7 de novembro de 2014

Inéditos de Pedro Rocha de Oliveira

Stalker, de Andrei Tarkovski


MANUSCRITOS
em telas de cristal encontrados num tambor de cobalto

Chegada

Segundo o aviso estereofônico em dezessete idiomas, tínhamos vinte e oito segundos para sair do barco. Aqueles dentre nós que compreendiam fragmentos de pelo menos três ou quatro desses idiomas levantamos todos ao mesmo tempo e tropeçamos uns nos outros. Pressionamos assim mesmo em direção às portas, contra a luz cegante, os cacos e trapos abandonados, os que ainda dormiam, os que tentavam juntar cacos e trapos, o vento com cheiro de cacos, trapos e combustíveis queimando. Os chutes e a cegueira obrigavam-nos a abandonar quantidades adicionais de cacos e trapos, o que ao mesmo tempo facilitava e dificultava o conflito que ao mesmo tempo nos levava e nos separava das saídas. Quando chegamos nelas, despejamos nossos corpos para fora em todas as direções, rolamos pelas escadarias molhadas de quinas ordinárias gastas por todos que haviam rolado por elas antes de nós. Sempre atrasado, vinte e nove segundos depois do aviso, o barco começou a se mover entre os detritos flutuantes. Ainda despejávamo-nos por todos os seus buracos. No fim da escada, a triagem começou instantaneamente. Foi empregado o método da vara pontuda. Começamos a grunhir, expressando a consciência de que a presença de triagem e capatazes não significava necessariamente a existência de trabalho. Em resposta, foi sussurrado que aquele não era um barco de trabalho, mas um barco de refugiados. Através de comentários finais, concluímos que a presença de triagem e capatazes não significava necessariamente a existência de refúgio. De fato, na outra ponta das varas pontudas, no alto das plataformas de pau preso a plástico com anéis metálicos, os capatazes às vezes pareciam trabalhar, às vezes pareciam divertir-se, às vezes pareciam querer pilhar nossos cacos, trapos, órgãos internos e externos. Às vezes mal pareciam capatazes. Mas, através da eficiência e das varas pontudas, os altos foram separados dos baixos, os carecas dos orelhudos, os infectados dos nus, os aptos das grávidas. Nesse meio tempo, chegaram outros barcos. No primeiro, havia cães, mas os cães se recusaram a descer. No segundo, havia pau e plástico, e os aptos nus orelhudos baixos foram conduzidos para o seu interior, de modo a realizar o descarregamento através de rampas laterais que flutuavam em meio aos detritos flutuantes que eram indistinguíveis do pau e do plástico sendo descarregado.

Coberta

Quando, há muito tempo, numa manhã turva e quente, caiu a coberta do reator, aqueles que conseguiram agachar-se a tempo tiveram a maior parte do corpo protegido pelo escudo da multidão, e desenvolveram degenerações praticamente indetectáveis pelos aparelhos manuais de detecção de degeneração. Aqueles dentre nós que não encontramos espaço onde enfiar o rosto fomos afetados nessa parte. No caso, fomos buscar imediatamente reconstituição de uma ou de todas as pálpebras, de modo a garantir elegibilidade para o trabalho de remendagem da coberta do reator. Médicos voluntários de um serviço de fronteira hoje desaparecido, financiado por um laboratório da época em que existia financiamento, organizaram filas longas nas vielas transversais, e testaram com razoável sucesso a aplicação de tecido protético feito de silicatos indestrutíveis e flexíveis. Muitos de nós nos beneficiamos, assim, de pálpebras artificias, através da contratação voluntária de uma dívida impagável que não chegava a ser tão hereditária quanto as degenerações que contraímos involuntariamente. Muito mais tarde, emergiram boatos de que alguns dos silicatos tinham a propriedade de influenciar a constituição dos tecidos vizinhos, o que poderia eventualmente causar o enrijecimento da musculatura da pálpebra. Mas, quando esses boatos começaram a circular, a maioria de nós já precisava usar as mãos para abrir e fechar os olhos.


