29 de janeiro de 2015

“três baladas fúnebres”, poemas inéditos de guilherme gontijo flores



Imagem de Stanislav Krawczyk


balada para roque dalton


ao saber que você
foi morto nalgum canto
pouco antes de ver
os teus quarenta anos

como que executado
bem no dia das mães
(como ardia o champanhe
bem nos olhos da esquerda!)

besta eu me perguntei
se foi pela política
ou por mera loucura
do que chamamos vida

mas vamos e venhamos
não estava nos meus planos
supor que por suporem
na tua ERP

o teu envolvimento
(e quem o suporia
lá em 75?)
com agentes da CIA

os teus salvadorenhos
te encontrarão no fogo
talvez franzindo o cenho
no seu próprio naufrágio

(a maior ironia
vai na lei dos homônimos
pra morrer em guerrilha
por um tal villalobos)

lá vão quarenta anos
nem sei se responderam
se ao menos te acertaram
pelos motivos certos

seria essa loucura
(me diga agora roque)
a mera desta vida
ou sua pedra de toque?


email numa garrafa

qnd bob kaufman chegar
numa torrente infernal de bebop&semba&suor de incontaveis  batuques no
                                        [terreiro dos secs.
o nada de uma espuma vai se abrir perante tudo
qnd bob kaufman chegar
ao meio dia esburacado das avs. a tarde morna a noite toda
ao som do coro infantil de todas as criancas trucidadas nos milenios sob o pedal
                         [constante das metralhadoras em mãos de serafins
entoarao let my people go usando nuvens como altofalantes
alguma parte perdida continuara
                                                     inevitavelmente perdida
qnd bob kaufman chegar
ja terei escrito este email&posto numa garrafa previamente selada
soterrada pelas areias do pó dos esqueletos de tudo
qnd bob kaufman chegar
alguem se esquecera do seu relogio seu metronomo cardiaco
qnd bob kaufman chegar
          o relogio naturalmente batera mais um segundo
qnd bob kaufman chegar
                     torres&tremores
qnd bob kaufman chegar
dunas&dunas&dunas no asfalto
                                  sem animais que expliquem nosso caos
qnd bob kaufman chegar
          tlvz ngm perceba (tlvz ele n venha)
qnd bob kaufman chegar
um carnaval por onde as carnes mesmo valem se fara por baixo das inundacoes
qnd bob kaufman chegar
oh o estilhaco de linguas&dentes na boca do lixo
qnd bob kaufman chegar
algns vintens atravessarao o atlantico numa jangada feita por ngm
qnd bob kaufman chegar
as ruinas abrirao
                      ah as ruinas se abrirao
as ruinas abrirao seu sorriso consagrado as matas


invocação para arvo pärt

teu corpo de geada e neve
teu corpo de geada e neve
teu corpo de geada e neve
arderá  eu digo arderá

(até que morra a própria morte)

arderá de geada e neve
teu corpo de geada e neve
teu corpo de geada e neve
teu corpo de geada e neve


guilherme gontijo flores (Brasília, 1984) é poeta, tradutor e professor de língua e literatura latina na UFPR.  Publicou traduções de As janelas, seguidas de poemas em prosa franceses, de Rainer Maria Rilke (2009, parceira com Bruno D’Abruzzo), A anatomia da melancolia, de Robert Burton (2011-2013, 4 vols., premiado pela APCA e pelo Jabuti), Elegias de Sexto Propércio (2014) e Paraíso reconquistado, de John Milton (2014, tradução coletiva). Em 2013 lançou seu primeiro livro de poemas, brasa enganosa, e em 2014 fez o poema-site Tróiades — remix para o próximo milênio (www.troiades.com.br). É coeditor do blog e revista escamandro (www.escamandro.wordpress.com).