16 de maio de 2014

5 dias do diário de verão de Cristina Rivera Garza, VIRIDITAS.

[Tradução e ensaio, Ronaldo Ferrito]

Domingo, 27 de junho de 2010
5h22
Coisa de voltar e o encontrar. Um verde assim. A casa é uma coisa que pesa. Faz tantos anos que estivemos em Xangai. As eras geológicas determinam deste modo a Terra. Esqueci as chaves de novo. Uma porta deveria abrir, mas às vezes não. A mão na maçaneta. A batida. A respiração. O umbral é uma passagem secreta. O tempo que serpenteia. Para cada cabeça há um dintel. Preferiria, entre todas, a palavra trêmula. A cartomante me garantiu que a serpente é um curandeiro muito poderoso. As imagens não mentem. Havia uma serpente deslizando sobre o coração. Imaginar a maçã é comer a maçã. E o que fazer diante de uma porta fechada, senão levantar as mãos pro céu e rir a dois. Veja: é o tempo que nos vê de Xangai, por volta de 2016. Sinta isso: sinta uma cidade em paz. Às vezes não resta mais do que desenhar uma janela na porta. Nada como uma escada para acabar com a loucura do muro. Venha beber chá. Quando a água ferve, o rio a leva. O que passa é o tempo. As partes da escada incluem: o degrau, a base, o espelho, o cantilever, o patamar. Uma taça é só uma taça. Falta, por uma estranha razão, a balaustrada ou o corrimão. Seus lábios estiveram. Na verdade, algumas escadas vão até o céu. A porta que cede. São precisos muitos séculos para formar uma camada. Era azoica. Era pré-cambriana. Era cenozoica. Xangai estava aí.
§

Segunda-feira, 28 de junho de 2010
7h06


Coisa de ir à praia e o encontrar. Um verde assim. Em geral, sair do sonho dá trabalho. A beleza tem pouco a ver com as narrativas oníricas. Teria que dar certo medo você não saber onde se encontra. O sentido da desorientação. O pertencimento a uma desorganização secreta. Sonhar não custa nada, ou custa muito caro, das duas uma. Viajar a Xangai também não é fácil. O tempo passa exasperadamente. Estamos mais uma vez em 2010. Por volta de 2010, quero dizer. Estamos é o nome de uma coletividade em miniatura. A imagem de um caracol, ou do disco de Newton, ou dos metacarpos com que o homem cego bate à porta. Este seria, sem dúvida, um verão. Olha como se arranca de si o verbo arrancar. Toque isso. O som de uma oração na ponta da língua. Acabo de acordar. A imagem de um adesivo que se descola de um vidro. Grattage. O regresso é o caminho mais longo. O acordar é tão de “todo” que não lhe deram um deus à parte como ao sonho. Acli/matar. A troca da vigília pelo sono costuma ser uma questão de preço. Alguém deveria se perguntar sobre os sentidos da palavra desigual. A poesia é. A poesia se refere a. E, do nada, a fera. Se pode, na verdade, passar da intempérie à intempérie? O musgo é algo que aclimata. Esta súbita aproximação da terra. Unir. Ratificar. Consentir.

[em itálico, twitter de @frank_lozanodr, e das frases do poeta chuvache Gennadiy Aygi.]
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Terça- feira, 29 de junho de 2010 
7h33


Coisa de passar em alta velocidade e o ver. Um verde assim. Veja como se desfaz no ar o verbo desfazer. Seria o único que ficaria. O final é uma convenção, como se sabe. Poderia ser uma nuvem bem pequena. Ou não. O dandelion entre as pontas de seus dedos. Ao entrar na bruma, fica claro que a bruma não é mais que uma garoa muito fina. Devotos da madrugada: é o que somos aqui. Adoradores do estuário. O ritual do café: o primeiro gole me lembra de que ainda estou dentro do sonho. Caminhamos por essa vereda muitas vezes. Um passo e depois outro e ainda outro. Que estranhas as gotas que parecem pérolas sobre a pele ou sobre as sobrancelhas. O dandelion perto de seus lábios. Disse, como se estivéssemos em Xangai. As vozes dos pássaros me lembram do que faremos a seguir. O eco de um eco que retrocede, apavorado. Uma palavra é um animal que respira, a cada vez, pela primeira vez. Por volta de 2021. Seu cabelo molhado. Tudo tem sua maneira de acontecer, disso também se sabe. Preferiria não tremer tanto. O dandelion perto de suas coxas. A palavra alabastro. As palavras, garça que voa. O olhar que se junta à respiração para dizer: é por isso que a gente se abraça, e em seguida se lembra. O cinza pode ser, às vezes, o tom de uma voz. Não quero ficar: nunca ficarei. Fugir tem sua graça: é o que se costuma dizer. Fugir sempre deixa um rabo para que lhe pisem. Fugir é um ir para Fug. Estamos sempre prestes a cruzar uma fronteira. O silêncio, ao contrário, é uma verdade feita nó, esperando sua forma. Essas aves não são cruéis. O dandelion no ar outra vez.
[em itálico, do twitter de @javier_raya.]

