Podemos
apreender o caráter de um povo, de um momento histórico e de um ser
humano pela música que ele pratica e ouve. A música não só revela
os sentimentos e emoções íntimas do ser humano, mas também os
gera e os transforma.
Neste
sentido torna-se valioso o conhecimento do material utilizado pela
música, mesmo que não o manipulemos como músicos; pois certamente
somos mais influenciados pelas sonoridades que nos cercam do que
gostaríamos de admitir.
A
música pode nos levar a possibilidades de experiências jamais
tentadas. Em todas as culturas antigas do mundo, a música existiu em
função do ritual, do serviço a Deus, da expansão da consciência
e das mais profundas experiências humanas. Os ritos e cultos
xamanísticos, os rituais da África ou da América do Sul, do
Extremo Oriente, trabalham com um conhecimento, que podemos chamar de
inconsciente, de uma força primordial, ou lei, desencadeada através
de manifestações musicais.
De
qualquer maneira isso já seria interessante para nós ocidentais ou
ocidentalizados. Poderíamos, e isso só cabe a nós, não só deixar
essa energia agir de forma mágica, mas também experimentá-la
conscientemente, tornando-a mais presente, a nosso dispor e com isso
tornando-nos seres mais perfeitos, íntegros. Em suma, mais seres
humanos.
Nas
civilizações da antiguidade, o som organizado inteligentemente
representava a mais elevada de todas as artes, e a música, a mais
importante das ciências, o caminho mais poderoso da iluminação
religiosa e a base de um governo estável e harmonioso. A música
vigorosamente agia sobre o caráter do homem.
Hoje,
nós modernos ou pós-modernos, pós-tudo, ex-tudo (como diz Augusto
de Campos), não estudamos, não mudamos, emudecemos e o pior:
ficamos surdos.
quando
não ouvimos
a
própria voz
desafinamos.
Não
consideramos mais o som audível um reflexo terreno de uma atividade
vibratória, que se dá além do mundo físico, mais fundamental e
mais próxima do âmago das coisas. Inaudível ao ouvido humano, esta
atividade vibratória cósmica é a origem e a base de tudo que foi e
continua a ser gerado no universo.
Além
da música, a expressão do discurso era considerada um reflexo no
mundo da matéria dos tons cósmicos. Esses tons cósmicos eram
chamados pelos egípcios de «o verbo» ou «o verbo dos deuses»;
pelos gregos de «a música das esferas».
As
palavras, ouvidas por este diapasão, possuem um poder encantatório
imenso. Já dizia Louis F. Céline que o trabalho com as palavras
pode matar um homem. Se pode matá-lo pode também salvá-lo, digo.
Os arranjos são infinitos, aprendamos a escolher.
No
princípio, então, sempre esteve o som, o verbo, a palavra, o ritmo,
o logos. Como na música, assim na vida, já ouvimos. Diga-me qual a
palavra e te direi quem és.
Os
poetas, a meu ver, têm a função de recuperar este poder
encantatório das palavras, tão corroídas pelos clichês. A função
do músico, por outro lado, é colocar ordem no caos. Os ruídos são
muitos e afinação e harmonia (esta deusa/artesã que cria as formas
mortais) parecem ser os mais adequados para o momento. Ou será que
não? (Cartas à redação) De partes bem ajustadas assenhora-se o
sábio do Todo.
As
orelhas não têm pálpebras,
apesar da cera.
Conta-se
que Villa-Lobos, quando questionado sobre como conseguia compor com
tantos ruídos externos (janela aberta aos sons da urbe ensandecida),
respondeu com simplicidade: «meu filho, o ouvido externo não tem
nada a ver com o ouvido interno».
Enquanto
isso, por aqui, dá-lhe música de quinta categoria. Quilos de
sertanejo. Toneladas de Michel Teló. Trombetas do funk pancadão. Do
lixo ostentação. E durma-se com um barulho desses.
É
meu velho, como dizia o velho Platão, ‘khalepá ta kalá’ - as
coisas belas são difíceis.
EDSON
CRUZ
(Ilhéus, BA) é poeta e editor do site de literatura MUSA
RARA
(www.musarara.com.br).
Graduado em Letras pela Universidade de São Paulo, estudou música e
psicologia. Fundador e editor do site de literatura Cronópios
e da revista literária Mnemozine.
Seu
livro mais recente é de poemas, Ilhéu
(Editora Patuá), indicado para o Prêmio Portugal Telecom de 2014.
Antes,
lançou
Sortilégio
(poesia),
em 2007, pelo selo Demônio Negro; como organizador, O
que é poesia?,
pela Confraria do Vento/Calibán; em 2010, uma adaptação do épico
indiano, Mahâbhârata,
pela Paulinas Editora. Em 2011, foi contemplado com Bolsa de Criação
da Petrobras Cultural com o livro Sambaqui,
pela Crisálida Editora. E-mail: sonartes@gmail.com