17 de abril de 2014

O que é uma Pijuca? Análise de um conto de Valdomiro Silveira



Por Rafael Mendes.


É injusto o ostracismo que sofre a obra do contista Valdomiro Silveira. Quando citado nos compêndios de história da literatura brasileira, seu nome quase sempre está atrelado aos dos precursores do regionalismo. Seus contos, publicados em revistas e jornais entre os anos de 1890 e 1940 e, periodicamente, reunidos em livros, retratam o homem interiorano e a vida no campo. Sua linguagem, inovadora para a época (ainda que às vezes falha, justamente porque inovadora), buscava reproduzir o dialeto caipira e influenciou escritores como Mario de Andrade e Guimarães Rosa.
No entanto, a obra de Valdomiro não se resume somente ao retrato simplista da vida caipira. Seus contos estão repletos de metáforas, de dilemas caros à matéria literária, como a perda e o amor, ainda que matizados por uma camada de falsa banalidade. Valdomiro soube como poucos realizar um dos axiomas mais proferidos sobre a arte do conto, senão o mais proferido, de que o conto deve narrar duas histórias simultâneas: uma aparente, ou seja, o conto, a história em si; e outra, subliminar, que pode ser revelada no final, ou ficar implícita, nas entrelinhas, e ser apenas intuída pelo leitor, pelo bom leitor. Também nisso Valdomiro foi um precursor.
Tome-se como exemplo o conto Pijuca, do livro Os Caboclos, de 1920.
Neste conto, Maria Espada, uma moça solteira, volta para casa a cavalo, bêbada e sozinha, depois de se divertir em um pagode, ou seja, uma festa. No caminho, relembra as modas de viola cantadas por Gabriel, ainda há pouco, e fala vagarosamente:
— Força no peito, caboco desabotinado! Cante mais um verso, mas porém com toda a sustância, como no tempo que você me queria, tal e qual hoje, e que eu te queria como não quero mais e nunca mais hei de querer! Um verso de alecrim: bamo’ ver!

Ninguém põe rédea em Maria Espada, e agora a viola está calada, depois que todos no pagode, inclusive Gabriel, deram por falta da caipira, danados com o sumiço repentino dela. Maria Espada fazia assim sempre que se sentia melancólica:
— [...] tenho que romper p’r as estradas, ver uma bruxa ou um lobisome’, inté que o fernesim me passe! Cada qual cumpre seu fado: isto foi sorte que Deus me pôs! Já mandei em mim como as outras: agora não mando em ninguém. Vou vivendo a minha vida, feito um barrote pesado, que desce p’r o rio abaixo, na força das águas, sem nada que lhe segure...

Com as mãos nos freios, ela vergasta rigidamente as duas ancas do cavalo. E o cavalo põe-se a correr, agitando a cabeça carregada de fitas e flores, montado por uma jovem mundana toda vestida de branco.
Ao chegar a uma bifurcação, ela fica indecisa, passando os olhos de um trilho a outro. Então escolhe um dos caminhos, sem saber ao certo se é o de casa. Bambeia as rédeas no pescoço do cavalo, e ele pega numa andadura lenta. Nesse compasso, Maria Espada começa a cantar uma moda, com voz grossa e linda:
Ribeirão das águas turvas,


nem garça pode beber;

um amor de tantos donos

dalgum tem que se esquecer.


Ela solta uma gargalhada:
— Que prosa à toa, já se viu? Pois eu também tenho tido tantos amor’, e não me esqueço de nem um! Não me esqueço nem me alembro: isso é que é vantaja!

À margem da estrada, porém, reluz estranhamente qualquer coisa, com claridade quase cor de enxofre aceso. Maria Espada não dá atenção, continua cantando, mas o cavalo entende de trocar as orelhas e bufar, endurece o lombo e dá um passarinhão feio. Ele toma o freio entre os dentes, pula de um lado a outro e atira a moça ao ar. Maria Espada, erguendo-se, sente nos ouvidos uma zunideira.
E aqui está um dos segredos de Valdomiro Silveira: em um conto aparentemente simplório, que numa leitura desatenta o leitor pode pensar em se tratar apenas de um causo de bebedeira, na voz de uma caipirinha sem modos e de fala errada, o autor transcende o regionalismo e nos apresenta um dos motes da literatura universal, que é a busca do significado de nossa existência no mundo. A inocente e ignorante Maria Espada, ao falar com o cavalo, diz também para nós, leitores, que a ignorância e a inocência pode às vezes estar em nós mesmos. Há matérias que os leitores de Valdomiro conhecem muito bem, muito melhor que seus personagens; contudo, também esses personagens, esses caboclos, sabem de coisas que os leitores não sabem.
Zangada, Maria Espada diz para o cavalo:
— Que pavor tão fora de tempo, coisa-ruim! Nunca viu orelha de pau que dá fogo? Nunca viu pijuca? P’ra que é que você véve antão no mundo, se uma luz do mato, inocente como esta, faz tamanha batedeira em você?

Ela aproxima-se da madeira podre, onde os cogumelos se agrupam como dezenas de orelhas fitas. Diz para o cavalo que aquilo é aquilo mesmo: só uma boniteza. Senta-se junto da luz amarelo-azulada. Nesse momento, Valdomiro revela mais um de seus segredos, o maior deles, agora iluminado pela pijuca — a sua segunda história.
Com a língua pegada ao céu da boca, Maria Espada resmunga os últimos versos da moda:
um amor de tantos donos




dalgum tem que se esquecer.


Ela relembra então de Lainho, tão formoso e tão bom, que morreu por respeito dela, ao saber que fora jogada fora de casa por sua gente e que ele não tinha jeito de segui-la.
— [...]Aquilo é que foi um home' de coiração!

Maria Espada resvala para uma laceira de cipó-cruz e adormece. E é tão meigo o sonho do passado, que, sob a claridade fantástica, o seu rosto pouco a pouco ganha uma expressão serena...

A obra de Valdomiro Silveira também dorme, à espera de uma pijuca que a ilumine.