§

Quarta-feira, 30 de junho de 2011
8h31


Coisa de se ver na bacia d’água e o encontrar. Um verde assim. A urgência de viver é, às vezes, esmagadora. Uma legião de formigas se desloca da nuca até o plexo solar em passos redobrados. As cócegas e a ansiedade provocam uma risada semelhante. Alguns acreditam que o esterno seja, de fato, um abismo. Um último passo. Uma saudação marcial. O exército e o amor já coincidiram em várias metáforas históricas. O corpo, que cai. Acli/matar. Te contei da mais recente expedição à Xangai? Encontramos as longas hastes de erva-doce a caminho do mar. A decisão de cortar implica sempre um ingrediente de crueldade. Os caminhos, por alguma razão estranha, serpenteiam. As plantas que sempre são as plantas de teus pés. A raiz, já fora da terra, adquire uma aparência sinistra. Ao Para Fora, em certas circunstâncias, chamamos Extimidade. O uso das maiúsculas tende a ser significativo. De repente, desse nada que costuma ser verde, a data: por volta de 2010. O presente não deixa ir ao presente. Em inglês, o presente é uma lembrancinha. Te pego. Te bebo. Te consumo. Será isso uma arma, ou um colo. Certas perguntas não precisam de ponto de interrogação. Existem plantas cujo aroma. O momento em que a xícara pousa no lábio inferior e a fumaça se introduz com rapidez pelas fossas nasais. EvocarInvocarProvocar. Mas existem tantas formas na calma e outras tantas na piedade. Um fotógrafo profissional, sem dúvida, poria sua atenção justamente nas marcas de estria na borda do traste. Se compram pequenos hábitos, pequenas esperanças. A vida exerce uma pressão constante sobre a pele. O passar do tempo. Poderíamos dizer algo. Ferver, como o sangue. Ferver, como uma forma de esterilizar. Ferver, como um dos modos da palavra ebulição. O primeiro gole de chá me ensina um pouco sobre aquela ira com a qual tudo começou no Ocidente. O segundo gole é, na verdade, uma paisagem que desliza, inteira, entre os órgãos quentes. Esse é o meu alento. Minha fraca silenciosa curta respiração. 
[Em itálico, do twitter de @isaimoreno e frase de Peter Sloterdijk, Ira y Tiempo.]

§
Quinta-feira, 01 de julho de 2010 
8h27


Coisa de beirar a água e o encontrar. Um verde assim. Isso já faz tantos segundos. Foi o que foi, ou o que teria sido. De fato, muitos crimes ocorrem em lugares bonitos. O sangue pulsa sob a paisagem, escura. O verão mostra os dentes. A beleza, que mata. Sinistra: pronuncia a palavra tão suavemente quanto possível. A suave sanha do verbo acli/matar. O estranhei muito quando estive em Xangai, costumava escrever coisas assim. A carta é um navio. Já corria o ano de 2024. Nesta casa não nos sentimos em casa dentro de um mundo interpretado. Se tivesse aberto a janela, o ar da tarde teria me ajudado a lembrar algo que. As garças deslizando. Costumava ir de qualquer modo. Conscientemente, como dizem. Medindo todas e cada uma das consequências. Existe um lugar que se chama Fug e lá, dentro, há uma caverna. Às vezes você se esquece de respirar, sei bem como é. Este é o momento em que aparece o zumbido no ouvido direito. Às vezes o tempo passa. A loucura ambulatorial é o diagnóstico de uma enfermidade. A consciência só é recobrada caso se tenha conseguido estabelecer a necessária distância. Dessa maneira, de longe, na terra de Fug ou de Xangai, é possível voltar o rosto e pensar. A quantidade de espaço de que necessita o verbo considerar. Amar a distância é a de hoje. Uma mulher vai ao limite do limite para acomodar suas ideias dentro de uma valise. Erguer a mão até o céu, movê-la da direita para a esquerda: apagar o mundo. Esse movimento doce, melancólico, elegíaco. Dizer adeus ou saudar. As garças são animais metafísicos. Os ruídos de sua garganta. Os ruídos dos passos ao redor do estuário. Afigure-se no mundo dos reflexos e cale-se. Vê isso. Receber uma carta é embarcar num trem ou num avião. Ler-te assim. Me chamo corpo que não está. Escrever é ir. A carta está no lugar de Fug. É preciso fechar os olhos ao apertar o botão da máquina fotográfica. Somente segundos depois descobriria as imagens da dança: as garças deslizando. A aurora da noite. Os agradecimentos. 
[Em itálico, frases de Rainer Maria Rilke e Ramón López Velarde.]


