Por Ronaldo Ferrito
Antes
de
enxergarmos
algo,
antes
ainda
de
podermos
lançar
em
algo
o
nosso
olhar
(por
exemplo,
se
miramos
um
gato
negro
e
fugidio
sobre
o
muro),
somos
assaltados
pela
presciência
de
que
algo
existe
e
é
visível
(o
gato negro),
pelo
pressentimento
de
uma
existência
iluminada
e
alheia
que
espera
ser
vista,
para
somente
então
voltar
a
apagar-se
em
nossa
visão
(o
gato
em
fuga).
A
condição
dessa
presciência
de
algo
visível,
do
pressentimento
de
algo
iluminado
que
espera
e
do
seu
apagamento
fugaz
é
a
luz,
que
a
tudo
revela,
mas
não
pode
revelar-se
a si
mesma.
A
luz
não
pode
revelar-se
a si
mesma
e,
portanto,
com
a
fuga
do
gato
que
iluminava,
ela
própria
não
permanece
conosco
enquanto
brilho,
ela
se
apaga
com
o
gato
embrenhado
na
escuridão.
Só
as
coisas
brilham,
só
as
coisas
molham
sua
superfície
na
luz
e,
por
isso,
a
luz
não
pode
brilhar
– porque
não
tem
limites
de
coisa.
Tão-somente
uma
coisa
pode
brilhar,
posto
que
só
os
limites
de
algo
podem
ser
iluminados
enquanto
a
luz
constrói
o
nosso
horizonte
e
o
que
vemos
no
mundo.
Por
conseguinte,
nunca
se
poderia
iluminar
a
pura
amplitude.
A pura
amplitude
é
a
escuridão.
O
gato
negro,
que
é
coisa
de
contornos,
pode
ser
iluminado,
pode
brilhar
e,
pelo
mesmo
motivo,
ser
pressuposto,
pressentido
e,
finalmente,
nos
oferecer
uma
silhueta
esbatida
na
luz.
Nessa
visão
oferecida,
a
luz
nos
revela
uma
existência,
mas
também
limita
sua
revelação.
A
luz
inventou
para
nós
esse
gato
negro,
porque
todo
gato,
como
coisa
e
brilho,
é
uma
interpretação
da
luz.
Quando
entendemos
que
a
luz
ilumina
ou
inventa
o
que
vemos
do
mundo,
não
podemos
acreditar
que
ela
o
cria
propriamente,
mas
somente
que
o
retira
da
escuridão
que
ela
mesma
interpreta.
Tudo
o
que
podemos
ver,
portanto,
é
– a
princípio
– o
que
a
luz
já
interpretou
da
escuridão
e,
ironicamente,
porque
não
pode
revelar-se
em
si
mesma,
a luz
pode
reinventar-se
nas
coisas.
Podemos
dizer
que
a
luz
é,
por
interpretar
as
coisas
antes
de
nós,
uma
arqui-interpretação
do
mundo
revelada
à
nossa visão.
Só
interpretamos
aquilo
que
vemos
depois
dessa
interpretação
luminosa
apriorística.
Devemos
admitir
com
isso
a
situação
de
que,
ao
lançar-se
novamente
no
negrume,
na
matéria
escura
da
noite,
o
gato
escaparia
do
mundo revelado pela luz,
nos
isentando
consequentemente
de
uma
sua
arqui-interpretação.
Por
conseguinte,
nos
isenta
também
da
possibilidade
de
engendrarmos
toda
uma
série
de
interpretações
nossas
e
urdiduras
consequentes
de
sua
visão.
A
luz,
enquanto
uma
das
arqui-interpretações
do
universo,
nos
oferece
graves
implicações.
Retomarei
a
ideia
já
colocada
da
escuridão
como
uma
matéria
escura,
pois
– para
a luz
– ela
não
seria
outra.
A
luz
não
só
estabelece
a
interpretação
primeira
da
escuridão
sem
limites,
como
também
nos
possibilita
uma
intervenção
precisa
na
própria
matéria
escura.
Só pela luz podemos tocar os limites do que se guarda ilimitado no
breu do mundo.
Essa
intervenção
pode
ser
averiguada
facilmente
a
partir
das
alterações
que
podemos
operar
nas
coisas.
