Imagem da peça Bom Retiro 958 metros, do Teatro da Vertigem |
Eu pensei que
estava em São Paulo e que tinha visto uma árvore chorar
eu não sei o nome daquele
espaço em comum
entre os prédios
onde as janelas conversam
onde as conversas conversam
sem sentido.
as pessoas não se conhecem
já não conheço a mim
a minha poesia foi pelo ralo
quando o amor chegou.
faço as minhas necessidades e ouço
talvez do oitocentos e cinco
ou seis
uma mulher falando pobrezinha de alguém
enquanto um homem se dedica ao desafinado
do seu gospel sentimental.
nesta altura
alguém cospe pela janela
a queda infinita
do cuspe que nunca chega ao chão
interrompido quem sabe pelo toldo verde do vizinho rico do terceiro andar
as pombas fazem festa lá, eu sei
todos nós sabemos
as pessoas não se conhecem
mas as pessoas conhecem muito bem a vida do outro
aquela mulher esqueceu o balde com água há quatro dias
aquele jovem que namora na janela outro jovem
a sua mãe dizendo que vá tomar no cu, filho viado não
quer dizer, que vá para o inferno com suas viadices.
[as janelas contam segredos: os mais íntimos daquele homem se masturbando no quinto andar do outro prédio na companhia de uma lata de coca-cola a mesma imagem de sempre na tela do seu monitor de trinta e duas polegadas [o homem com seu ritual de amor solitário];
os mais complexos daquela mulher metódica experimentando as melhores posições para as roupas nas gavetas da cômoda. [a mulher com seu ritual de amor solitário];
os mais felizes daquela criança pulando na cama escondida dos pais. [a criança com seu ritual de amor solitário.]]
às vezes eu me sinto em são paulo,
mas esqueço e rio
outro dia comecei
sem terminar
a contagem dos prédios ao redor
dos carros que não param jamais de passar
das pessoas, dos cheiros, dos loucos
desci no elevador que é maior do que o meu pequeno metro quadrado de dormir.
ao meu lado
o homem que invariavelmente cortava o cabo da tv dos outros.
o meu cabo o homem podia cortar, eu não tinha uma tv.
tudo o que eu assistia simplesmente não podia deixar de ver.
outro dia jogando o vidro da minha bohemia no lixo
uma mulher gritou comigo
que aquele lixo não tinha nada de especial, nada de especial
que aquele era o pior lixo de todos os lixos.
naquele dia não só os sacos nas calçadas choravam chorume,
não só as pessoas na porta do SUS,
não só as pessoas nos pontos de ônibus
eu vi uma árvore chorar, mas aquele choro não era um choro,
não era seiva, não era água, o choro, meu Deus,
era um homem mijando.
eu não sei o nome daquele
espaço em comum
entre os prédios
onde as janelas conversam
onde as conversas conversam
sem sentido.
as pessoas não se conhecem
já não conheço a mim
a minha poesia foi pelo ralo
quando o amor chegou.
faço as minhas necessidades e ouço
talvez do oitocentos e cinco
ou seis
uma mulher falando pobrezinha de alguém
enquanto um homem se dedica ao desafinado
do seu gospel sentimental.
nesta altura
alguém cospe pela janela
a queda infinita
do cuspe que nunca chega ao chão
interrompido quem sabe pelo toldo verde do vizinho rico do terceiro andar
as pombas fazem festa lá, eu sei
todos nós sabemos
as pessoas não se conhecem
mas as pessoas conhecem muito bem a vida do outro
aquela mulher esqueceu o balde com água há quatro dias
aquele jovem que namora na janela outro jovem
a sua mãe dizendo que vá tomar no cu, filho viado não
quer dizer, que vá para o inferno com suas viadices.
[as janelas contam segredos: os mais íntimos daquele homem se masturbando no quinto andar do outro prédio na companhia de uma lata de coca-cola a mesma imagem de sempre na tela do seu monitor de trinta e duas polegadas [o homem com seu ritual de amor solitário];
os mais complexos daquela mulher metódica experimentando as melhores posições para as roupas nas gavetas da cômoda. [a mulher com seu ritual de amor solitário];
os mais felizes daquela criança pulando na cama escondida dos pais. [a criança com seu ritual de amor solitário.]]
às vezes eu me sinto em são paulo,
mas esqueço e rio
outro dia comecei
sem terminar
a contagem dos prédios ao redor
dos carros que não param jamais de passar
das pessoas, dos cheiros, dos loucos
desci no elevador que é maior do que o meu pequeno metro quadrado de dormir.
ao meu lado
o homem que invariavelmente cortava o cabo da tv dos outros.
o meu cabo o homem podia cortar, eu não tinha uma tv.
tudo o que eu assistia simplesmente não podia deixar de ver.
outro dia jogando o vidro da minha bohemia no lixo
uma mulher gritou comigo
que aquele lixo não tinha nada de especial, nada de especial
que aquele era o pior lixo de todos os lixos.
naquele dia não só os sacos nas calçadas choravam chorume,
não só as pessoas na porta do SUS,
não só as pessoas nos pontos de ônibus
eu vi uma árvore chorar, mas aquele choro não era um choro,
não era seiva, não era água, o choro, meu Deus,
era um homem mijando.
Anna Beatriz Mattos nasceu em 1992, no Rio de Janeiro. Autora do livro de contos Mãos azuis (oito e meio, 2012), hoje estuda Letras na UFRJ.