Telegrama
para Fernando Brant
Um carro atravessa o corpo
estacionando no fígado.
Os anos descem as escadas
sem encontrar visita.
Um lago em que percutem
pequenos testes
contém a água do século
e também os peixes.
O caminho que leva ao povo
foi adjudicado à represa.
Existe uma sala auxiliar
e o funcionário o espera.
O fim do milagre significou
apenas o começo.
Há um tênis abandonado
no hectar.
Praças, usinas, sapatarias
arruinam os insetos.
No início, a ideia de espera
era o que ardia.
A licença permite o corte
da madeira pelos ímpios.
O mesmo carro abandona
o fígado, migrante.
O corpo atravessado pela obra
é o mesmo, onde mora.
O que mais atravessa a noite
é a produção, um ritmo.
O índio que o persegue
no mundo físico
e o documento que o descreve
como índio
esperam pelo funcionário
que os escreverá.
A estrada caiu
sobre o maquinista.
O índio em Minas bebe
como em Manaus.
Há inclusive outro minério
mais fino que retiram.
Os peixes que você nomeou
foram modificados
e seus fonemas
submergidos.
Uma sala com abelhas
incendiou-se.
São poucas as anotações
e o funcionário tem sono.
O carro estacionado impacienta-se,
faz reféns.
Você migrou muito nele
com seus amigos.
No calor do azul o domingo
era um trem de escolta.
Todos os meios de transporte
acordam para a vida.
O carro atravessa os muros
entre estados federados.
O céu avança sobre os celulares
como um pneu no inverno.
O avião parece haver parado
sobre o supermercado
e os olhos querem beijá-lo.
As ladeiras atingem o fim
das escadarias protegidas
e o almoço, servido, claudica.
Os que voltam da Itália
acreditam em ginastas.
Uma vida gasta no indivíduo
apenas o mínimo.
As dinastias desejam
menos do que a indústria.
Há sempre quem organize
partidas e organismos.
A iluminação pública reflete
no limo das ruas antigas
aquela sombra compacta
que os corpos já são:
extensão externa da casa
de que são feitos
pátio da casa da carne
onde cães se alimentam
e entre os cães a mãe deles
a cadela-memória
vazada de perguntas
sem pontuação. A avó
inundada pelo planejamento
estudou piano
com Mário de Andrade
aprendeu que madrigal
é uma forma concisa,
meticulosa, uma pausa
na prosa sequencial
das obras, e por isso
um sinal delas, espalhadas
em ossos, pedras, escoras.
Uma concavidade no relevo
um intervalo na dobra.
O carro invadiu o interesse
transportando o
jornalista.
Parado na estação o corpo
mediação que pede socorro
pediu que o levassem
de volta ao outubro
do caderno em que lido
o passado poderia
passar sem ser cortado
pelo vidro da corrosão.
Uma edição do vivido
a partir do que não.
Um carro deita na esquina,
a fumaça o recebe.
O corpo perde a febre
e a importância. Cede.
Na multidão uma península
insiste que a percebam.
O estranho objeto lunar,
depositado, implora.
Por estar imóvel
os peixes o digerem.
O milagre dessa digestão
mantém as águas salinas
como uma mina de carvão
mantém inundada
a saída de dejetos
e o significado extraído.
Alguns caçadores aproximam-se
do urso polar limítrofe.
O milagre que doeu
aciona o bulldozer
para uma última apresentação
ante o vestígio.
O seu gesto de mastigação
convence os mamíferos.
A voz é um deserto que se ouve.
Pedem avisar que termina
mal a narrativa.
O carro, o lago e os peixes
não encontram saída.
Afogam-se mineiros
índios e fonemas,
funcionários e usinas.
A sorte, os rios, o cidadão
caíram sobre a península.
Varrem um pátio aborrecido
com o silêncio dos digeridos.
Mas os amigos passam bem,
venceram todos os imprevistos.
Um milagre, dizem. Um espelho
na contracapa de todos os discos.