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VIRIDITAS E A EXPERIÊNCIA DA TRADUÇÃO POÉTICA



1. Uma breve discussão acerca da linguagem e da tarefa da tradução de Viriditas.

Qualquer teoria de tradução da qual possamos lançar mão será antes de tudo uma decisão de posicionamento e reflexão frente ao fenômeno da linguagem, posto que traduzir não seria outra coisa senão uma atividade de pensar a linguagem. Este é um pressuposto não só de uma teoria específica, mas simplesmente para que exista alguma teoria; portanto, é um pressuposto metateórico do qual não poderíamos, nesta tarefa, eludir. A experiência que temos da linguagem, em face de qualquer texto que enfrentemos, será necessariamente a fundação sobre a qual nos empenhamos na tarefa de traduzir, pois nos conduz à decisão de que caminho tomar que, como tal, não deverá ser arbitrária se também quiser ser bem-sucedida. Tal decisão está em questão desde a tentativa de tradução de vocábulos estritamente técnicos até a de âmbito artístico (nesta última inscrevemos o nosso caso de verter para o português o livro de Cristina Rivera Garza), pois subjaz a ambas tanto um modo de ser e se apresentar do texto, quanto o vigor de linguagem que ele é e que o faz ser como ele é. Ou seja, numa tradução não podemos nunca desvincular o que é o texto do como é o texto, tendo em vista a experiência de linguagem que propõe. Não pretendemos construir a partir dessa vinculação, porém, uma visão essencialista de como deveria ser invariavelmente o texto vertido em relação a seu original, pois esse pode assumir muitas versões, e é certo que sempre as haverá com diferenças. Antes entendemos que as possibilidades de realização das diferentes versões de um texto são cabíveis na medida em que algo garante uma referência comum a elas. Referência aqui não é significado, nem significação, nem mesmo uma equivalência objetiva qualquer entre a tradução e o original, mas aquilo que deve permanecer em ambos, não mais como original e versão, senão como identidade das diferenças entre obra original e obra da tradução: o próprio vigor da linguagem que preside ambas e lhes confere a possibilidade de estarem em duas línguas distintas para revelar o “mesmo”. Perverter essa vinculação não passaria sem nenhuma consequência.

No universo da tradução poética ou literária, essa decisão hermenêutica que conduz a tarefa da tradução suscita uma grande questão, em geral mal entendida, que podemos entrever com as propostas de tradução criativa (transcriação) dos irmão Campos, embasadas na sua maior parte na proposta antropofágica de Oswald de Andrade e nas críticas e teses firmadas por Ezra Pound. Tanto o Augusto quanto o Haroldo se valem de sua experiência como poetas para a tradução e, por isso, poderiam ser acusados levianamente de terem traduzido algumas obras não para o português, mas para o concretismo. A confusão dessa acusação se dá apenas porque os mesmos princípios do “verbivocovisual” lhes servem na criação e na tradução, por isso dizer “transcriação”, de modo que se reúnem numa mesma atividade. Pound (1990, 63) possui a mesma postura e também as iguala a partir das dimensões da linguagem na poesia, as quais nos aponta em seu ABC da Literatura como fanopeia, melopeia e logopeia. O que o poeta americano nos mostrava analiticamente como três dimensões foi entendido e amadurecido pelos concretos (referimo-nos aqui aos cinco primeiros concretos) como uma estrutura tríplice que não se pode desmembrar, posto que esquecer alguma dessas dimensões implicaria lesar as outras duas. Embora Pound também nos deixe claro isso ao registrar a dependência que a logopeia possui em relação à fanopeia e à melopeia, ele não explicita no seu estudo a sua interdependência radical, ou melhor, a simultaneidade em que ocorrem essas dimensões.

Essa breve reflexão que colocamos de antemão, e estenderemos ainda um pouco, é necessária para nós, não porque nos conformamos a uma tradução concreta, não foi esse nosso esforço nem a linguagem do livro nos permitiria, mas porque compartilhamos aqui da decisão de uma tradução criativa, que prefiro chamar poética (sinalizando o ato de criação literária que implica traduzir uma obra de literatura), que busca sobretudo considerar com primazia a “materialidade” da língua trabalhada pela linguagem do texto em sua individualidade na tarefa da tradução.

Chamamos de individualidade o nível específico em que a língua se encontra dentro de um texto, isto é, o estilo único, o vocabulário, a poética que ele funda em seu exercício de realizar e recriar a língua de maneira própria. Numa tradução poética/literária, esse é um critério a ser considerado acima de outros, tais como o mero significado correspondente num dicionário bilíngue. A tradução, levando em consideração a individualidade do texto, não pode colocar qualquer significado universalizante para um vocábulo, se este causar detrimento aos trabalhos realizados na materialidade da linguagem que o texto original ostenta no seu esforço de renovar. Como traduzir Manuel de Barros ou Guimarães Rosa para outras línguas sem se envolver também na recriação da língua alvo? O que nos faria concordar que uma tradução que buscasse meramente os vocábulos correspondentes, sem qualquer exercício de criação, em âmbito morfológico e sintático, nos garantiria maior fidelidade ao texto? Ao que do texto se manteve fiel tal tradução? E se manteve ao que mais importava? O questionamento contrário acontece claramente em relação às traduções que nos chegam com grande quantidade de neologismos e que alguns críticos, por vezes, acusam o tradutor de um português arrevesado, sem se darem conta do esforço do tradutor para trazer o vigor de linguagem que flagrou no original para seu vernáculo. É acerca dessa questão da fidelidade ao vigor de linguagem sobre a mera correspondência “palavra a palavra” da obra que comenta Trajano Vieira (2010, 21) quando prefacia a tradução da Ilíada por Haroldo de Campos:

“Desconheço outra tradução tão fiel à complexidade formal da Ilíada quanto esta. Entre as mais criativas a que tenho tido acesso nos últimos anos estão as de Robert Fagles e Stanley Lombardo, ambas para o inglês. As duas são excelentes e trazem a marca da dicção coloquial dos Cantos de Ezra Pound. Entretanto, ao adotarem esse registro, deixam de lado aspectos estilísticos relevantes do texto grego. No caso da tradução de Haroldo de Campos, esses traços ressurgem de uma perspectiva paramórfica, e não isomórfica, isto é, são reinventados de modo original, e não reproduzidos mecanicamente.” 

Tais aspectos formais são o que garantem na verdade a própria literariedade da obra, de modo que deixá-los de lado redundaria numa tradução técnica, isto é, que tem como escopo não mais que a mera transposição de palavras sinônimas de um idioma a outro, sem levar em consideração o uso peculiar que um texto, e não a língua enquanto sistema, faz delas. Chamamos de vigor de linguagem essa diferença que um texto estabelece em relação ao sistema da língua que se quer sempre igual. Nossa tarefa em Viriditas foi tentar deixar manifestar-se esse vigor de linguagem do texto, sem ignorá-lo, quando o caso exigia.


2. Viriditas. Alguma hermenêutica.

Viriditas foi escrito em espanhol pela mexicana Cristina Rivera Garza, que é diretora do MFA (um programa interdisciplinar de residência) em Criação Literária na Universidade da Califórnia, San Diego. O livro em questão é um diário de verão que abrange em sua maior parte o período de junho e julho de 2010, havendo também registro de outros dias, de março, abril e dezembro. É evidentemente um diário literário, no qual notamos que algumas palavras se tornam chaves heurísticas na poética da autora. O maior destaque entre essas palavras heurísticas se articula com o termo latino “viriditas”, que, além de ser o próprio título, consta da epígrafe do livro, explicitando que foi colhido pela autora em um sermão da abadessa e teóloga Hildegard de Bingen, a saber: “Si la tierra no tuviera humedad y viriditas, se derrumbaría como las cenizas...”[i]. A autora deixa o termo em latim, não o traduz para o espanhol, sugerindo se tratar de uma “palavra-conceito” que, como tal, não se esclareceria com uma tradução literal simplesmente. O que significa, porém, tal termo latino, quando investigamos seu sentido, torna-se fundamental para entendermos intertextualmente, ao menos em parte, o uso em contexto muitas vezes inabitual da palavra “verde”. O termo latino viriditas, que dicionarizado significa simplesmente verde; verdor; verdura; viço, encontra-se com sentido mais denso e filosófico no pensamento teológico da abadessa beneditina Hildegard de Bingen (1098-1179). Nos sermões da abadessa, seu sentido se aproximaria ao de uma vitalidade natural subjacente aos seres, dada por Deus. Essa chave hermenêutica é dada pela autora, que não quis simplesmente traduzir o vocábulo para “verde”, nem usar verde para o título de seu livro. Isso nos leva a entender, todavia, de modo mais filosófico, também o uso reiterado, a cada início de muitos dias registrados em seu diário de verão, daquilo que se apresenta na fórmula “un verde así”. Alguns exemplos: “Cosa de elevar el rostro y encontrarlo. Un verde así.”; “Cosa de asomarse al plato y encontrarlo. Un verde así.”; “Cosa de distraerse y encontrarlo. Un verde así.” Se por um lado, o termo latino permanece sem tradução no título, ele não se encontra isento de um diálogo intertextual constante no corpo do texto, onde se apresenta um jogo aberto, sem uma interpretação concludente de Cristina para o “viriditas” da abadessa. Ao contrário, nem “viriditas”, nem o “verde” podem ser compreendidos de uma maneira definitiva e justamente por essa referência mútua que estabelecem. Este passa a ter significado, no texto e co-texto poético, tão enigmático quanto aquele. Essa intertextualidade que promove uma busca de decifração para a palavra permeia a tarefa de uma interpretação/decifração do leitor sobre os termos em causa. O fato da palavra latina “viriditas” ter sua continuidade de sentido na palavra espanhola “verde”, a partir da poética estabelecida no diário, não é uma proposta de tradução da autora para o pensamento da abadessa, nem uma repetição do mesmo conceito teológico, mas antes empreende uma tentativa de dialogar com o mesmo e de renová-lo numa vitalidade atualizante e poética de seu sentido. Esse mesmo posicionamento da autora para com o sentido originário da palavra latina deveria, a nosso ver, ser incorporado pela nossa experiência de tradução, ao considerarmos que “verde” aqui não é simplesmente uma cor, pois inclusive parece-nos uma palavra mais substantiva que adjetiva na interpretação de seu uso no livro, senão que devemos estabelecer a mesma continuidade de recriação de Cristina, dessa vez com as palavras espanholas, que não devem ser transpostas ao português, senão manifestadas com o mesmo viço e vigor de sentido encontrado em Viriditas, na fórmula “um verde así.”

