio e a
harmonia já não são urgências. Me libero, sentada no sofá, olho o corpo
conscientemente e me libero. O poeta escreve uma carta audaz, severa. O recado
do mundo nas palavras do poeta não tem tema. O recado é uma colisão. A faca, o
que reluz na faca se estende, um sol. O corte nos altera. Um fio de sangue
escorre do estômago do poeta, tece na camisa branca aos poucos uma mesa de
jantar. Escura. Tardia. A família não tem fome. A irmã anoréxica, o pai
vigilante, a mãe todos os dias agride com afeto responsável, ébrio de
responsabilidade, Eros infértil.
O indivíduo vai
no rumo da faca. A palavra lâmina ainda não é moradia. O poeta vai no rumo da
faca. Urina. Um movimento comprometeria a pele. A insistência não alivia, mas é
uma sobrevida. Abro os braços, deito sobre a ponta do metal que me sustenta. O tecido
não cede, o osso não cede. O indivíduo vai no rumo da faca porque não encontra
outra solidez. O corpo simultaneamente pressiona o tórax, a nuca. Um desvio
seria fatal. Comprimo a pedra. A pedra lamenta um poema como quem pariu um
punhado de sal.
2.
Esperava um
ônibus e imaginava o velho, a origem de uma gagueira que ele não podia evitar. Imaginava
o dia em que os movimentos começavam a desrespeitar uma vontade intacta. Imaginei
um osso vacilar. O fêmur violar o tédio. Depois imaginei dois velhos. E apesar
do que soa lamentação, imaginei a potência resguardada nos corpos cansados de
vida. Desejei o rigor estampado na escolha dos quadros das antigas casas. Desejei
o rigor do cimento. Hoje, um lugar permanece amanhecido, o dia toma a água de
assalto, o mar engole a pedra que resiste. Recomeçarei a cantar a praia,
meditar o grão da memória, espiar o átimo, sacrificar a permanência.
Um acontecimento
precisa de um instante. Um personagem poderá sobreviver sem voz? Uma voz poderá
a sobreviver sem boca? Escrever é uma tal pobreza que tudo mais além de um
trapo aniquila qualquer possibilidade de tocar o que é mais oblíquo. A dor que
dói a escrita é oblíqua. Há algo na escrita que aos poucos se insinua no
despreparo e de repente rompe o que há de mais tênue em cada singularidade. O nome
é uma antiga palavra e fura como espada posta sobre o sinal da cruz.
3.
Depois de
setenta anos, a tensão de sustentar certa euforia se dissipa, a vontade sozinha
não seduz. Vivia desconfiada da escuridão se exaltar, do solstício erguer-se
melancolia, da multiplicação solilóquio. O cortejo durante os anos, durante o
corpo, tornou-me inseparável do que trepida. Depois de setenta anos, precisaria
iniciar o movimento com antecedência ou retirariam o meu corpo de cena. Os parentes
se afastavam. O gosto amadureceria ainda na boca, se instalaria um amargo no
ventre da velha de agora. Os parentes se alternariam. Os que tivessem pouca
sorte exercitariam o desafeto, a possibilidade de testemunhar o gesto que aos
poucos se apaga.
Marcos Ramos
nasceu em 1988, em Vitória (ES). É formado em Letras pela Universidade Federal
do Espírito Santo. O piano à imagem do
deserto — seu primeiro romance — será lançado em breve. O autor estreou com
o poema longo Um corpo que se escreve
Pedra (2011).