[Tradução e ensaio, Ronaldo Ferrito]
Domingo, 27 de junho de 2010
5h22
§
Segunda-feira, 28 de junho de 2010
7h06
Coisa de ir à praia e o encontrar. Um verde assim. Em geral, sair do sonho dá trabalho. A beleza tem pouco a ver com as narrativas oníricas. Teria que dar certo medo você não saber onde se encontra. O sentido da desorientação. O pertencimento a uma desorganização secreta. Sonhar não custa nada, ou custa muito caro, das duas uma. Viajar a Xangai também não é fácil. O tempo passa exasperadamente. Estamos mais uma vez em 2010. Por volta de 2010, quero dizer. Estamos é o nome de uma coletividade em miniatura. A imagem de um caracol, ou do disco de Newton, ou dos metacarpos com que o homem cego bate à porta. Este seria, sem dúvida, um verão. Olha como se arranca de si o verbo arrancar. Toque isso. O som de uma oração na ponta da língua. Acabo de acordar. A imagem de um adesivo que se descola de um vidro. Grattage. O regresso é o caminho mais longo. O acordar é tão de “todo” que não lhe deram um deus à parte como ao sonho. Acli/matar. A troca da vigília pelo sono costuma ser uma questão de preço. Alguém deveria se perguntar sobre os sentidos da palavra desigual. A poesia é. A poesia se refere a. E, do nada, a fera. Se pode, na verdade, passar da intempérie à intempérie? O musgo é algo que aclimata. Esta súbita aproximação da terra. Unir. Ratificar. Consentir.
[em itálico, twitter de @frank_lozanodr, e das frases do poeta chuvache Gennadiy Aygi.]
§
Quarta-feira, 30 de junho de 2011
§
1. Uma breve discussão acerca da linguagem e da tarefa da tradução de Viriditas.
Tais aspectos formais são o que garantem na verdade a própria literariedade da obra, de modo que deixá-los de lado redundaria numa tradução técnica, isto é, que tem como escopo não mais que a mera transposição de palavras sinônimas de um idioma a outro, sem levar em consideração o uso peculiar que um texto, e não a língua enquanto sistema, faz delas. Chamamos de vigor de linguagem essa diferença que um texto estabelece em relação ao sistema da língua que se quer sempre igual. Nossa tarefa em Viriditas foi tentar deixar manifestar-se esse vigor de linguagem do texto, sem ignorá-lo, quando o caso exigia.
2. Viriditas. Alguma hermenêutica.
NOTAS
Domingo, 27 de junho de 2010
5h22
Coisa de voltar e o encontrar. Um verde assim. A casa é uma coisa que pesa. Faz tantos anos que estivemos em Xangai. As eras geológicas determinam deste modo a Terra. Esqueci as chaves de novo. Uma porta deveria abrir, mas às vezes não. A mão na maçaneta. A batida. A respiração. O umbral é uma passagem secreta. O tempo que serpenteia. Para cada cabeça há um dintel. Preferiria, entre todas, a palavra trêmula. A cartomante me garantiu que a serpente é um curandeiro muito poderoso. As imagens não mentem. Havia uma serpente deslizando sobre o coração. Imaginar a maçã é comer a maçã. E o que fazer diante de uma porta fechada, senão levantar as mãos pro céu e rir a dois. Veja: é o tempo que nos vê de Xangai, por volta de 2016. Sinta isso: sinta uma cidade em paz. Às vezes não resta mais do que desenhar uma janela na porta. Nada como uma escada para acabar com a loucura do muro. Venha beber chá. Quando a água ferve, o rio a leva. O que passa é o tempo. As partes da escada incluem: o degrau, a base, o espelho, o cantilever, o patamar. Uma taça é só uma taça. Falta, por uma estranha razão, a balaustrada ou o corrimão. Seus lábios estiveram. Na verdade, algumas escadas vão até o céu. A porta que cede. São precisos muitos séculos para formar uma camada. Era azoica. Era pré-cambriana. Era cenozoica. Xangai estava aí.
Segunda-feira, 28 de junho de 2010
7h06
Coisa de ir à praia e o encontrar. Um verde assim. Em geral, sair do sonho dá trabalho. A beleza tem pouco a ver com as narrativas oníricas. Teria que dar certo medo você não saber onde se encontra. O sentido da desorientação. O pertencimento a uma desorganização secreta. Sonhar não custa nada, ou custa muito caro, das duas uma. Viajar a Xangai também não é fácil. O tempo passa exasperadamente. Estamos mais uma vez em 2010. Por volta de 2010, quero dizer. Estamos é o nome de uma coletividade em miniatura. A imagem de um caracol, ou do disco de Newton, ou dos metacarpos com que o homem cego bate à porta. Este seria, sem dúvida, um verão. Olha como se arranca de si o verbo arrancar. Toque isso. O som de uma oração na ponta da língua. Acabo de acordar. A imagem de um adesivo que se descola de um vidro. Grattage. O regresso é o caminho mais longo. O acordar é tão de “todo” que não lhe deram um deus à parte como ao sonho. Acli/matar. A troca da vigília pelo sono costuma ser uma questão de preço. Alguém deveria se perguntar sobre os sentidos da palavra desigual. A poesia é. A poesia se refere a. E, do nada, a fera. Se pode, na verdade, passar da intempérie à intempérie? O musgo é algo que aclimata. Esta súbita aproximação da terra. Unir. Ratificar. Consentir.
[em itálico, twitter de @frank_lozanodr, e das frases do poeta chuvache Gennadiy Aygi.]