Um segundo dado ainda sobre esta questão é, ironicamente, o primeiro dia do livro ser do mês de dezembro (inverno) de 2010, isto é, a meses após o período da estação contemplada pelo diário. Colocado depois pela autora, ao que indica a sua cronologia, acreditamos que ele se insere apenas como uma espécie de preâmbulo (sua datação não traz a descrição ou testemunho de um dia de fato, mas demarca a data em que foi escrito simplesmente) em que prenuncia algumas palavras nodais que aparecerão repetidamente ao longo do diário, formando um metatexto, uma breve explicação do processo após já tê-lo feito, em que o estilo e a poética também são expostos como processo em meio a sua própria justificativa. Nesse preâmbulo ela afirma o que é o diário:

"También podría ser un sistema de registro, un libro. Únicamente eso, o hasta eso. Uno suele no saber si inició una mañana de marzo, cuando solo se pensaba en un bosque mientras se veía una fotografía de un cielo muy gris, o poco más tarde, un mediodía de abril, o si empezó después, una tarde de junio, cuando las palabras verde y Shanghái aparecieron juntas por primera vez. Uno sabe en realidad pocas cosas." [ii]
[grifo nosso] 


Essas duas palavras grifadas acima serão as que terão maior número de ocorrências e funcionarão como palavras-conceitos, de modo que seu aparecimento prescinde de um contexto de uso habitual ou lógico, o que deve ser observado na tradução. Xangai, em Viriditas, se assemelha muitas vezes a uma espécie de “Pasárgada”, um lugar com referência puramente ficcional e não geográfico. Por vezes, não é um lugar, mas um tempo, ou mesmo a reunião de ambos: um espaço-tempo; como vemos, por exemplo, neste excerto tirado do dia 21 de junho: “… Los autos son máquinas fosforescentes. Íbamos a manejar hasta allá, hasta Shanghái, ca. 2034. Cosa de creer en la palabra eternidad. El posesivo.” [iii]

Este preâmbulo também nos deixa claro o processo de composição de sua poética e de como se dá a descrição dos dias. Neles não se apresentam narrativas lineares, mas experiências, criações e memórias fragmentárias. A sintaxe sofre truncamentos e não cuida dar conta da coesão do texto, como acorre em uma narrativa comum. A descrição dos dias é o resultado de uma forma de pastiche da memória e das experiências. Há muitas vezes momentos de livre fluxo discursivo, de retomadas abruptas de palavras anteriores, sem contexto previsível. Assim nos adverte sutilmente:

“Pero un libro es un sistema de registro del paso de algunos pocos días: treinta, tal vez treinta y dos días de un verano muy largo. Se resaltan los elementos que han aparecido: un color, por ejemplo; un lugar mítico, o fantasmagórico, o muy vivo. Se elige una cláusula secreta: escribiré una frase y borraré dos, y entonces escribiré otra frase. Borrar es importante también. Se empieza entonces o se continúa, que es algo más apegado a la verdad. Se continúa hasta que un día, el día menos pensado, en efecto, se detiene. Uno se detiene. Y aunque se vuelva la vista atrás, uno no deja de detenerse." [iv]
No caso do diário de Cristina, ter como língua alvo o português não torna nada mais simples; ao contrário, essa falácia (da tradução espanhol > português) tende a cair quando nos deparamos com seu experimentalismo vocabular, em que os níveis morfológico, semântico e sintático da frase competem com uma associação gráfica na construção de sentido do texto, que muitas vezes nos força a uma opção de risco na busca de uma correspondência, constrangendo-nos a evitar uma tradução mais óbvia e literal. Em virtude da decisão de conservar certos aspectos poéticos em detrimento de uma mera tradução coloquial, e tendo em mãos um livro declaradamente literário, até alguns casos mais corriqueiros e banais não se furtam ao questionamento de uma necessidade de transcriação ou mesmo preservação, que nos leva a reconsiderar diversos casos – como a redundante pronominalização do espanhol, que podemos averiguar no excerto acima – como parte a ser preservada de alguma maneira no português, quando seria numa tradução meramente técnica, esquecida. Este caso pode passar, na opinião de um tradutor de livros técnicos, como uma tradução “macarrônica”, em que se supostamente se misturam elementos da gramática espanhola com os da portuguesa – uma acusação razoável se o que estivesse em causa fosse apenas uma notícia de jornal e não uma aliteração num texto literário.


