22 de abril de 2014

Telefone sem Fio: uma entrevista com Vera Helena Rossi

Por Ana Rüsche.



A Editora Patuá é cheia dos bons lançamentos. Dessa vez, traz uma romance bem gostoso de ler, o Telefone sem Fio, da Vera Helena Rossi. Para que vocês possam conhecer um pouco mais a respeito do livro, fiz uma pequena entrevista com a autora.


A Vera já publicou um livro de contos, o Mind the Gap (2011) e agora estreia no romance. Possui textos publicados em revistas e sites, como o Cronópios, revista Metáfora, Língua Portuguesa e Cult – contribui com reportagens, contos e entrevistas. Aguardando ainda editora está o romance Estamos Todos Bem, escrito em 2007 e resenhado na Espanha (Telefone sem Fio foi escrito depois de Estamos Todos Bem). O romance que será publicado agora foi idealizado e rascunhado desde 2008.


1. O Ignácio de Loyola Brandão diz que "você escreve limpo, direto, é econômica e cheia de ironia". Concordo. É um bom resumo. Como chegou nesse trabalho de forma? Lembra-me algo de nossos cronistas, mas a extensão em que você escreve é a do romance.

Agradeço o elogio. Na verdade, o Loyola teceu este comentário a partir de um conto que iniciou e que continuei em um concurso de contos promovido pelo Sesc nos idos de 1997. Ganhei o concurso e recebi um e-mail seu com este comentário. Interessante relê-lo agora e perceber o quanto mantenho dessa escrita ainda hoje. Creio que, apesar das muitas influências literárias, inclusive dos livros do Loyola, sempre me inscrevi em uma caligrafia própria. 

A música exerce muita influência no meu estilo. Sempre escolho uma música ou um álbum quando escrevo. O Telefone Sem Fio foi elaborado ao som do grupo Lestics (e não Joni Mitchell, como deveria ser). Talvez a escrita limpa, direta e econômica esteja relacionada à precisão que exige uma partitura, inclusive com suas figuras de silêncio; procuro ritmo no que escrevo. Quanto à ironia, penso que esta é uma característica nossa. Aliás, costumo dizer que o Brasil é uma verdadeira aula sobre a ironia. Por exemplo, o bairro Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Para Santo Agostinho, grosso modo, apenas encontraremos a felicidade - inexistente na Cidade do Homens, ou seja, no nosso mundo - na Cidade de Deus (Paulo Lins utilizou muito bem a ironia explícita no título de seu livro). Ainda que muitas vezes precisemos de uma placa indicando “isto é uma ironia” - parafraseando Millôr Fernandes - a ironia mantém-se presente seja nos nossos discursos ou alheios, até como forma de autopreservação.



2. "Telefone sem Fio" conta a história de uma mulher de classe média ao longo dos acontecimentos históricos dos anos 90 até 2000. Parece-me que não há muitas narrações (ainda) situadas nessas décadas. Como foi trazer a experiência histórica (e afetiva) do período?

Bastante curiosa. Minha intenção era contextualizar as lembranças da protagonista, Alma Pontes, por acontecimentos políticos em vez de situá-las em anos, algo próprio da memória. Por exemplo, no lugar de assinalar que Alma conheceu Lara em 1990, escrevo que se conhecerem quando “a moda era dançar lambada, sapatear sobre uma época em que milhares de pessoas iam à falência com o Plano Collor”. Alma também era jornalista, o que enfatizou minha ideia primeira. Escolhi boa parte dos acontecimentos de acordo com o seu grau de absurdo, para citar alguns exemplos: um referendo a ser escolhido o sistema de governo; o chamado confisco, nosso dinheiro usurpado por um presidente da república; um assassinato claramente político atestado como crime passional; e por aí vai. 

Pesquisei sobre os acontecimentos, mas também recorri à minha própria memória. Lembro-me nitidamente dos adesivos nos carro durante o referendo com os dizeres: “Vote no rei”. Exercício bastante interessante e até prazeroso esse de poder voltar a uma época sem Internet. Tanto eu quanto Alma, além de muitos contemporâneos meus que experimentaram uma vida sem Internet, vivenciam essa relação de amor e ódio com o mundo digital. A propósito, nem tanto essa relação, mas as transformações de um mundo analógico a um digital estão no livro.



3. Você traduz. Como o trabalho de tradução interfere na escrita? Há algumx escritorx que tenha traduzido que interfira na tua maneira de escrever?

