[Imagem de Richard Galpin]
TOCAR UMA CASA
0.
Atravessar uma paisagem
ou
habitar palavras
não
é como pensar
na morte.
Muito
mais a morte
tem
algo de liso
e
isto poderia ser
como
atravessar
uma
folha em branco.
Quando
morri,
sem
formas ou estrelas,
atravessei
linguagens,
mas
não me dediquei
tempo
a tocar uma casa.
Apenas liso,
caminhando
entre as portas
e a insônia
fotográfica
da paisagem.
1.
Tudo
aqui é
diferente
e
não há
começo:
quando
vi,
já
em meio
movimento,
não
era mais
possível
sair
sem
suicídio.
Assim
uma
linguagem
em
que
cortasse
num
papel
os
movimentos
do
dia
continuando
pela
rua nublada.
(Existem
apenas
alguns
escritos
tocados
no chão).
Os
riscos e as chuvas
caem
com simplicidade
e nunca dissipariam
culpas
e olhos mudos
de
antes.
Tudo
está filmado,
soterrado
em imagem,
redistribuído
numa
série
toda de colagens
imprevisíveis
sob
um
instante
seco.
2.
Os lápis,
cadernos
e flores
caem e
despedaçam
pelo chão.
Nesse instante,
impreciso e liso,
só é possível dizer:
há uma
cabeça
cortada
por dentro.
Tocar uma casa,
recolhendo os lápis e as flores,
retrai o movimento,
encolhe todo tremor,
reescreve os poemas
em forma de criança correndo,
mas molha a língua
e os dias ficam cheios
de mortos boiando.
3.
Ela grita toda
pelo tempo
dentro da casa.
Os sons cobrem
os panos de prato
cheios de sangue,
desliza sozinha
pelos corredores
da paisagem,
enche de nuvens
os pratos.
Sabe que vai encontrar
alguma coisa
perdida
na pedra da voz.
Evaporou,
grita
para dentro.
4.
Era branca a dor.
Olha quieto
os cantos da casa:
nutre alguma coisa
diante das palavras.
Enfrentaria
o horizonte
com o rosto
escorrido.
Sabe que os corpos
correm como peixes
muito cansados,
músculos cortados.
Escreve paisagens
num caderno,
percebe
que ainda
viveria muito
sem nome sequer,
fabricando gestos
e palavras.
Atravessava a casa,
amava
um corpo escrito
com uma palavra seca:
era branca
toda metáfora
que tocava.
Nutria a liberdade
como quem prepara
a faca.
Alexandre Moraes é poeta e ensaísta. Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). Vive e trabalha em Vitória (ES). Publicou os livros Pintura para primeiros barcos (2014), Preparação para o exercício da chuva
(2010), A sequência de todos os passos
(2009), Paisagem sobre corpo em silêncio
(2008), Coisas quebradas (2005), Pequenos filmes sobre o corpo (1997) e Objetos com nomes (1995).