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Terça- feira, 29 de junho de 2010
7h33
Coisa de passar em alta velocidade e o ver. Um verde assim. Veja como se desfaz no ar o verbo desfazer. Seria o único que ficaria. O final é uma convenção, como se sabe. Poderia ser uma nuvem bem pequena. Ou não. O dandelion entre as pontas de seus dedos. Ao entrar na bruma, fica claro que a bruma não é mais que uma garoa muito fina. Devotos da madrugada: é o que somos aqui. Adoradores do estuário. O ritual do café: o primeiro gole me lembra de que ainda estou dentro do sonho. Caminhamos por essa vereda muitas vezes. Um passo e depois outro e ainda outro. Que estranhas as gotas que parecem pérolas sobre a pele ou sobre as sobrancelhas. O dandelion perto de seus lábios. Disse, como se estivéssemos em Xangai. As vozes dos pássaros me lembram do que faremos a seguir. O eco de um eco que retrocede, apavorado. Uma palavra é um animal que respira, a cada vez, pela primeira vez. Por volta de 2021. Seu cabelo molhado. Tudo tem sua maneira de acontecer, disso também se sabe. Preferiria não tremer tanto. O dandelion perto de suas coxas. A palavra alabastro. As palavras, garça que voa. O olhar que se junta à respiração para dizer: é por isso que a gente se abraça, e em seguida se lembra. O cinza pode ser, às vezes, o tom de uma voz. Não quero ficar: nunca ficarei. Fugir tem sua graça: é o que se costuma dizer. Fugir sempre deixa um rabo para que lhe pisem. Fugir é um ir para Fug. Estamos sempre prestes a cruzar uma fronteira. O silêncio, ao contrário, é uma verdade feita nó, esperando sua forma. Essas aves não são cruéis. O dandelion no ar outra vez.
Coisa de passar em alta velocidade e o ver. Um verde assim. Veja como se desfaz no ar o verbo desfazer. Seria o único que ficaria. O final é uma convenção, como se sabe. Poderia ser uma nuvem bem pequena. Ou não. O dandelion entre as pontas de seus dedos. Ao entrar na bruma, fica claro que a bruma não é mais que uma garoa muito fina. Devotos da madrugada: é o que somos aqui. Adoradores do estuário. O ritual do café: o primeiro gole me lembra de que ainda estou dentro do sonho. Caminhamos por essa vereda muitas vezes. Um passo e depois outro e ainda outro. Que estranhas as gotas que parecem pérolas sobre a pele ou sobre as sobrancelhas. O dandelion perto de seus lábios. Disse, como se estivéssemos em Xangai. As vozes dos pássaros me lembram do que faremos a seguir. O eco de um eco que retrocede, apavorado. Uma palavra é um animal que respira, a cada vez, pela primeira vez. Por volta de 2021. Seu cabelo molhado. Tudo tem sua maneira de acontecer, disso também se sabe. Preferiria não tremer tanto. O dandelion perto de suas coxas. A palavra alabastro. As palavras, garça que voa. O olhar que se junta à respiração para dizer: é por isso que a gente se abraça, e em seguida se lembra. O cinza pode ser, às vezes, o tom de uma voz. Não quero ficar: nunca ficarei. Fugir tem sua graça: é o que se costuma dizer. Fugir sempre deixa um rabo para que lhe pisem. Fugir é um ir para Fug. Estamos sempre prestes a cruzar uma fronteira. O silêncio, ao contrário, é uma verdade feita nó, esperando sua forma. Essas aves não são cruéis. O dandelion no ar outra vez.
[em itálico, do twitter de @javier_raya.]
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Quarta-feira, 30 de junho de 2011
8h31
Coisa de se ver na bacia d’água e o encontrar. Um verde assim. A urgência de viver é, às vezes, esmagadora. Uma legião de formigas se desloca da nuca até o plexo solar em passos redobrados. As cócegas e a ansiedade provocam uma risada semelhante. Alguns acreditam que o esterno seja, de fato, um abismo. Um último passo. Uma saudação marcial. O exército e o amor já coincidiram em várias metáforas históricas. O corpo, que cai. Acli/matar. Te contei da mais recente expedição à Xangai? Encontramos as longas hastes de erva-doce a caminho do mar. A decisão de cortar implica sempre um ingrediente de crueldade. Os caminhos, por alguma razão estranha, serpenteiam. As plantas que sempre são as plantas de teus pés. A raiz, já fora da terra, adquire uma aparência sinistra. Ao Para Fora, em certas circunstâncias, chamamos Extimidade. O uso das maiúsculas tende a ser significativo. De repente, desse nada que costuma ser verde, a data: por volta de 2010. O presente não deixa ir ao presente. Em inglês, o presente é uma lembrancinha. Te pego. Te bebo. Te consumo. Será isso uma arma, ou um colo. Certas perguntas não precisam de ponto de interrogação. Existem plantas cujo aroma. O momento em que a xícara pousa no lábio inferior e a fumaça se introduz com rapidez pelas fossas nasais. EvocarInvocarProvocar. Mas existem tantas formas na calma e outras tantas na piedade. Um fotógrafo profissional, sem dúvida, poria sua atenção justamente nas marcas de estria na borda do traste. Se compram pequenos hábitos, pequenas esperanças. A vida exerce uma pressão constante sobre a pele. O passar do tempo. Poderíamos dizer algo. Ferver, como o sangue. Ferver, como uma forma de esterilizar. Ferver, como um dos modos da palavra ebulição. O primeiro gole de chá me ensina um pouco sobre aquela ira com a qual tudo começou no Ocidente. O segundo gole é, na verdade, uma paisagem que desliza, inteira, entre os órgãos quentes. Esse é o meu alento. Minha fraca silenciosa curta respiração.
Coisa de se ver na bacia d’água e o encontrar. Um verde assim. A urgência de viver é, às vezes, esmagadora. Uma legião de formigas se desloca da nuca até o plexo solar em passos redobrados. As cócegas e a ansiedade provocam uma risada semelhante. Alguns acreditam que o esterno seja, de fato, um abismo. Um último passo. Uma saudação marcial. O exército e o amor já coincidiram em várias metáforas históricas. O corpo, que cai. Acli/matar. Te contei da mais recente expedição à Xangai? Encontramos as longas hastes de erva-doce a caminho do mar. A decisão de cortar implica sempre um ingrediente de crueldade. Os caminhos, por alguma razão estranha, serpenteiam. As plantas que sempre são as plantas de teus pés. A raiz, já fora da terra, adquire uma aparência sinistra. Ao Para Fora, em certas circunstâncias, chamamos Extimidade. O uso das maiúsculas tende a ser significativo. De repente, desse nada que costuma ser verde, a data: por volta de 2010. O presente não deixa ir ao presente. Em inglês, o presente é uma lembrancinha. Te pego. Te bebo. Te consumo. Será isso uma arma, ou um colo. Certas perguntas não precisam de ponto de interrogação. Existem plantas cujo aroma. O momento em que a xícara pousa no lábio inferior e a fumaça se introduz com rapidez pelas fossas nasais. EvocarInvocarProvocar. Mas existem tantas formas na calma e outras tantas na piedade. Um fotógrafo profissional, sem dúvida, poria sua atenção justamente nas marcas de estria na borda do traste. Se compram pequenos hábitos, pequenas esperanças. A vida exerce uma pressão constante sobre a pele. O passar do tempo. Poderíamos dizer algo. Ferver, como o sangue. Ferver, como uma forma de esterilizar. Ferver, como um dos modos da palavra ebulição. O primeiro gole de chá me ensina um pouco sobre aquela ira com a qual tudo começou no Ocidente. O segundo gole é, na verdade, uma paisagem que desliza, inteira, entre os órgãos quentes. Esse é o meu alento. Minha fraca silenciosa curta respiração.