Travesti negra responde
ao inquérito, à maçã
à flor e à náusea
à pergunta sobre o implante
ao vidente, ao búzio
à camaradagem sutil
ao chamado para viagem
à intimação para testemunhar
ao caos da gaveta de meias
a questões de múltipla escolha
à peroração do dentista
a quem interessar, sobre seu filho
ao guia turístico
a uma entrevista no final da página
a algo que a incomoda (pode ser o vento)
se pedir com carinho
à guerrilha urbana
ao assovio de dentro do carro
aos xingamentos dos garotos sem maldade
ao afã de entregar-se ao dolce far niente
à carta que lhe enviara a tia
ao terreiro, à benzeção
ao telefonema da assistente social
a alguém que a reconhece na fila
ao despertador chinês
ao insulto do cobrador
ao pássaro sobre a lagoa
ao papel timbrado
ao frio da cidade de praia em julho
ao pedreiro
à oferta de um cigarro de maconha
ao apelo do rapaz para gozar em sua boca
ao pedido de ajuda do sobrinho que estuda
à gravação distorcida
à câmera de segurança
ao questionário da universidade
à encenação de Tio Vania
ao email da moça da Fundação Getúlio Vargas
ao convite para almoço no shopping
à pergunta do segurança tímido
à cera quente
ao tipo penal
à pesquisa online sobre a qualidade do atendimento
ao ser e ao tempo
mentalmente ao bilhete na caixinha com fezes
ao vagão feminino
ao silêncio que vasculha os cantos (a sua procura)
às latas viradas pelo skinhead
à sensação de enjôo
ao sorriso do anestesista
ao aceno que a dispensa de atravessar a rua
ao piscar de farol alto
à agulha que atravessa a coluna vertebral
à enquete do inferninho
ao medo de perder
ao spray de pimenta
à certeza de que o pau dele está duro
à canção que prefere em outro disco
à citação por edital
ao teste, à pesagem, ao desfile
ao mesmo delegado do mês passado
às boas intenções
ao estagiário
à vontade de mijar
ao rugir das tempestades
ao interfone apesar de cansada
à manhã que parece impedir seus olhos de se abrirem
à ressaca na Avenida Atlântica
ao codinome no sábado
à pesquisa de boca de urna
ao eco do Egito
ao mal-entendido
ao rapaz do Instituto Médico-Legal
à divisão do trabalho
à recepcionista do Miguel Couto
ao fichário do despachante
aos gritos e aos sussurros
à professora de inglês
ao cartão de Natal de Sueli (que está na Itália)
ao som do objeto passando perto
ao Eduardo Coutinho
ao choro ao lado, no outro quarto
ao menino do gás
que pede um beijo
(a camisa puída, sem jeito)
para experimentar
ao pedido de dinheiro emprestado
à inspeção sanitária
ao recado na secretária eletrônica
à rasteira, joelhada, tapa e quetais
à pergunta se está ouvindo bem
à pergunta se está bem
à desorientação ao redor
à instrução de se acalmar
à repetição tediosa da pergunta
a alguém que quer que morra
ao estuário que invade a memória
à interpelação do porteiro
à umidade entre os seios
ao mangue, ao cristal, à buzina
ao matagal, ao galpão, ao ensaio
ao superior, ao diretor, à assistente
à maquiadora, ao figurinista
à psicóloga, à moça da limpeza
à vendedora sobre o tamanho
à súplica do superego
ao caixa do supermercado
ao organizador do evento
ao anti-coagulante
ao erro de pronúncia
ao irmão que viajou
à mãe sobre o projeto
que não sabe quem foi
ao pedinte achando graça
que não lembra direito
ao GPS do táxi (em pensamento)
que prefere dormir de bruços
ao apelo do prefeito
ao seu nome de guerra
ao cheiro, ao desespero
ao espelho do banheiro
ao relógio de pulso
ao dinheiro, ao uso dele,
à noite aguda do interesse
educadamente
à deixa no roteiro
ao endereço, ao preço
ao anúncio de emprego
como um morcego antigo
ao ruído que reflete
a parede das coisas
a superfície, o canivete,
o abrigo.
Ricardo
Rizzo nasceu em Juiz de Fora,
Minas Gerais, em 1981. Publicou Cavalo
marinho e outros poemas (2002); Conforme
a música (2005), País em branco
(2007) e Estado de despejo (2014).
Colaborou com poemas, ensaio e tradução nas revistas Cacto (2003), Rodapé (2004),
Rattapallax (2004) e Poesia Sempre (2006). Recebeu o Prêmio
"Cidade Belo Horizonte" na categoria poesia, em 2004. Editor da
revista de literatura Jandira (2004-2005).
Mestre em Ciência Política e doutor em História Social pela Universidade de São
Paulo, ingressou na carreira diplomática em 2006.
imagem
Luis Felipe Noé