Podemos
alterar
uma
série
de
objetos,
por
exemplo,
um
conjunto
de
cadeiras,
à
luz
acesa
de
um
quarto,
para
posteriormente,
já
alteradas (e
portanto
diferentes
de
como
surgiram
primeiramente
perante
nós)
devolvê-las
à
escuridão.
Assim
feito,
pudemos
lançar
na
escuridão
um
objeto
que
fora
precisamente
planejado
por
nós
mesmos,
causando
nossa
intervenção
precisa
na
sua
matéria
escura
e reconstruindo por ela toda a nova arqui-interpretação do mundo que
nos será dada pela luz.
Isso ocorre porque a luz é apenas o que limitado nos chega do
não-limite da escuridão, a contraparte do nada que nos é lícito
interpretar.
O
contrário,
porém,
não
acontece
certamente.
Não
se
poderia
intervir
com
precisão
na
matéria
escura
de
dentro
da
própria
escuridão.
Se
assim
o
fazemos,
à
luz
apagada
do
quarto,
notamos
que
essas
nossas
intervenções
não
aparecerão
tal
como
imaginávamos
e
intencionávamos
tão
logo
voltemos
a
acender
a
luz,
salvo por uma coincidência extraordinária, divina.
Um
objeto
alterado
por
nós
de
dentro
da
matéria
escura
do
quarto
(uma
cadeira
que
talvez
precise
de
reparo),
ao
ser
iluminado,
irá
certamente
nos
surpreender
em
sua
nova
forma,
porque
esta
poderá
ser
interpretada
pela
luz
de
modo
muito
diferente
do
que
esperávamos
que
fosse,
ou
mesmo
do que tínhamos
certeza
de
que
fosse,
segundo
nossa
própria
e
cega
interpretação.
Assim,
se,
por
exemplo,
já
na
escuridão,
tentamos
montar
uma
cadeira
(com
quatro
pernas
e
seus
parafusos
correspondentes)
e
operamos
de
acordo
com
o
que
interpretamos
sozinhos
da
montagem,
na
ausência
dos limites
da
luz,
podemos
terminar
nosso
trabalho
com
a
sensação,
e
até
a
certeza,
de
que
o
fizemos
com
total
perfeição.
Entretanto,
quanta
surpresa
teremos,
quando
acendermos
a
luz
do
quarto
e
essa
mesma
luz
interpretar
toda
nossa
operação
realizada
no
escuro
de
modo
completamente
diverso
daquele
nosso
engendrado
na
escuridão;
posto
que
a
cadeira
é
apresentada
agora
– pela
luz
– inteiramente
inconfiável,
talvez
com
um
pé
torto
à
frente
e
três
parafusos
lancinantes
no
espaldar.
O que
na
escuridão
nos
era
perfeito,
na
interpretação
da luz
se
revelou
inconfiável.
Atentemos
ainda
para
que
não
só
a
perfeita
cadeira,
mas
nós
mesmos,
ao
longo
do
tempo
em
que
estivemos
no
escuro,
nos
sentimos
estranhos
corporalmente,
quase
outros
e
de
certo
modo
até
impalpáveis.
Não
conseguimos,
pois,
realizar o
que
construímos,
sem luz, na
completa escuridão.
Evidentemente,
isso
não
acorreu
porque,
por
ventura,
fomos
inábeis
e
incompetentes
nas
nossas
alterações
dos
objetos,
ou
nas
nossas
intervenções
operadas
no
caos,
mas
somente
porque
resolvemos
inadvertidamente
ignorar
que somente aquela
arqui-interpretação
do
universo
realiza os limites do mundo e que
deve
ser
naturalmente
anterior
à
nossa
própria
interpretação
de
algo
e,
por
conseguinte,
anterior
a
qualquer
de
nossas
realizações.
Mesmo
um
carpinteiro
experiente
passaria
por
esse
desconcerto
se
trabalhasse
diretamente
na
matéria
escura
da
noite.
Estaria
confiante
exclusivamente
em
sua
obumbrada
interpretação
subjetiva do
mundo,
ao
passo
que
para
ver
o
mundo
é
preciso
consultar
seus limites, para somente depois mergulharmos no seu abismo
ilimitado.
A luz, que revela os limites, é nosso único meio de diálogo com o
deslimite da escuridão. A luz quer nos dizer obstinadamente o que,
para nós, silencia no escuro. A luz não pode revelar-se de todo,
porque a luz não é mais que a linguagem da escuridão.