[Em itálico, do twitter de @isaimoreno e frase de Peter Sloterdijk, Ira y Tiempo.]
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Quinta-feira, 01 de julho de 2010
8h27
Coisa de beirar a água e o encontrar. Um verde assim. Isso já faz tantos segundos. Foi o que foi, ou o que teria sido. De fato, muitos crimes ocorrem em lugares bonitos. O sangue pulsa sob a paisagem, escura. O verão mostra os dentes. A beleza, que mata. Sinistra: pronuncia a palavra tão suavemente quanto possível. A suave sanha do verbo acli/matar. O estranhei muito quando estive em Xangai, costumava escrever coisas assim. A carta é um navio. Já corria o ano de 2024. Nesta casa não nos sentimos em casa dentro de um mundo interpretado. Se tivesse aberto a janela, o ar da tarde teria me ajudado a lembrar algo que. As garças deslizando. Costumava ir de qualquer modo. Conscientemente, como dizem. Medindo todas e cada uma das consequências. Existe um lugar que se chama Fug e lá, dentro, há uma caverna. Às vezes você se esquece de respirar, sei bem como é. Este é o momento em que aparece o zumbido no ouvido direito. Às vezes o tempo passa. A loucura ambulatorial é o diagnóstico de uma enfermidade. A consciência só é recobrada caso se tenha conseguido estabelecer a necessária distância. Dessa maneira, de longe, na terra de Fug ou de Xangai, é possível voltar o rosto e pensar. A quantidade de espaço de que necessita o verbo considerar. Amar a distância é a de hoje. Uma mulher vai ao limite do limite para acomodar suas ideias dentro de uma valise. Erguer a mão até o céu, movê-la da direita para a esquerda: apagar o mundo. Esse movimento doce, melancólico, elegíaco. Dizer adeus ou saudar. As garças são animais metafísicos. Os ruídos de sua garganta. Os ruídos dos passos ao redor do estuário. Afigure-se no mundo dos reflexos e cale-se. Vê isso. Receber uma carta é embarcar num trem ou num avião. Ler-te assim. Me chamo corpo que não está. Escrever é ir. A carta está no lugar de Fug. É preciso fechar os olhos ao apertar o botão da máquina fotográfica. Somente segundos depois descobriria as imagens da dança: as garças deslizando. A aurora da noite. Os agradecimentos.
Coisa de beirar a água e o encontrar. Um verde assim. Isso já faz tantos segundos. Foi o que foi, ou o que teria sido. De fato, muitos crimes ocorrem em lugares bonitos. O sangue pulsa sob a paisagem, escura. O verão mostra os dentes. A beleza, que mata. Sinistra: pronuncia a palavra tão suavemente quanto possível. A suave sanha do verbo acli/matar. O estranhei muito quando estive em Xangai, costumava escrever coisas assim. A carta é um navio. Já corria o ano de 2024. Nesta casa não nos sentimos em casa dentro de um mundo interpretado. Se tivesse aberto a janela, o ar da tarde teria me ajudado a lembrar algo que. As garças deslizando. Costumava ir de qualquer modo. Conscientemente, como dizem. Medindo todas e cada uma das consequências. Existe um lugar que se chama Fug e lá, dentro, há uma caverna. Às vezes você se esquece de respirar, sei bem como é. Este é o momento em que aparece o zumbido no ouvido direito. Às vezes o tempo passa. A loucura ambulatorial é o diagnóstico de uma enfermidade. A consciência só é recobrada caso se tenha conseguido estabelecer a necessária distância. Dessa maneira, de longe, na terra de Fug ou de Xangai, é possível voltar o rosto e pensar. A quantidade de espaço de que necessita o verbo considerar. Amar a distância é a de hoje. Uma mulher vai ao limite do limite para acomodar suas ideias dentro de uma valise. Erguer a mão até o céu, movê-la da direita para a esquerda: apagar o mundo. Esse movimento doce, melancólico, elegíaco. Dizer adeus ou saudar. As garças são animais metafísicos. Os ruídos de sua garganta. Os ruídos dos passos ao redor do estuário. Afigure-se no mundo dos reflexos e cale-se. Vê isso. Receber uma carta é embarcar num trem ou num avião. Ler-te assim. Me chamo corpo que não está. Escrever é ir. A carta está no lugar de Fug. É preciso fechar os olhos ao apertar o botão da máquina fotográfica. Somente segundos depois descobriria as imagens da dança: as garças deslizando. A aurora da noite. Os agradecimentos.
[Em itálico, frases de Rainer Maria Rilke e Ramón López Velarde.]
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VIRIDITAS E A EXPERIÊNCIA DA TRADUÇÃO POÉTICA
1. Uma breve discussão acerca da linguagem e da tarefa da tradução de Viriditas.
Qualquer
teoria de tradução da qual possamos lançar mão será antes de
tudo uma decisão de posicionamento e reflexão frente ao fenômeno
da linguagem, posto que traduzir não seria outra coisa senão uma
atividade de pensar a linguagem. Este é um pressuposto não só de
uma teoria específica, mas simplesmente para que exista alguma
teoria; portanto, é um pressuposto metateórico do qual não
poderíamos, nesta tarefa, eludir. A experiência que temos da
linguagem, em face de qualquer texto que enfrentemos, será
necessariamente a fundação sobre a qual nos empenhamos na tarefa de
traduzir, pois nos conduz à decisão de que caminho tomar que, como
tal, não deverá ser arbitrária se também quiser ser bem-sucedida.
