I.
O menino fere
ele não
sorri
insiste em silêncio
(como uma
rocha
pendendo sobre o
abismo, o horizonte ao fundo
3 ou 4 braços a me
puxar para trás)
O menino não fala.
Não
conversa. Não
está preocupado com
o preço da cerveja que me faz beber,
com as linhas
brancas deitadas sobre o espelho, as cicatrizes se alinhando no
rosto.
Não possui chave
alguma
estatelado lá
como lei
O menino não tem
nenhuma das pernas. E não
vai a lugar algum.
Eu não sou
o menino. Isso
eu sempre soube
(desde o dia em que
entre essas paredes não coube mais a cabeça inchada de janelas).
Só não sabia
que a cada vez que
voltasse aqui
(à casa de
insuportáveis paredes)
teria de
assassiná-lo outra vez.
II.
O menino brinca
entre os muros do jardim
Não sabe que é
tarde. E que lhe custará caro ter assim negligenciado a medida do
tempo.
Logo, não voltará
a sorrir. E o brinquedo em suas mãos se tornará faca. E dentes.
É surdo a todo
apelo. Vai
e volta com alguma
novidade entre as mãos gordinhas, um galho, um inseto morto, uma
pena de rolinha.
O gesto singelo
prepara o futuro que ele ainda não conhece,
o seu futuro, o
futuro em que será ele também, totem, folha morta, resto de voo e
raiz esquecida
Cutuca o corpo
inerte do inseto
e quase descobre a
morte.
(Vai perder amigos,
parentes. Vai se tornar o homem sisudo e responsável, talvez. Mas
não vai aprender a deixar de cutucar cadáveres.
Não saberá parar
de brincar com sementes que não vingaram,
ou cogumelos
crescendo sobre o tronco amputado da árvore diante da casa,
cogumelos e sua textura animal, invasiva, seu crescimento
desenfreado, seu jeito de abutres proliferando na escuridão de
superfícies velhas, úmidas, seu jeito de rugas, cogumelos no rosto
da avó.)
Vai arranhar o
joelho no concreto áspero e entrar chorando para casa. Consolar-se
entre braços queridos, seu cabelo de pequeno índio, lavar a ferida,
essas coisas. Se eu pudesse lhe falar, não lhe diria nada. Deixaria
que estivesse onde e como esteve, gosto que tenha sido como foi. Que
seja como é. Só queria saber por que insiste
em me visitar nessas
noites tensas
só queria saber por
que insiste entre paredes
e muros
e todo jardim
(…)
V.
Se escrevo é porque
há o menino
porque pesa seu
olhar sobre a casa.
Há dias em que é
impossível
qualquer coisa
lembrar a ansiedade
nas noites de natal
a brincadeira de
pirata na rede da avó
a casa nos fundos
com as ferramentas do avô
o estranho ritual de
iniciação dos homens provando o molho de pimenta
Às vezes escrever é
desviar o olhar do menino
às vezes, encará-lo
ou querer ver com
seus olhos e não poder
(O menino não
enxerga não fala é só uma fome sem fim)
(…)
X.
– No fundo, você
escreve para livrar-se do menino, mantê-lo à distância,
para tornar sua
presença mais palatável,
no fundo você quer
que ele te ame, o menino, quer abraçá-lo e que ele o console, quer
poder brincar com ele
ou que ele o deixe
em paz, com
seus vinte e tantos
anos
e só.
No fundo você quer
calar o menino.
Você sabe que ele
fala, que ele tem muito a dizer, só não quer ouvir. E se devota com
afinco ao ofício amargurado de escrever para não escutá-lo,
trazendo de novo e de novo um terceiro para interceder por você.
(Esse terceiro você
chama de poema, ou de linhas tortas, ou de trechos, acerto de contas,
não importa ou pouco importa como você o chame porque ele continua
sendo o que é: o anteparo da sua surdez.)
(…)
XIV.
Enquanto escrevo, o
menino me olha
debruçado sobre a
mesa.
Quero lhe explicar
por que escrevo
e por que não
espero dessas linhas que sejam poemas,
mas um acerto de
contas.
E por que, no fim
das contas,
essa questão não
importa.
Quero dizer-lhe que
escrevo para poder tê-lo próximo e não sucumbir
a seu peso
para mantê-lo, ali,
teso, em silêncio
para protelar sua
presença, sustentar sua mudez sem me jogar da varanda.
Mas ele me vê
e sabe que, no
escuro, sustento a alegria vaidosa de escrever uma série de poemas,
– sim, de poemas
(não importa que diga o contrário) –
poemas contando suas
visitas e o trabalho que elas me dão
ele sabe o absurdo
desenfreado dessa atividade, sabe que com a desculpa de tentar nos
manter vivos, me prostituo à mais convencional das soluções, ao
mais ridículo dos gestos
sabe que a pessoa
que sobrevive ao esforço ambíguo de fazer justiça à sua morte
pode, simplesmente, não merecer ser salva.
E ele sabe da minha
vergonha.
Não. O menino não
sabe nada. Jaz mudo, impassível diante dos estertores ainda mais
convencionais e ainda mais ridículos dessas linhas.
Sem pergunta ou
explicação, sem acerto de contas, sem se importar com a vergonha ou
com os motivos,
ele me olha.
XV.
Para o menino não
há escrita.
Maurício Chamarelli Gutierrez nasceu em 1984, no Rio de Janeiro. É autor dos livros Corpo Tênue (2006) e Largo (2010). Exilou-se há dois anos no sul do país para concluir sua tese de doutorado, fugido da ditadura da boemia do Rio de Janeiro.