 De um antigo manual pedagógico copiado a lêiser para distribuição interna

(…) O principal ensinamento que temos para passar às nossas crianças é o tipo especializado de medo que cultivamos. É evidente que não lhes basta o medo normal, que aprenderão por si mesmas simplesmente por existir no mundo que criamos. Estamos razoavelmente escondidos, a terra é razoavelmente infértil, as regiões circundantes estão envenenadas, qualquer um que pisa o solo com os pés descalços percebe isso. Estamos armados com pedras, paus, na extremidade de alguns dos quais prendemos, com ligas finas porém resistentes, fragmentos pontiagudos e cortantes, além dos aparelhos de longo alcance e de destruição grupal que aqueles portando os uniformes corretos, ou a documentação exigida, ou a disposição necessária, carregam junto a si todo o tempo. A expressão no rosto desses defensores, os olhos muito abertos, os lábios retraídos, os tendões do pescoço visíveis e palpitantes como os dos répteis, deixa claro que estão em contato constante com perigos horríveis, e os exercícios de evacuação e fuga, os alarmes falsos, os choros convulsivos nas madrugadas, os buracos de balas, o volume dos aparelhos eletrônicos, os olhos injetados nas festas, os alarmes verdadeiros, as colunas de fumaça no horizonte, e as descobertas daquela idade especial em que chegará a pergunta inevitável, cara mamãe, diga-me, por favor, o que é uma cova coletiva, tudo isso dá aos pequenos o gosto do medo. Mas o medo de que se encarregam nossos grupamentos didáticos, panfletos, e vídeos educativos, é de uma qualidade mais refinada, não tem gosto de nada, é menos instintivo, é profissional, não diz respeito exatamente à evitação do sofrimento e da aniquilação. É desapaixonado e baseado em princípios ou na ausência deles, e não é sentido exatamente na boca do estômago, nem faz tremer, mas enrijece os músculos das costas e dos ombros, faz enterrar as unhas nas palmas. Em vez do choro, a liberação de bílis causa uma salivação que torna qualquer operação bucal impossível, exceto um engolir repetido. Esses são os sinais pelos quais percebemos que a criança já aprendeu o que tinha que aprender (isto é, nota A+). Os didatas mais tradicionais advertem seus alunos de que é melhor que tais sinais não sejam apenas emulações externas, mas reflitam uma convicção interna; outros, porém, já a par das teorias mais modernas, dão de ombros, considerando que a presença ou não da convicção é secundária, visto que a essência desse medo é a sua demonstração. Um jovem capaz desse medo é também incapaz de arriscar-se mais do que deveria, isto é, é incapaz de arriscar-se, exceto quando o que está em jogo é a garantia da segurança, situação em que nenhum risco está demais. Portanto, como diz o guia prático  (p. 7), “um jovem capaz desse medo deve estar pronto ao sacrifício, mas não visando salvar-se, visto que a salvação é impossível” – afinal, é por isso que não deve arriscar-se –, “e sim visando evitar sacrifícios ainda maiores”. Além do medo espontâneo, esse é o medo que, então, é incutido cuidadosamente. Quem age segundo ele não precisa de convicções. Trata-se de agir como se a fonte da ação fosse sempre aniquilável, como se o resultado da ação fosse no fundo indiferente, de modo que as únicas ações tomadas são as irracionais, as reações, as fugas, os estouros em pânico, os reflexos, o encolher-se, o horror que causa contração, a vontade incontrolável de chamar uma autoridade para testemunhar o inevitável, a reprodução da fonte do horror através de incontáveis imagens, os olhos vermelhos injetados, as gengivas à mostra. Longe de trabalhar para a sobrevivência, esse medo acaba, não obstante, alcançando-a, e isso a despeito do fato de que seu fundamento é o conhecimento abstrato do caráter supérfluo da vida. Dado que nenhum de nós deveria estar aqui, não é razoável estimular nas crianças aquela nesga de sentimento de autoconservação que elas porventura possam conservar por acidente, mesmo depois de tudo que, mais cedo ou mais tarde, testemunharão. O razoável é gravar nos seus olhos e ouvidos a destruição, e deixar seus nervos tesos fazerem o resto. Não há castigos possíveis para esses seres, há apenas estímulos. Por isso, nossos didatas não recomendam a crueldade, mas uma benevolência irreconhecível. Cada novo golpe, real ou irreal, é uma amortização dos golpes futuros, é a dedução, em uma unidade, de uma quantidade infinita de golpes, reais ou irreais, e por isso os queloides hiperplásicos se tornaram, afinal, uma coisa rara entre nós, exceto nas genitais, de tal modo que se verifica uma confusão entre os termos “genital” e “queloide” nos meios curandeirísticos. Mas os especialistas garantem que se o processo fosse aperfeiçoado a tal ponto que não deixasse mais marcas reconhecíveis, então seu fundamento mesmo estaria eliminado, e, desprovidos desse medo científico, ficaríamos reduzidos a um medo original que talvez nos destruísse. Mas como, de qualquer forma, nos destruiremos, nossa resistência adquirida à formação de queloides foi contornada pela produção artificial de cicatrizes sob as quais não há, na verdade, nenhuma ferida. Isso mostra o quão longe chegou nosso domínio sobre a destruição, cuja antecipação é o motivo principal da infusão artificial do medo, e também seu resultado principal. Não deve nos incomodar que dediquemos tanto esforço simplesmente a repetir aquilo que, sem nenhum esforço, nos vitimaria de qualquer jeito. Embora esse esforço só seja suportável até certo ponto, persistiremos nele muito além desse ponto, e é aí que está a genialidade do método como um todo. É assim que logramos viver aqui, hoje. Aliás, é isso que chamamos de vida. (...)