Tal decisão está em questão desde a tentativa de tradução de
vocábulos estritamente técnicos até a de âmbito artístico (nesta
última inscrevemos o nosso caso de verter para o português o livro
de Cristina Rivera Garza), pois subjaz a ambas tanto um modo de ser e
se apresentar do texto, quanto o vigor de linguagem que
ele é
e que o faz ser como
ele é.
Ou seja, numa tradução não podemos nunca desvincular
o que é
o texto do
como é
o texto, tendo em vista a experiência de linguagem que propõe. Não
pretendemos construir a partir dessa vinculação, porém, uma visão
essencialista de como
deveria ser
invariavelmente o texto vertido em relação a seu original, pois
esse pode assumir muitas versões, e é certo que sempre as haverá
com diferenças. Antes entendemos que as possibilidades de realização
das diferentes versões de um texto são cabíveis na medida em que
algo garante uma referência
comum a
elas.
Referência
aqui não é significado, nem significação, nem mesmo uma
equivalência objetiva qualquer entre a tradução e o original, mas
aquilo que deve permanecer em ambos, não mais como original e
versão, senão como
identidade das diferenças entre
obra original
e obra da
tradução:
o próprio vigor da linguagem que preside ambas e lhes confere a
possibilidade de estarem em duas línguas distintas para revelar o
“mesmo”. Perverter essa vinculação não passaria sem nenhuma
consequência.
No
universo da tradução poética ou literária, essa decisão
hermenêutica que conduz a tarefa da tradução suscita uma grande
questão, em geral mal entendida, que podemos entrever com as
propostas de tradução criativa (transcriação) dos irmão Campos,
embasadas na sua maior parte na proposta antropofágica de Oswald de
Andrade e nas críticas e teses firmadas por Ezra Pound. Tanto o
Augusto quanto o Haroldo se valem de sua experiência como poetas
para a tradução e, por isso, poderiam ser acusados levianamente de
terem traduzido algumas obras não para o português, mas para o
concretismo. A confusão dessa acusação se dá apenas porque os
mesmos princípios do “verbivocovisual” lhes servem na criação
e na tradução, por isso dizer “transcriação”, de modo que se
reúnem numa mesma atividade. Pound (1990, 63) possui a mesma postura
e também as iguala a partir das dimensões da linguagem na poesia,
as quais nos aponta em seu ABC
da Literatura como
fanopeia,
melopeia
e logopeia.
O que o poeta americano nos mostrava analiticamente como três
dimensões foi entendido e amadurecido pelos concretos (referimo-nos
aqui aos cinco primeiros concretos) como uma estrutura tríplice que
não se pode desmembrar, posto que esquecer alguma dessas dimensões
implicaria lesar as outras duas. Embora Pound também nos deixe claro
isso ao registrar a dependência que a logopeia
possui em relação à fanopeia
e à melopeia,
ele não explicita no seu estudo a sua interdependência radical, ou
melhor, a simultaneidade em que ocorrem essas dimensões.
Essa breve reflexão que colocamos de antemão, e estenderemos ainda
um pouco, é necessária para nós, não porque nos conformamos a uma
tradução concreta, não foi esse nosso esforço nem a linguagem do
livro nos permitiria, mas porque compartilhamos aqui da decisão de
uma tradução criativa, que prefiro chamar poética (sinalizando o
ato de criação literária que implica traduzir uma obra de
literatura), que busca sobretudo considerar com primazia a
“materialidade” da língua trabalhada pela linguagem do texto em
sua individualidade na tarefa da tradução.
Chamamos
de individualidade o nível específico em que a língua se encontra
dentro de um texto, isto é, o estilo único, o vocabulário, a
poética que ele funda em seu exercício de realizar e recriar a
língua de maneira própria. Numa tradução poética/literária,
esse é um critério a ser considerado acima de outros, tais como o
mero significado correspondente num dicionário bilíngue. A
tradução, levando em consideração a individualidade do texto, não
pode colocar qualquer significado universalizante para um vocábulo,
se este causar detrimento aos trabalhos realizados na materialidade
da linguagem que o texto original ostenta no seu esforço de renovar.
Como traduzir Manuel de Barros ou Guimarães Rosa para outras línguas
sem se envolver também na recriação da língua alvo? O que nos
faria concordar que uma tradução que buscasse meramente os
vocábulos correspondentes, sem qualquer exercício de criação, em
âmbito morfológico e sintático, nos garantiria maior fidelidade ao
texto? Ao que do texto se manteve fiel tal tradução? E se manteve
ao que mais importava? O questionamento contrário acontece
claramente em relação às traduções que nos chegam com grande
quantidade de neologismos e que alguns críticos, por vezes, acusam o
tradutor de um português arrevesado, sem se darem conta do esforço
do tradutor para trazer o vigor de linguagem que flagrou no original
para seu vernáculo. É acerca dessa questão da fidelidade ao vigor
de linguagem sobre a mera correspondência “palavra a palavra” da
obra que comenta Trajano Vieira (2010, 21) quando prefacia a tradução
da Ilíada por Haroldo de Campos:
“Desconheço outra tradução tão fiel à complexidade formal da Ilíada quanto esta. Entre as mais criativas a que tenho tido acesso nos últimos anos estão as de Robert Fagles e Stanley Lombardo, ambas para o inglês. As duas são excelentes e trazem a marca da dicção coloquial dos Cantos de Ezra Pound. Entretanto, ao adotarem esse registro, deixam de lado aspectos estilísticos relevantes do texto grego. No caso da tradução de Haroldo de Campos, esses traços ressurgem de uma perspectiva paramórfica, e não isomórfica, isto é, são reinventados de modo original, e não reproduzidos mecanicamente.”
Tais aspectos formais são o que garantem na verdade a própria literariedade da obra, de modo que deixá-los de lado redundaria numa tradução técnica, isto é, que tem como escopo não mais que a mera transposição de palavras sinônimas de um idioma a outro, sem levar em consideração o uso peculiar que um texto, e não a língua enquanto sistema, faz delas. Chamamos de vigor de linguagem essa diferença que um texto estabelece em relação ao sistema da língua que se quer sempre igual. Nossa tarefa em Viriditas foi tentar deixar manifestar-se esse vigor de linguagem do texto, sem ignorá-lo, quando o caso exigia.