3. Viriditas. Alguma transcriação.

Mostrarei a seguir uma passagem em que julgamos ser necessário um esforço de criação, para nos conformarmos à nossa opção de tradução poética, na qual privilegiamos em conservar o processo poético da autora em detrimento de uma mera transposição da palavra para o português. No dia datado no diário como 28 de junho, a autora desmembra graficamente em duas partes o verbo espanhol adherir, usando uma barra, formando ad/herir”. A necessidade de recriar esse procedimento se torna maior quando mais à frente temos uma segunda ocorrência do verbo, agora já sem a separação das barras, mas em um contexto que sugere a mesma ambiguidade da palavra criada (ad/herir), que evoca o sentido de “adherir” (aderir) e “herir” (ferir) ao mesmo tempo. A passagem diz:
“Ad/herir. El intercambio entre la vigilia y el sueño suele ser una cuestión de costos. Alguien debería preguntarse sobre los significados de la palabra desigual. La poesía es. La poesía se atiene a. Y, de la nada, la bestia. ¿Se puede en realidad avanzar de la intemperie hasta la intemperie? El musgo es algo que se adhiere. Esta súbita aproximación de la tierra. Unir. Ratificar. Consentir.” [v]
Em português, o verbo “aderir”, ao ser separado como no original (ad/erir*), não conservaria a ambiguidade explícita, lograda graficamente, com o verbo “ferir” (“herir”), para significar “aderir” e “ferir” ao mesmo tempo. Pensamos, para a solução gráfica, em “con/ferir”, “pre/ferir” e uma série de outros vocábulos cabíveis em que o “ferir” pudesse se manter. A dificuldade, no entanto, foram as posteriores ocorrências deste verbo que exigem uma coerência semântica além da gráfica na sua tradução, como p.e. em “El musgo es algo que se adhiere”, constante a seguir. Aí já não caberiam, com coerência semântica, os vocábulos “confere” ou “prefere” (“o musgo é algo que confere”, “o musgo é algo que prefere”), pois se anularia a ação do musgo que é a de aderir, se juntar, se harmonizar. O verbo criado por Cristina traz uma antítese entre a junção, a união e o ferir que essa união (a adesão) também comporta. “Ad/herir” é harmonizar e ferir, tal como faz o musgo que se une e ao mesmo tempo deteriora. A princípio nenhuma palavra em português que conservasse graficamente “ferir” em sua forma, teria também por si mesma o sentido de “juntar”, “unir”. Sentido esse que aparece como sinônimo de “adherir” ao fim do texto. Sugerimos, pois, uma recriação do processo e propusemos “acli/matar”. O musgo aclimata e mata, ou seja, “acli/mata”. De fato, a ação do musgo de aderir-se à parede é cambiada, por nós, por essa outra “função” característica de aclimatar o ambiente, mas igualmente de maneira danosa. Essa combinação de sentidos simultâneos nos pareceu bem atendida em nossa proposta. Acreditamos, não sem pequena mudança, conservar a ambiguidade paradoxal (que persiste em todas as ocorrências dessa palavra no texto – ela se encontra também em outros dias do diário) de algo que ao mesmo tempo se harmoniza e é causa de prejuízo: aclimata e mata, adhiere e hiere. A tradução ficou:
“Acli/matar. A troca da vigília pelo sono costuma ser uma questão de preço. Alguém deveria se perguntar sobre os sentidos da palavra desigual. A poesia é. A poesia se refere a. E, do nada, a fera. Se pode, na verdade, passar da intempérie à intempérie? O musgo é algo que aclimata. Esta súbita aproximação da terra. Unir. Ratificar. Consentir.”
Logo após a palavra “acli/matar” na tradução, colocamos uma nota explicando a relação com o original e os motivos de nossa decisão. Vale observar ainda que a partícula “ad” (ad/herir) que simetricamente está correspondendo nesta tradução ao português a “acli” (acli/matar), por não ter qualquer significado sincrônico em espanhol, nem ter sido explorada sua origem latina no texto (o sentido diacrônico), dispensaria uma preocupação especial na conservação do processo poético. Fica clara a intenção da autora em criar uma ambivalência de sentido, não entre as partes da palavra originadas pela separação por barra, mas entre as palavras já mencionas (adherir e herir), num processo que evidencia antes uma relação semântica de continência entre elas, do que uma recuperação etimológica, ou de formação. O procedimento é poético, não etimológico.