Filas na estrada

Quando chegamos à estrada, já havia populações inteiras deslocando-se em filas, num fluxo humano e desumano, carregando nas costas tudo aquilo que lhes havia sido ordenado que carregassem, populações que, como nós, obviamente não se haviam levantado de sua origem voluntariamente, havendo-o feito, não obstante, provavelmente sem muita resistência, compelidos meramente pelo rugir dos motores dos veículos aéreos e antiaéreos. A bem da verdade, sua aparência destruída denotava que, como no nosso caso, é provável que tampouco o lugar de onde vinham se tratava de sua origem, mas sim de uma parada transitória, embora os mais jovens, a seu turno, dessem todos os sinais de serem originários de tais paradas transitórias. Dentro das filas, subfilas de indivíduos presos uns aos outros por correias indestrutíveis de fibra sintética trançada denotavam a reemergência de sistemas penais entre os povos pós-sociais, e também o reaproveitamento de técnicas de reciclagem desenvolvidas em períodos precedentes, e aplicadas por humanos pequenos ou crianças de dedos ágeis, habitando túneis desocupados e reocupados, sob a luz de candeeiros de gordura sintética, o tipo de lugar onde se imagina que se desempenha todo o tipo de trabalho indestrutível. Alguns de nós observaram tais coisas, e especularam a respeito daquelas populações que se moviam nas longas filas pela estrada que, também ela, tinha sido reciclada, pelo menos até certo ponto. E embora aqueles que nos conduziam aparentemente não fizessem qualquer diferença entre nós e os outros, ficou claro logo nos primeiros instantes que também nós fomos observados. Com base nessas observações, sob o rugido dos veículos aéreos e antiaéreos, estabelecemos o protocolo de hostilização mútua que iria reger nosso transporte e deslocamento. Mantivemos esse protocolo através de um regime de gestos, golpes, armamentos automáticos, de madeira, de osso, e gritos. E enquanto fazíamos assim, os oficiais e funcionários, curvados no interior dos seus veículos estreitos e baixos, com o rugir dos motores nos ouvidos, talvez levassem as mãos à cabeça ou ao peito e gritassem, escancarando as bocas, parando apenas no último segundo, de modo a manterem audível a nesga de voz necessária para transmitir instruções aos seus subordinados.

Pedro Rocha de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da UNIRIO. Organizou com Felipe Brito o livro "Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social", publicado pela Boitempo em 2013.