2. Viriditas. Alguma hermenêutica.
Viriditas
foi escrito em espanhol pela mexicana Cristina Rivera Garza, que é
diretora do MFA (um programa interdisciplinar de residência) em
Criação Literária na Universidade da Califórnia, San Diego. O
livro em questão é um diário de verão que abrange em sua maior
parte o período de junho e julho de 2010, havendo também registro
de outros dias, de março, abril e dezembro. É evidentemente um
diário literário, no qual notamos que algumas palavras se tornam
chaves heurísticas na poética da autora. O maior destaque entre
essas palavras heurísticas se articula com o termo latino
“viriditas”,
que, além de ser o próprio título, consta da epígrafe do livro,
explicitando que foi colhido pela autora em um sermão da abadessa e
teóloga Hildegard de Bingen, a saber: “Si
la tierra no tuviera humedad y viriditas, se derrumbaría como las
cenizas...”[i].
A
autora deixa o termo em latim, não o traduz para o espanhol,
sugerindo se tratar de uma “palavra-conceito” que, como tal, não
se esclareceria com uma tradução literal simplesmente. O que
significa, porém, tal termo latino, quando investigamos seu sentido,
torna-se fundamental para entendermos intertextualmente, ao menos em
parte, o uso em contexto muitas vezes inabitual da palavra “verde”.
O termo latino viriditas,
que
dicionarizado significa simplesmente verde; verdor; verdura; viço,
encontra-se com sentido mais denso e filosófico no pensamento
teológico da abadessa beneditina Hildegard de Bingen (1098-1179).
Nos sermões da abadessa, seu sentido se aproximaria ao de uma
vitalidade
natural subjacente
aos seres, dada por Deus. Essa chave hermenêutica é dada pela
autora, que não quis simplesmente traduzir o vocábulo para “verde”,
nem usar verde para o título de seu livro. Isso nos leva a entender,
todavia, de modo mais filosófico, também o uso reiterado, a cada
início de muitos dias registrados em seu diário de verão, daquilo
que se apresenta na fórmula “un
verde así”.
Alguns exemplos: “Cosa
de elevar el rostro y encontrarlo. Un verde así.”;
“Cosa
de asomarse al plato y encontrarlo. Un verde así.”;
“Cosa
de distraerse y encontrarlo. Un verde así.”
Se por um lado, o termo latino permanece sem tradução no título,
ele não se encontra isento de um diálogo intertextual constante no
corpo do texto, onde se apresenta um jogo aberto, sem uma
interpretação concludente de Cristina para o “viriditas”
da abadessa. Ao contrário, nem “viriditas”,
nem o “verde”
podem ser compreendidos de uma maneira definitiva e justamente por
essa referência mútua que estabelecem. Este passa a ter
significado, no texto e co-texto poético, tão enigmático quanto
aquele. Essa intertextualidade que promove uma busca de decifração
para a palavra permeia a tarefa de uma interpretação/decifração
do leitor sobre os termos em causa. O fato da palavra latina
“viriditas”
ter sua continuidade de sentido na palavra espanhola “verde”,
a partir da poética estabelecida no diário, não é uma proposta de
tradução da autora para o pensamento da abadessa, nem uma repetição
do mesmo conceito teológico, mas antes empreende uma tentativa de
dialogar com o mesmo e de renová-lo numa vitalidade atualizante e
poética de seu sentido. Esse mesmo posicionamento da autora para com
o sentido originário da palavra latina deveria, a nosso ver, ser
incorporado pela nossa experiência de tradução, ao considerarmos
que “verde” aqui não é simplesmente uma cor, pois inclusive
parece-nos uma palavra mais substantiva que adjetiva na interpretação
de seu uso no livro, senão que devemos estabelecer a mesma
continuidade de recriação de Cristina, dessa vez com as palavras
espanholas, que não devem ser transpostas ao português, senão
manifestadas com o mesmo viço e vigor de sentido encontrado em
Viriditas,
na
fórmula
“um
verde así.”
Um
segundo dado ainda sobre esta questão é, ironicamente, o primeiro
dia do livro ser do mês de dezembro (inverno) de 2010, isto é, a
meses após o período da estação contemplada pelo diário.
Colocado depois pela autora, ao que indica a sua cronologia,
acreditamos que ele se insere apenas como uma espécie de preâmbulo
(sua datação não traz a descrição ou testemunho de um dia de
fato, mas demarca a data em que foi escrito simplesmente) em que
prenuncia algumas palavras nodais que aparecerão repetidamente ao
longo do diário, formando um metatexto, uma breve explicação do
processo após já tê-lo feito, em que o estilo e a poética também
são expostos como processo em meio a sua própria justificativa.
