O legado de Gilberto Mendes anda está por ser avaliado, seus trabalhos criaram um campo híbrido onde se entrelaçavam literatura, cinema, teatro e música, de um modo insuspeito ele realizou um dos sonhos de Richard Wagner, a criação de uma obra total , um livro de correspondências entre as artes e a interioridade. Nascido no mesmo ano de Jack kerouac e da Semana de Arte Moderna, ele atravessou o século como um cometa suave, como uma ilha flutuante de leveza e densidade singulares. Certa vez , me contou de seu encontro com Tom Jobim, estava no Rio ao lado do edifício onde morava o maestro carioca e decidiu bater em seu apartamento, Tom atendeu e o recebeu muito bem, a Graça no sentido maior da palavra , de uma contemplação da beleza e da gratuidade dela, se torna presente, se somos capazes de imaginar o que estes dois músicos geniais conversaram nesta tarde que hoje alcança o infinito, onde dois Brasis profundos se tocaram. Tomo a liberdade de reproduzir abaixo um grande fragmento de um artigo brilhante escrito pelo Gilberto, que sintetiza bem seus ideais ético/estéticos:
Marcelo Ariel
" MÚSICA MODERNA BRASILEIRA E SUAS IMPLICAÇÕES DE ESQUERDA
Por Gilberto Mendes
Este artigo foi encomendado pela revista Musik und Gesellschaft da antiga RDA, não tendo sido publicado após a reunificação alemã. Daí seu caráter informativo: tendo em vista um público desconhecedor da música brasileira. Sob outro especto, abre um leque da participação marcante das esquerdas na música do Brasil.
A MÚSICA NOVA DA POLIFONIA DE NOTRE DAME AO SÉCULO XXI
O FMN já possui certo distanciamento crítico para poder se auto-avaliar desde sua nova proposta, em 2012, quando o SESC-SP em conjunto com a USP de Ribeirão Preto passou a sediá-lo, com a inclusão, na programação, da música nova de todos os tempos – desde a invenção da própria música, tal como a entendemos, pelas mãos dos gregos antigos.
Esta mudança de rumo talvez tenha suscitado alguma querela. Perguntou-se, afinal, por que estaria presente a música do passado – como Machaut, Gesualdo, Bach ou Beethoven – junto às composições vanguardistas das velhas linhas de Darmstadt, ao lado de composições minimalistas, eletroacústicas, espectrais ou texturais, entre os gestos característicos da improvisação livre e os conglomerados poli-estilísticos pós-vanguarda? Será que em algum lugar se perdeu a essência experimental do FMN? Com o novo sucesso de público, desde 2012, temos de fato a negação do experimentalismo? Muito pelo contrário.
Inicialmente, há que se compreender as diferenças entre experimentalismo e vanguarda. Para Umberto Eco, “toda verdadeira invenção artística é experimental em todos os tempos e lugares. Neste sentido, a música polifônica era experimental em relação ao cantochão. Beethoven era experimental em relação a Haydn, e assim sucessivamente”. Stravinsky, Bartók e Villa-Lobos foram altamente experimentais e inventivos em seus trabalhos com as músicas populares já urbanas, desde Brahms com suas danças húngaras e Chopin com suas mazurcas. Ainda para Umberto Eco, “entre os séculos XII e XIII, os compositores polifonistas de Notre-Dame foram experimentais quando adotaram o intervalo de terça pela primeira vez para que se tornasse aceito pela sensibilidade musical corrente”. Umberto Eco conclui que, ao contrário das “lentes deformantes de uma sabedoria tradicional e autoritária, faz parte do experimentalismo a constante transformação do método, falando com simplicidade”. Ou seja, o experimentalismo é uma postura incansável de mudança e auto-superação. Neste mesmo sentido, já distante da rigidez da velha vanguarda e aberto à música nova de todos os tempos, o FMN permanece experimental, porque entende que nossos tempos são dos sistemas abertos, bem como dos diálogos entre os sistemas.
Não somos nós, mas sim Charles Baudelaire quem já há muito percebia a armadilha na tradição das metáforas militares, como no caso de se pensar numa vanguarda (conceito de origem evidentemente militar) no contexto artístico. Baudelaire chamou a atenção para “os poetas de combate”, para “os literatos de vanguarda”, cujos “hábitos de metáforas militares denotam espíritos não militantes, mas feitos para a disciplina, isto é, para o conformismo, espíritos nascidos domésticos”. Seria uma visão profética de Baudelaire? O que antes se pensava como inovação e desprendimento não pode agora se transformar numa doutrina de corporação, cuja assimilação, obediência e fidelidade diante da patrulha ideológica adquirem mesmo os rigores de uma hierarquia militar? Seria o caráter evidente de exclusão em nome da uniformidade. Nossa proposta, desde 2012, ao contrário, contempla a pluralidade, o não-padrão, e, acima de tudo, a inquietude filosófica.
Schönberg, um dos gurus da primeira vanguarda pós-guerra, afirmou “ter orgulho em escolher uma má estética para os alunos de composição, se em compensação der a eles um bom aprendizado de artesanato”. Esta ideologia gerou alguns resultados desastrosos em Darmstadt e continua gerando em seus últimos epígonos ainda hoje – não obstante várias de suas importantes contribuições históricas. Está claro que houve certa precariedade filosófica na geração dos compositores da vanguarda autoproclamada. Permaneceram na superfície de uma autoidolatria tanto excêntrica quanto excludente. Assim, esqueceram-se do mundo. Não é por menos que também o mundo se esqueceu deles e nem cabe aqui lembrá-los mais enquanto único caminho para a música nova. Ao contrário, vamos nos lembrar agora também daqueles que eles tentaram esquecer. "