23 de novembro de 2014

Khalepá ta Kalá, ensaio inédito sobre música, de Edson Cruz


 

Podemos apreender o caráter de um povo, de um momento histórico e de um ser humano pela música que ele pratica e ouve. A música não só revela os sentimentos e emoções íntimas do ser humano, mas também os gera e os transforma.
Neste sentido torna-se valioso o conhecimento do material utilizado pela música, mesmo que não o manipulemos como músicos; pois certamente somos mais influenciados pelas sonoridades que nos cercam do que gostaríamos de admitir.

A música pode nos levar a possibilidades de experiências jamais tentadas. Em todas as culturas antigas do mundo, a música existiu em função do ritual, do serviço a Deus, da expansão da consciência e das mais profundas experiências humanas. Os ritos e cultos xamanísticos, os rituais da África ou da América do Sul, do Extremo Oriente, trabalham com um conhecimento, que podemos chamar de inconsciente, de uma força primordial, ou lei, desencadeada através de manifestações musicais.  

De qualquer maneira isso já seria interessante para nós ocidentais ou ocidentalizados. Poderíamos, e isso só cabe a nós, não só deixar essa energia agir de forma mágica, mas também experimentá-la conscientemente, tornando-a mais presente, a nosso dispor e com isso tornando-nos seres mais perfeitos, íntegros. Em suma, mais seres humanos.

Nas civilizações da antiguidade, o som organizado inteligentemente representava a mais elevada de todas as artes, e a música, a mais importante das ciências, o caminho mais poderoso da iluminação religiosa e a base de um governo estável e harmonioso. A música vigorosamente agia sobre o caráter do homem.

Hoje, nós modernos ou pós-modernos, pós-tudo, ex-tudo (como diz Augusto de Campos), não estudamos, não mudamos, emudecemos e o pior: ficamos surdos.
 

quando não ouvimos
a própria voz
desafinamos.

 
Não consideramos mais o som audível um reflexo terreno de uma atividade vibratória, que se dá além do mundo físico, mais fundamental e mais próxima do âmago das coisas. Inaudível ao ouvido humano, esta atividade vibratória cósmica é a origem e a base de tudo que foi e continua a ser gerado no universo.

Além da música, a expressão do discurso era considerada um reflexo no mundo da matéria dos tons cósmicos. Esses tons cósmicos eram chamados pelos egípcios de «o verbo» ou «o verbo dos deuses»; pelos gregos de «a música das esferas».

As palavras, ouvidas por este diapasão, possuem um poder encantatório imenso. Já dizia Louis F. Céline que o trabalho com as palavras pode matar um homem. Se pode matá-lo pode também salvá-lo, digo. Os arranjos são infinitos, aprendamos a escolher.

No princípio, então, sempre esteve o som, o verbo, a palavra, o ritmo, o logos. Como na música, assim na vida, já ouvimos. Diga-me qual a palavra e te direi quem és.

Os poetas, a meu ver, têm a função de recuperar este poder encantatório das palavras, tão corroídas pelos clichês. A função do músico, por outro lado, é colocar ordem no caos. Os ruídos são muitos e afinação e harmonia (esta deusa/artesã que cria as formas mortais) parecem ser os mais adequados para o momento. Ou será que não? (Cartas à redação) De partes bem ajustadas assenhora-se o sábio do Todo.
 

As orelhas não têm pálpebras, apesar da cera.

Conta-se que Villa-Lobos, quando questionado sobre como conseguia compor com tantos ruídos externos (janela aberta aos sons da urbe ensandecida), respondeu com simplicidade: «meu filho, o ouvido externo não tem nada a ver com o ouvido interno».

Enquanto isso, por aqui, dá-lhe música de quinta categoria. Quilos de sertanejo. Toneladas de Michel Teló. Trombetas do funk pancadão. Do lixo ostentação. E durma-se com um barulho desses.

É meu velho, como dizia o velho Platão, ‘khalepá ta kalá’ - as coisas belas são difíceis.




EDSON CRUZ (Ilhéus, BA) é poeta e editor do site de literatura MUSA RARA (www.musarara.com.br). Graduado em Letras pela Universidade de São Paulo, estudou música e psicologia. Fundador e editor do site de literatura Cronópios e da revista literária Mnemozine. Seu livro mais recente é de poemas, Ilhéu (Editora Patuá), indicado para o Prêmio Portugal Telecom de 2014. Antes, lançou Sortilégio (poesia), em 2007, pelo selo Demônio Negro; como organizador, O que é poesia?, pela Confraria do Vento/Calibán; em 2010, uma adaptação do épico indiano, Mahâbhârata, pela Paulinas Editora. Em 2011, foi contemplado com Bolsa de Criação da Petrobras Cultural com o livro Sambaqui, pela Crisálida Editora. E-mail: sonartes@gmail.com