Nesse preâmbulo ela afirma o que é o diário:
"También podría ser un sistema de registro, un libro. Únicamente eso, o hasta eso. Uno suele no saber si inició una mañana de marzo, cuando solo se pensaba en un bosque mientras se veía una fotografía de un cielo muy gris, o poco más tarde, un mediodía de abril, o si empezó después, una tarde de junio, cuando las palabras verde y Shanghái aparecieron juntas por primera vez. Uno sabe en realidad pocas cosas." [ii]
"También podría ser un sistema de registro, un libro. Únicamente eso, o hasta eso. Uno suele no saber si inició una mañana de marzo, cuando solo se pensaba en un bosque mientras se veía una fotografía de un cielo muy gris, o poco más tarde, un mediodía de abril, o si empezó después, una tarde de junio, cuando las palabras verde y Shanghái aparecieron juntas por primera vez. Uno sabe en realidad pocas cosas." [ii]
[grifo nosso]
Essas
duas palavras grifadas acima serão as que terão maior número de
ocorrências e funcionarão como palavras-conceitos, de modo que seu
aparecimento prescinde de um contexto de uso habitual ou lógico, o
que deve ser observado na tradução. Xangai, em Viriditas,
se assemelha muitas vezes a uma espécie de “Pasárgada”, um
lugar com referência puramente ficcional e não geográfico. Por
vezes, não é um lugar, mas um tempo, ou mesmo a reunião de ambos:
um espaço-tempo; como vemos, por exemplo, neste excerto tirado do
dia 21 de junho: “…
Los autos son máquinas fosforescentes. Íbamos a manejar hasta allá,
hasta Shanghái, ca. 2034. Cosa de creer en la palabra eternidad. El
posesivo.” [iii]
Este
preâmbulo também nos deixa claro o processo de composição de sua
poética e de como se dá a descrição dos dias. Neles não se
apresentam narrativas lineares, mas experiências, criações e
memórias fragmentárias. A sintaxe sofre truncamentos e não cuida
dar conta da coesão do texto, como acorre em uma narrativa comum. A
descrição dos dias é o resultado de uma forma de pastiche da
memória e das experiências. Há muitas vezes momentos de livre
fluxo discursivo, de retomadas abruptas de palavras anteriores, sem
contexto previsível. Assim nos adverte sutilmente:
“Pero un libro es un sistema de registro del paso de algunos pocos días: treinta, tal vez treinta y dos días de un verano muy largo. Se resaltan los elementos que han aparecido: un color, por ejemplo; un lugar mítico, o fantasmagórico, o muy vivo. Se elige una cláusula secreta: escribiré una frase y borraré dos, y entonces escribiré otra frase. Borrar es importante también. Se empieza entonces o se continúa, que es algo más apegado a la verdad. Se continúa hasta que un día, el día menos pensado, en efecto, se detiene. Uno se detiene. Y aunque se vuelva la vista atrás, uno no deja de detenerse." [iv]
“Pero un libro es un sistema de registro del paso de algunos pocos días: treinta, tal vez treinta y dos días de un verano muy largo. Se resaltan los elementos que han aparecido: un color, por ejemplo; un lugar mítico, o fantasmagórico, o muy vivo. Se elige una cláusula secreta: escribiré una frase y borraré dos, y entonces escribiré otra frase. Borrar es importante también. Se empieza entonces o se continúa, que es algo más apegado a la verdad. Se continúa hasta que un día, el día menos pensado, en efecto, se detiene. Uno se detiene. Y aunque se vuelva la vista atrás, uno no deja de detenerse." [iv]
No
caso do diário de Cristina, ter como língua alvo o português não
torna nada mais simples; ao contrário, essa falácia (da tradução
espanhol > português) tende a cair quando nos deparamos com seu
experimentalismo vocabular, em que os níveis morfológico, semântico
e sintático da frase competem com uma associação gráfica na
construção de sentido do texto, que muitas vezes nos força a uma
opção de risco na busca de uma correspondência, constrangendo-nos
a evitar uma tradução mais óbvia e literal. Em virtude da decisão
de conservar certos aspectos poéticos em detrimento de uma mera
tradução coloquial, e tendo em mãos um livro declaradamente
literário, até alguns casos mais corriqueiros e banais não se
furtam ao questionamento de uma necessidade de transcriação ou
mesmo preservação, que nos leva a reconsiderar diversos casos –
como a redundante pronominalização do espanhol, que podemos
averiguar no excerto acima – como parte a ser preservada de alguma
maneira no português, quando seria numa tradução meramente
técnica, esquecida.
Este
caso pode passar, na opinião de um tradutor de livros técnicos,
como uma tradução “macarrônica”, em que se supostamente se
misturam elementos da gramática espanhola com os da portuguesa –
uma acusação razoável se o que estivesse em causa fosse apenas uma
notícia de jornal e não uma aliteração num texto literário.
3.
Viriditas.
Alguma transcriação.
Mostrarei
a seguir uma passagem em que julgamos ser necessário um esforço de
criação, para nos conformarmos à nossa opção de tradução
poética, na qual privilegiamos em conservar o processo poético da
autora em detrimento de uma mera transposição da palavra para o
português. No dia datado no diário como 28 de junho, a autora
desmembra graficamente em duas partes o verbo espanhol adherir,
usando uma barra, formando “ad/herir”.
A necessidade de recriar esse procedimento se torna maior quando mais
à frente temos uma segunda ocorrência do verbo, agora já sem a
separação das barras, mas em um contexto que sugere a mesma
ambiguidade da palavra criada (ad/herir),
que evoca o sentido de “adherir”
(aderir) e “herir”
(ferir) ao mesmo tempo. A passagem diz:
“Ad/herir. El intercambio entre la vigilia y el sueño suele ser una cuestión de costos. Alguien debería preguntarse sobre los significados de la palabra desigual. La poesía es. La poesía se atiene a. Y, de la nada, la bestia. ¿Se puede en realidad avanzar de la intemperie hasta la intemperie? El musgo es algo que se adhiere. Esta súbita aproximación de la tierra. Unir. Ratificar. Consentir.” [v]
Em
português, o verbo “aderir”, ao ser separado como no original
(ad/erir*), não conservaria a ambiguidade explícita, lograda
graficamente, com o verbo “ferir” (“herir”),
para significar “aderir” e “ferir” ao mesmo tempo. Pensamos,
para a solução gráfica, em “con/ferir”, “pre/ferir” e uma
série de outros vocábulos cabíveis em que o “ferir” pudesse se
manter. A dificuldade, no entanto, foram as posteriores ocorrências
deste verbo que exigem uma coerência semântica além da gráfica na
sua tradução, como p.e. em “El
musgo es algo que se adhiere”,
constante a seguir. Aí já não caberiam, com coerência semântica,
os vocábulos “confere” ou “prefere” (“o musgo é algo que
confere”, “o musgo é algo que prefere”), pois se anularia a
ação do musgo que é a de aderir, se juntar, se harmonizar. O verbo
criado por Cristina traz uma antítese entre a junção, a união e o
ferir que essa união (a adesão) também comporta. “Ad/herir” é
harmonizar e ferir, tal como faz o musgo que se une e ao mesmo tempo
deteriora. A princípio nenhuma palavra em português que conservasse
graficamente “ferir” em sua forma, teria também por si mesma o
sentido de “juntar”, “unir”. Sentido esse que aparece como
sinônimo de “adherir”
ao fim do texto. Sugerimos, pois, uma recriação do processo e
propusemos “acli/matar”. O musgo aclimata e mata, ou seja,
“acli/mata”. De fato, a ação do musgo de aderir-se à parede é
cambiada, por nós, por essa outra “função” característica de
aclimatar o ambiente, mas igualmente de maneira danosa. Essa
combinação de sentidos simultâneos nos pareceu bem atendida em
nossa proposta. Acreditamos, não sem pequena mudança, conservar a
ambiguidade paradoxal (que persiste em todas as ocorrências dessa
palavra no texto – ela se encontra também em outros dias do
diário) de algo que ao mesmo tempo se harmoniza e é causa de
prejuízo: aclimata e mata, adhiere
e
hiere.