No dia 1º de julho, novamente encontramos uma ocorrência desta mesma palavra, agora já entendida claramente como neologismo. O aparecimento, no entanto, dá-se de maneira distinta do contexto analisado acima, pois anteriormente à palavra “ad/herir”, encontramos “hiere”, que é a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo herir. A frase é: “La belleza, que hiere”. Observe-se que o próprio contexto anterior dessa frase deixa clara novamente a antítese que irá sempre acompanhar, na poética de Cristina, a relação de simultaneidade entre harmonia e dor especialmente através dessas palavras em questão. Essa frase funciona como um índex para outra, na qual novamente veremos a palavra ad/herir:La suave saña del verbo ad/herir.” Vale notar que o próprio contexto sugere, numa referência direta ao sentido dessa palavra, uma antítese, através do sintagma também antitético: “La suave saña”. Todo cotexto e contexto em que se inserem essas duas frases, na verdade, sugerem uma cena cujos princípios narrativos são a antítese e o paradoxo: 
“Muchos crímenes ocurren de hecho en lugares hermosos. La sangre palpita bajo el paisaje, oscura. Esto es un diente estival. La belleza, que hiere. Ominosa: pronuncia la palabra tan suavemente como puedas. La suave saña del verbo ad/herir.” [vi]
Neste caso, a nossa atenção não é tanto o verbo “ad/herir”, posto que neste contexto mais poderíamos confirmar a nossa tradução proposta como adequada para trazer ao português o processo poético de Cristina. Tivemos que nos concentrar nas implicações de decidir, neste trecho, sobre o verbo “hiere”, em “La belleza, que hiere” (a beleza, que fere), uma vez que se articula evidentemente com aquele outro que traduziremos por “acli/matar”, para mantermo-nos coesos com as ocorrências anteriores. Se traduzimos “hiere” pelo óbvio “fere”, isto é, “a beleza, que fere”, e posteriormente traduzirmos “La suave saña del verbo ad/herir.” por “A suave sanha do verbo acli/matar.”, esqueceremos a mútua referência entre os termos, que se faz novamente aqui a partir da barra que evidencia graficamente o verbo “herir” contido no verbo “ad/herir”. Essa relação de continência é sem dúvida a intenção da autora e já se percebe em todo contexto e cotexto. Esse processo que tentamos conservar nos levou a tradução criativa também da palavra “hiere” por “mata”. Assim, as frases foram traduzidas, respectivamente, “a beleza, que mata”; “a suave sanha do verbo acli/matar”. Em outros momentos em que os verbos não surgiam articulados, e nos pareceu conveniente manter a tradução comum de “ferir” para o verbo “herir”, o fizemos, se também assim contribuímos para mais bem conservarmos a escrita poética de Cristina.
Este caso de desmembramento da palavra e sua manipulação no cotexto não é único na escrita de Cristina, o que é mais um motivo para preservá-lo ao máximo.

Um segundo caso, mais simples enquanto processo, mas que ensejou um enorme risco para a tradução foi o da palavra huir (em português, fugir). No dia 6 de julho de seu diário, a autora nos diz: “Huir es ir hacia Hu”. Novamente desmembra a palavra em “Hu/ir”, se quiséssemos lançar mão da barra, para depois usar livremente a forma “Hu”, designando um lugar. Desmembrando, como faz Cristina, o verbo “Huir”, “Fugir”, teríamos a tradução de “Hu” por “Fug”. “Hu” (Fug) é um lugar criado que assume o mesmo valor de realidade que Xangai em seu diário, uma segunda Pasárgada de Cristina. Ele mesmo não existe fora do contexto ficcional fundado na palavra, na linguagem. Sua primeira ocorrência, no entanto, nos intrigou, pois não ocorre no dia 6, após essa origem poética, mas no dia 1º de julho, preconizando o processo de desmembramento, explicitado somente depois. A primeira ocorrência é “Hay un lugar que se llama Hu y ahí, dentro, hay una cueva”, em seguida no mesmo dia outra ocorrência “Así, desde lo lejos, en la tierra de Hu o de Shanghái, es posible volver el rostro y pensar”, que poderiam ser traduzidas inadvertidamente como: “ um lugar que se chama Hu e lá, dentro, há uma caverna” e “Dessa maneira, de longe, na terra de Hu ou de Xangai, é possível voltar o rosto e pensar”. Foi o que a princípio fizemos, mesmo após muito pesquisarmos e não encontrarmos nenhum lugar com este nome. Só posteriormente a traduzirmos mais outras 3 passagens com esse lugar desconhecido chegamos àquela origem inventada no dia 6. Seguindo o mesmo processo da autora, traduzimos “Huir es ir hacia Hu” por “Fugir é ir para Fug”, o que esclarece o processo de criação deste topônimo ficcional. Por conseguinte, tivemos que trocar o termo “Hu” por “Fug” em suas ocorrências anteriores, para que, depois disso feito, a estranheza que causava o nome “Fug” (Hu), ganhasse sua explicação posterior, no mundo criado no diário, quando se explicita sua origem no verbo “fugir” (huir). Não fazer essa alteração das ocorrências anteriores ocultaria todo esse processo de estranheza e posterior explicação, fundamental para a criação de sentido na escrita poética do diário de Cristina.

