17 de abril de 2014

Poética do perigo

Biagio Pecorelli. Performance Trans(ins)piração. Festival Internacional de Poesia do Recife. Foto: Ricardo Moura

por Wellington de Melo


Os textos nos encontram, não o contrário. Descobri isso há algum tempo, mas vez ou outra o branco de escritor me faz lembrar dessa premissa. Procurava um tema para inaugurar a coluna no blog da Confraria, sem sucesso. Há dois dias, o texto me encontrou. Aliás, dois textos. O segundo decorre do primeiro, que vem a ser a introdução de A poética do espaço, de Bachelard. Logo de cara, o barbudo sapeca:

Um filósofo que formou todo o seu pensamento ligando-se aos temas fundamentais da filosofia das ciências, que seguiu, o mais precisamente possível, alinha do racionalismo ativo, a linha do racionalismo crescente da ciência contemporânea, deve esquecer seu saber, romper com todos os hábitos de pesquisa filosóficas, se quiser estudar os problemas colocados pela imaginação poética. Aqui o passado de cultura não conta; o longo esforço para interligar e construir pensamentos, esforço feito em semanas e meses, é ineficaz. É preciso estar presente, presente à imagem no minuto da imagem: se houver uma filosofia da poesia, essa filosofia deve nascer e renascer no momento em que surgir um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, no êxtase da novidade da imagem.

Sabe quando você encontra as palavras certas para algo que pensava e diz mas-eu-é-que-devia-ter-dito-isso? Foi a sensação que tive ao perceber que as palavras de Bachelard poderia ver invocadas para falar de um poema que li há algum tempo, do poeta e performer Biagio Pecorelli.

O poema SEM TÍTULO Nº 7 é composto por dísticos que apresentam imagens poéticas construídas a partir de uma estrutura antitética, com aproximações que intercalam o frágil e o brutal, o sublime e o grotesco. O uso predominante de estruturas nominais e verbos no presente fazem reverberar a atualidade da imagem poética, sem passado causal, fragmentadora de realidade, recriadora de mundos algo bizarros, mas plenamente humanos em sua inexatidão.

A estrutura chega a ser inovadora - e isso interessa pouco, aliás - , mas a carga imagética dos versos é desconcertante, com raros casos em que sua potência se vê comprometida. De uma forma geral, o segundo verso do dístico dialoga antiteticamente com o primeiro, mas a imagem tende a uma suspensão, que leva o leitor a preencher lacunas de um futuro próximo que reflete a brutalidade da imagem ou a nega, como em  os dois caninos da mãe e / um dedo mindinho contra uma foice / a face de um bebê / no trajeto de um coice. Embora não explore necessariamente a sinestesia nos dísticos, a junção dos versos apresenta um elaborado desafio sensorial ao levar o desconcerto a construções como o Vesúvio vomitando tudo / sobre um dos meus mamilo; almôndegas no macarrão / do Terceiro Reich; naftalina sobre um/ sorvete de tutti-frutti; e pedaços de urânio/ entre os girassóis de Van Gogh.  

Em uma síntese que peca por sua incompletude, os versos de SEM TÍTULO Nº 7 remetem a um universo em iminente perigo, em que a delicadeza será invariavelmente atropelada pela brutalidade, mas sem que isso seja visto como uma crítica, muito pelo contrário: a beleza das imagens poéticas aqui apresentadas reside, talvez, justamente na violência que evocam, na desesperança (lembro não sei por quê da bela cena número 4 de Sandman, Uma esperança no inferno, quando o deus tem um embate com Lúcifer para recuperar seu elmo). Essa inocência em perigo ou a perda da inocência, esse passado que não se modifica e que se reverte num futuro capturado em instantâneo (uma lágrima desce / pelas bochechas de Brutus) são temas importantes que transparecem aqui e ali. Mesmo versos menos poderosos, a meu ver, como jacarés se amam / no pantanal do Mato Grosso ou uma multidão de sacerdotes / nos arredores da Disney World, não tiram o mérito do poema. E até um dístico que aparentemente destoa dos demais, como  a relva está tomando tudo / em nossa sala de estar meu amor, encontra nessa póetica do perigo, por assim dizer, um sentido: a ameaça à paz da sala de estar, que coloca em risco a comodidade do dia, apolíneo, frente à perigosa natureza dionisíaca.


Considero o poema uma amostra interessante daquela que creio ser uma das grandes vozes da poesia contemporânea que o Recife viu nascer nesse começo de século XXI. Seja em sua escrita, seja na arte performática, Biagio demonstra uma maturidade e responsabilidade com sua arte que, aliadas à ousadia e a uma completa não subordinação ao status quo o fazem uma máquina poética extremamente fascinante e perigosa. E precisamos de perigo na literatura brasileira.


SEM TÍTULO Nº 7


o azul do césio 137
brilhando no olho de um índio

flocos de neve (finos)
sobre os cadáveres de Vigário Geral

o Vesúvio vomitando tudo

sobre um dos meus mamilos

e os fieis suicidas de Jim Jones

elevados a anjos

um caça norte-americano
sobrevoando um canarinho

o Bandido da Luz Vermelha
mastigando algodão-doce

uma multidão de sacerdotes
nos arredores da Disney World

almôndegas no macarrão
do Terceiro Reich

jacarés se amam
no pantanal do Mato Grosso

uma lágrima desce
pelas bochechas de Brutus

a relva está tomando tudo
em nossa sala de estar meu amor

gargantilhas punk
no tronco dos eucaliptos

uma mosca (varejeira)
relê uma pilha de livros

os dois caninos da mãe e
um dedo mindinho contra uma foice

a face de um bebê
no trajeto de um coice

naftalina sobre um
sorvete de tutti-frutti

e pedaços de urânio
entre os girassóis de Van Gogh.