A tradução ficou:
“Acli/matar. A troca da vigília pelo sono costuma ser uma questão de preço. Alguém deveria se perguntar sobre os sentidos da palavra desigual. A poesia é. A poesia se refere a. E, do nada, a fera. Se pode, na verdade, passar da intempérie à intempérie? O musgo é algo que aclimata. Esta súbita aproximação da terra. Unir. Ratificar. Consentir.”
Logo
após a palavra “acli/matar” na tradução, colocamos uma nota
explicando a relação com o original e os motivos de nossa decisão.
Vale observar ainda que a partícula “ad”
(ad/herir)
que simetricamente está correspondendo nesta tradução ao português
a “acli” (acli/matar), por não ter qualquer significado
sincrônico em espanhol, nem ter sido explorada sua origem latina no
texto (o sentido diacrônico), dispensaria uma preocupação especial
na conservação do processo poético. Fica clara a intenção da
autora em criar uma ambivalência de sentido, não entre as partes da
palavra originadas pela separação por barra, mas entre as palavras
já mencionas (adherir
e herir),
num processo que
evidencia antes uma relação semântica de continência entre elas,
do que uma recuperação etimológica, ou de formação. O
procedimento é poético, não etimológico.
No
dia 1º de julho, novamente encontramos uma ocorrência desta mesma
palavra, agora já entendida claramente como neologismo. O
aparecimento, no entanto, dá-se de maneira distinta do contexto
analisado acima, pois anteriormente à palavra “ad/herir”,
encontramos “hiere”,
que é a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do
verbo herir.
A frase é: “La
belleza, que hiere”.
Observe-se que o próprio contexto anterior dessa frase deixa clara
novamente a antítese que irá sempre acompanhar, na poética de
Cristina, a relação de simultaneidade entre harmonia e dor
especialmente através dessas palavras em questão. Essa frase
funciona como um índex para outra, na qual novamente veremos a
palavra ad/herir:
“La
suave saña del verbo ad/herir.”
Vale notar que o próprio contexto sugere, numa referência direta ao
sentido dessa palavra, uma antítese, através do sintagma também
antitético: “La
suave saña”.
Todo cotexto e contexto em que se inserem essas duas frases, na
verdade, sugerem uma cena cujos princípios narrativos são a
antítese e o paradoxo:
“Muchos crímenes ocurren de hecho en lugares hermosos. La sangre palpita bajo el paisaje, oscura. Esto es un diente estival. La belleza, que hiere. Ominosa: pronuncia la palabra tan suavemente como puedas. La suave saña del verbo ad/herir.” [vi]
Neste
caso, a nossa atenção não é tanto o verbo “ad/herir”,
posto que neste contexto mais poderíamos confirmar a nossa tradução
proposta como adequada para trazer ao português o processo poético
de Cristina. Tivemos que nos concentrar nas implicações de decidir,
neste trecho, sobre o verbo “hiere”,
em “La belleza,
que hiere”
(a beleza, que fere), uma vez que se articula evidentemente com
aquele outro que traduziremos por “acli/matar”, para mantermo-nos
coesos com as ocorrências anteriores. Se traduzimos “hiere”
pelo óbvio “fere”, isto é, “a beleza, que fere”, e
posteriormente traduzirmos “La
suave saña del verbo ad/herir.”
por
“A suave sanha do verbo acli/matar.”, esqueceremos a mútua
referência entre os termos, que se faz novamente aqui a partir da
barra que evidencia graficamente o verbo “herir”
contido no verbo “ad/herir”.
Essa relação de continência é sem dúvida a intenção da autora
e já se percebe em todo contexto e cotexto. Esse processo que
tentamos conservar nos levou a tradução criativa também da palavra
“hiere” por “mata”. Assim, as frases foram traduzidas,
respectivamente, “a beleza, que mata”; “a suave sanha do verbo
acli/matar”. Em outros momentos em que os verbos não surgiam
articulados, e nos pareceu conveniente manter a tradução comum de
“ferir” para o verbo “herir”,
o fizemos, se também assim contribuímos para mais bem conservarmos
a escrita poética de Cristina.
Este caso de desmembramento da palavra e sua manipulação no
cotexto não é único na escrita de Cristina, o que é mais um
motivo para preservá-lo ao máximo.
Um
segundo caso, mais simples enquanto processo, mas que ensejou um
enorme risco para a tradução foi o da palavra huir
(em português, fugir). No dia 6 de julho de seu diário, a autora
nos diz: “Huir
es ir hacia Hu”.
Novamente desmembra a palavra em “Hu/ir”,
se quiséssemos lançar mão da barra, para depois usar livremente a
forma “Hu”,
designando um lugar. Desmembrando, como faz Cristina, o verbo “Huir”,
“Fugir”, teríamos a tradução de “Hu” por “Fug”. “Hu”
(Fug) é um lugar criado que assume o mesmo valor de realidade que
Xangai em seu diário, uma segunda Pasárgada de Cristina. Ele mesmo
não existe fora do contexto ficcional fundado na palavra, na
linguagem. Sua primeira ocorrência, no entanto, nos intrigou, pois
não ocorre no dia 6, após essa origem poética, mas no dia 1º de
julho, preconizando o processo de desmembramento, explicitado somente
depois. A primeira ocorrência é “Hay
un lugar que se llama Hu y ahí, dentro, hay una cueva”,
em seguida no mesmo dia outra ocorrência “Así,
desde lo lejos, en la tierra de Hu o de Shanghái, es posible volver
el rostro y pensar”,
que poderiam ser traduzidas inadvertidamente como: “Há
um lugar que se chama Hu
e lá, dentro, há uma caverna”
e “Dessa
maneira, de longe, na terra de Hu
ou de Xangai, é possível voltar o rosto e pensar”.