4. Comentários finais.

Achamos oportuno mostrar ainda outra questão fundamental, além dos exemplos dados, para a defesa de uma tradução poética que se atém ao processo de criação de sentido a partir do empenho do autor na materialidade da palavra e em todo tecido do texto, em detrimento da simples transposição de palavras praticada por uma tradução meramente técnica, em que se assume um registro ordinário da fala, em sua linearidade e previsibilidade.

O diário de verão Viriditas, de Cristina Rivera Garza, traz, a nosso ver, como princípio poético mais proeminente a fragmentação. Mas não de qualquer maneira, posto que na diferença que estabelece, e pela qual se distancia da fragmentação óbvia e excessivamente pobre (aquela que faz questão de mostrar-se indubitavelmente como tal, como se isso já bastasse para trazer alguma novidade, tão praticada na literatura contemporânea, inclusive no Brasil), encontra-se um modo de ser que é da autora, e que expressamos a partir de um fragmento de seu diário já citado aqui: “La suave saña del verbo.... Sua escrita pratica a violência, a agressividade, a sanha exigida pelo fragmento, mas com uma suavidade toda própria, que cerca todas as dimensões da escrita e da palavra. Todos os dias de seu diário seguem seu relato por fragmentos de experiências, memórias e realizações, que perfazem, suavemente, a própria totalidade do verão; isto é, cada dizer, enquanto fragmento, evoca o sentido de um dia; e um dia, que reúne cada dizer, realiza o sentido pleno de todo o verão, que acontece a cada dia e que se diz, em todos os dias, como um único dia de verão. Essa circularidade entre fragmento e totalidade se dá porque cada dia de verão e cada frase desse dia (portanto cada fragmento) não nos permite esquecer a simultaneidade de seu sentido, válido ao longo de todo diário. As palavras retornam inesperadamente, sutilmente, a cada dia do seu diário, nunca deixando seu sentido para trás, renascendo em novos fragmentos, criando uma rede de vocábulos subterrânea, como Shanghái (Xangai), como verde (verde), como Hu (Fug), como ad/herir (acli/matar) etc., que mapeiam a estação e noticiam o processo de sua poética.

Os vocábulos tratados aqui, Adherir e Huir, não são senão exemplos dessa fragmentação subterrânea, suave, que permeia sutilmente todas as camadas da língua, da sintaxe à semântica, reconduzindo toda a escrita ao fragmento, sem descuidar, holisticamente, de sua harmonia. Para mais bem expressar e, assim, mais bem se entender como acontece tal fragmentação harmoniosa, encerro este comentário evocando uma imagem, novamente uma citação do próprio livro, que transmite eloquentemente esse movimento ambíguo de unidade e fragmentação subterrânea de sua escrita e que na tradução não poderíamos negligenciar: La sangre palpita bajo el paisaje, oscura. Esto es un diente estival. La belleza, que hiere. Ominosa: pronuncia la palabra tan suavemente como puedas.” [vii]

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NOTAS


i Trad. “Se a terra não tivesse umidade e viriditas, se desfaria como as cinzas.”
ii Trad. “Também poderia ser um sistema de registro, um livro. Somente isso, ou até isso. Muitas vezes não sabemos se começou uma manhã de março, quando só pensávamos em um bosque enquanto víamos uma fotografia de um céu muito cinzento, ou pouco mais tarde, um meio-dia de abril, ou se começou depois, uma tarde de junho, quando as palavras verde e Xangai apareceram juntas pela primeira vez. Sabemos, na verdade, poucas coisas.” 
iii Trad.“Os carros são máquinas fosforescentes. Íamos dirigindo até lá, até Xangai, por volta de 2034. Coisa de acreditar na palavra eternidade. O possessivo.” 
iv Trad. “Mas um livro é um sistema de registro da passagem de alguns poucos dias: trinta, talvez trinta e dois dias de um longo verão. Se ressaltam os elementos que apareceram: uma cor, por exemplo; um lugar mítico, ou fantasmagórico, ou muito vivo. Se escolhe uma cláusula secreta: escreverei uma frase e apagarei duas, e então escreverei outra frase. Apagar também é importante. Assim se começa, ou se continua, o que é mais próximo da verdade. Se continua até que um dia, o dia menos esperado, de fato, se detém. A gente se detém. E mesmo que se volte o olhar para trás, a gente não deixa de se deter.” Observar o que se comenta a seguir dessa tradução. 
v Tradução vem a seguir, comentada no próprio corpo do texto. 
vi Trad. “De fato, muitos crimes ocorrem em lugares bonitos. O sangue pulsa sob a paisagem, escura. O verão mostra os dentes. A beleza, que mata. Sinistra: pronuncia a palavra tão suavemente quanto possível. A suave sanha do verbo acli/matar.” 
vii A tradução já foi feita na nota antecedente.

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REFERÊNCIAS DE BASE

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem. São Paulo: Cultrix, 1976.

GARZA, Cristina Rivera. Viriditas. Monterrey: Mantis Editores – Luis Armenta Malpica, 2011.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1990.

VIEIRA, Trajano. “Introdução”. Íliada de Homero, vol. I. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2003.