Eu traduzi apenas durante meu mestrado e doutorado para minha tese. Profissionalmente, traduzi um livro há muito tempo e estou fazendo a versão em inglês do livro que preparo atualmente, mas os dois são técnicos, de modo que nenhuma das traduções interferiu na minha maneira de escrever. O mais próximo que cheguei da literatura foi quando traduzi um livro do Paul Auster, The Red Notebook, como forma de treinar a própria tradução. Na época, inclusive, pensava seriamente em ser tradutora, mas abandonei a ideia quando me deparei com tradutores como Leiko Gotoda, Berthold Zilly e Denise Bottmann, e percebi que era necessário muito, algo de infinito que meu olhar ainda não alcançava.



4. A publicação do romance será feita pela Editora Patuá. Como você enxerga o projeto da editora e quais os motivos dessa decisão?

Admiro a Editora Patuá há muito tempo, desde sua criação por Eduardo Lacerda e Aline Barros. Meu primeiro livro foi publicado por eles. Sempre me identifiquei com a proposta da editora, preocupada mais com a qualidade do que com a comercialização. Os escritores publicados pela Patuá são muito bons, nota-se uma seleção criteriosa pretérita. Até os livros, enquanto objeto, também se valem de um belíssimo trabalho artístico. Quando reescrevi o Telefone Sem Fio, no ano passado, enviei a algumas editoras, mas com prioridade pela Patuá. Tanto que, quando Eduardo Lacerda me procurou para editarmos o livro, não tive dúvidas, fechei imediatamente com ele.


5. Quer dizer algo mais? Você poderia separar um trecho do romance?

Sim, quero falar um pouco sobre o Telefone Sem Fio, sobre sua estrutura. A estória consiste basicamente na viagem de carro por um casal - Carlos, motorista, e Alma, passageiro - rumo a um enterro no interior de São Paulo. Durante a viagem, Alma passa sua vida a limpo no caderninho de anotações, munida de várias canetas bic coloridas. Quando escreve, sempre se refere a si mesma na terceira pessoa do singular, e a cada vez que se lembra de um mesmo fato, ela o modifica.

Separei o seguinte trecho do Telefone Sem Fio:

Uma pausa, silencioso leitor. Pois que eis um pouco de mim aqui neste posto de gasolina. Desses onde nunca nos é suficiente seu combustível, a viagem sempre é maior. O banheiro, meu refúgio de Carlos. Contraio as pernas, minto que estou apertada e pra lá me direciono. Não consigo erguer meus olhos, como se o piso molhado deste posto fosse a única saída. O cheiro forte de gasolina quase me derruba, somos auto-inflamáveis. Acho que estou desaprendendo a andar. Um pé depois do outro, não é assim que nos ensinam, percorrer o solo pé ante pé? Vamos lá, Alma, você consegue. A placa caída com um W apagado indica a porta do meu esconderijo. Entro de cabeça baixa. Respiro o lugar imundo de vestígios dos outros. Não há papel higiênico, apenas, no chão, seus pedaços. Também não há espelho, posso imaginar meu reflexo na água suja sob meus pés. Quantas pessoas já passaram por aqui, quantos reflexos guardam a água suja? Puxo a cordinha da descarga sem qualquer necessidade, com o único intuito de fingir um alívio que não sinto. Abandono meu pequeno jazigo, enquanto piso em uma sombra alongada. A voz transborda o corpo. Dissimulo um olhar distante, afasto meus olhos do espaço que ocupa. Em vão, a dona da sombra alongada se aproxima. “A chave do banheiro”, ordena. Faço-me surda. “Colega”, quase cospe, “a chave”, balança o corpo e a sombra, “preciso da chave”, grasna. “Não tem chave”, finalizo. “Você? Tá bem?”, ela insiste em mim. Apenas movimento a cabeça em um nãosimnãosimsim. “A mulher tá chorando!”, “a mulher” sou eu, difícil e impaciente. Não quero me lembrar de hoje, pode ser? Carlos percebe e nos socorre. “Alma?”, se esconde em mim. “Tudo bem?”. Chão, Alma, olhe pro chão, ela pode virar pedra. “Sua mulher tá chorando”, conclusão brilhante. “Sim”, ele enxuga a testa e continua “estamos passando por um momento difícil. Seu irmão.” Carlos tem uma incrível facilidade em desperdiçar seus momentos mais doídos com estranhos, na beira de estradas. Aponta pra alguma direção que não se vê e apenas diz “Enterro”. Por fim, envolve-me sobre seu corpo, e nada mais a ser dito. Vamos os dois pro carro, indevidamente abastecidos. A sombra se alonga ainda mais pelo sol baixo e tragédia nossa. Encolho-me sobre o meu caderninho.



Se gostou do pedacinho que leu, o lançamento do romance ocorre na cidade de São Paulo, no dia 23 de abril, a partir das 19h no Hussardos Clube Literário. Você pode também encomendar o livro no site da Editora Patuá. Mais detalhes em http://telefonesemfioromance.blogspot.com.br.

Imagens: capa de Leonardo Mathias e foto da autora feita por Barbosa F.