Foi o que a princípio fizemos, mesmo após muito pesquisarmos e não
encontrarmos nenhum lugar com este nome. Só posteriormente a
traduzirmos mais outras 3 passagens com esse lugar desconhecido
chegamos àquela origem inventada no dia 6. Seguindo o mesmo processo
da autora, traduzimos “Huir
es ir hacia Hu”
por “Fugir
é ir para Fug”,
o que esclarece o processo de criação deste topônimo ficcional.
Por conseguinte, tivemos que trocar o termo “Hu” por “Fug” em
suas ocorrências anteriores, para que, depois disso feito, a
estranheza que causava o nome “Fug” (Hu), ganhasse sua explicação
posterior, no mundo criado no diário, quando se explicita sua origem
no verbo “fugir” (huir).
Não fazer essa alteração das ocorrências anteriores ocultaria
todo esse processo de estranheza e posterior explicação,
fundamental para a criação de sentido na escrita poética do diário
de Cristina.
4.
Comentários
finais.
Achamos
oportuno mostrar ainda outra questão fundamental, além dos exemplos
dados, para a defesa de uma tradução poética que se atém ao
processo de criação de sentido a partir do empenho do autor na
materialidade da palavra e em todo tecido do texto, em detrimento da
simples transposição de palavras praticada por uma tradução
meramente técnica, em que se assume um registro ordinário da fala,
em sua linearidade e previsibilidade.
O
diário de verão Viriditas,
de
Cristina Rivera Garza, traz, a nosso ver, como princípio poético
mais proeminente a fragmentação. Mas não de qualquer maneira,
posto que na diferença que estabelece, e pela qual se distancia da
fragmentação óbvia e excessivamente pobre (aquela que faz questão
de mostrar-se indubitavelmente como tal, como se isso já bastasse
para trazer alguma novidade, tão praticada na literatura
contemporânea, inclusive no Brasil), encontra-se um modo de ser que
é da autora, e que expressamos a partir de um fragmento de seu
diário já citado aqui: “La
suave saña del verbo...”.
Sua escrita pratica a violência, a agressividade, a sanha exigida
pelo fragmento, mas com uma suavidade toda própria, que cerca todas
as dimensões da escrita e da palavra. Todos os dias de seu diário
seguem seu relato por fragmentos de experiências, memórias e
realizações, que perfazem, suavemente, a própria totalidade do
verão; isto é, cada dizer, enquanto fragmento, evoca o sentido de
um dia; e um dia, que reúne cada dizer, realiza o sentido pleno de
todo o verão, que acontece a cada dia e que se diz, em todos os
dias, como um único dia de verão. Essa circularidade entre
fragmento e totalidade se dá porque cada dia de verão e cada frase
desse dia (portanto cada fragmento) não nos permite esquecer a
simultaneidade de seu sentido, válido ao longo de todo diário. As
palavras retornam inesperadamente, sutilmente, a cada dia do seu
diário, nunca deixando seu sentido para trás, renascendo em novos
fragmentos, criando uma rede de vocábulos subterrânea, como
Shanghái
(Xangai), como verde
(verde), como Hu
(Fug), como ad/herir
(acli/matar) etc., que mapeiam a estação e noticiam o processo de
sua poética.
Os
vocábulos tratados aqui, Adherir
e Huir,
não
são senão exemplos dessa fragmentação subterrânea, suave, que
permeia sutilmente todas as camadas da língua, da sintaxe à
semântica, reconduzindo toda a escrita ao fragmento, sem descuidar,
holisticamente, de sua harmonia. Para mais bem expressar e, assim,
mais bem se entender como acontece tal fragmentação harmoniosa,
encerro este comentário evocando uma imagem, novamente uma citação
do próprio livro, que transmite eloquentemente esse movimento
ambíguo de unidade e fragmentação subterrânea de sua escrita e
que na tradução não poderíamos negligenciar: “La sangre palpita bajo el paisaje, oscura. Esto es un diente estival. La belleza, que hiere. Ominosa: pronuncia la palabra tan suavemente como puedas.” [vii]
---
i
Trad. “Se a terra não tivesse umidade e viriditas, se desfaria como as cinzas.”
ii Trad. “Também poderia ser um sistema de registro, um livro. Somente isso, ou até isso. Muitas vezes não sabemos se começou uma manhã de março, quando só pensávamos em um bosque enquanto víamos uma fotografia de um céu muito cinzento, ou pouco mais tarde, um meio-dia de abril, ou se começou depois, uma tarde de junho, quando as palavras verde e Xangai apareceram juntas pela primeira vez. Sabemos, na verdade, poucas coisas.”
iii Trad.“Os carros são máquinas fosforescentes. Íamos dirigindo até lá, até Xangai, por volta de 2034. Coisa de acreditar na palavra eternidade. O possessivo.”
iv Trad. “Mas um livro é um sistema de registro da passagem de alguns poucos dias: trinta, talvez trinta e dois dias de um longo verão. Se ressaltam os elementos que apareceram: uma cor, por exemplo; um lugar mítico, ou fantasmagórico, ou muito vivo. Se escolhe uma cláusula secreta: escreverei uma frase e apagarei duas, e então escreverei outra frase. Apagar também é importante. Assim se começa, ou se continua, o que é mais próximo da verdade. Se continua até que um dia, o dia menos esperado, de fato, se detém. A gente se detém. E mesmo que se volte o olhar para trás, a gente não deixa de se deter.” Observar o que se comenta a seguir dessa tradução.
v Tradução vem a seguir, comentada no próprio corpo do texto.
vi Trad. “De fato, muitos crimes ocorrem em lugares bonitos. O sangue pulsa sob a paisagem, escura. O verão mostra os dentes. A beleza, que mata. Sinistra: pronuncia a palavra tão suavemente quanto possível. A suave sanha do verbo acli/matar.”
vii A tradução já foi feita na nota antecedente.
---
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REFERÊNCIAS DE BASE
CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem. São Paulo: Cultrix, 1976.
GARZA, Cristina Rivera. Viriditas. Monterrey: Mantis Editores – Luis Armenta Malpica, 2011.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1990.
VIEIRA, Trajano. “Introdução”. Íliada de Homero, vol. I. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2003.
CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem. São Paulo: Cultrix, 1976.
GARZA, Cristina Rivera. Viriditas. Monterrey: Mantis Editores – Luis Armenta Malpica, 2011.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1990.
VIEIRA, Trajano. “Introdução”. Íliada de Homero, vol. I. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2003.