Stalker, de Andrei Tarkovski
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MANUSCRITOS
em telas de cristal encontrados
num tambor de cobalto
Chegada
Segundo o aviso estereofônico em
dezessete idiomas, tínhamos vinte e oito segundos para sair do barco. Aqueles
dentre nós que compreendiam fragmentos de pelo menos três ou quatro desses
idiomas levantamos todos ao mesmo tempo e tropeçamos uns nos outros.
Pressionamos assim mesmo em direção às portas, contra a luz cegante, os cacos e
trapos abandonados, os que ainda dormiam, os que tentavam juntar cacos e
trapos, o vento com cheiro de cacos, trapos e combustíveis queimando. Os chutes
e a cegueira obrigavam-nos a abandonar quantidades adicionais de cacos e
trapos, o que ao mesmo tempo facilitava e dificultava o conflito que ao mesmo
tempo nos levava e nos separava das saídas. Quando chegamos nelas, despejamos
nossos corpos para fora em todas as direções, rolamos pelas escadarias molhadas
de quinas ordinárias gastas por todos que haviam rolado por elas antes de nós.
Sempre atrasado, vinte e nove segundos depois do aviso, o barco começou a se
mover entre os detritos flutuantes. Ainda despejávamo-nos por todos os seus
buracos. No fim da escada, a triagem começou instantaneamente. Foi empregado o
método da vara pontuda. Começamos a grunhir, expressando a consciência de que a
presença de triagem e capatazes não significava necessariamente a existência de
trabalho. Em resposta, foi sussurrado que aquele não era um barco de trabalho,
mas um barco de refugiados. Através de comentários finais, concluímos que a
presença de triagem e capatazes não significava necessariamente a existência de
refúgio. De fato, na outra ponta das varas pontudas, no alto das plataformas de
pau preso a plástico com anéis metálicos, os capatazes às vezes pareciam
trabalhar, às vezes pareciam divertir-se, às vezes pareciam querer pilhar
nossos cacos, trapos, órgãos internos e externos. Às vezes mal pareciam
capatazes. Mas, através da eficiência e das varas pontudas, os altos foram
separados dos baixos, os carecas dos orelhudos, os infectados dos nus, os aptos
das grávidas. Nesse meio tempo, chegaram outros barcos. No primeiro, havia
cães, mas os cães se recusaram a descer. No segundo, havia pau e plástico, e os
aptos nus orelhudos baixos foram conduzidos para o seu interior, de modo a
realizar o descarregamento através de rampas laterais que flutuavam em meio aos
detritos flutuantes que eram indistinguíveis do pau e do plástico sendo
descarregado.
Coberta
Quando, há muito tempo, numa manhã
turva e quente, caiu a coberta do reator, aqueles que conseguiram agachar-se a
tempo tiveram a maior parte do corpo protegido pelo escudo da multidão, e
desenvolveram degenerações praticamente indetectáveis pelos aparelhos manuais
de detecção de degeneração. Aqueles dentre nós que não encontramos espaço onde
enfiar o rosto fomos afetados nessa parte. No caso, fomos buscar imediatamente
reconstituição de uma ou de todas as pálpebras, de modo a garantir
elegibilidade para o trabalho de remendagem da coberta do reator. Médicos
voluntários de um serviço de fronteira hoje desaparecido, financiado por um
laboratório da época em que existia financiamento, organizaram filas longas nas
vielas transversais, e testaram com razoável sucesso a aplicação de tecido
protético feito de silicatos indestrutíveis e flexíveis. Muitos de nós nos
beneficiamos, assim, de pálpebras artificias, através da contratação voluntária
de uma dívida impagável que não chegava a ser tão hereditária quanto as
degenerações que contraímos involuntariamente. Muito mais tarde, emergiram
boatos de que alguns dos silicatos tinham a propriedade de influenciar a
constituição dos tecidos vizinhos, o que poderia eventualmente causar o
enrijecimento da musculatura da pálpebra. Mas, quando esses boatos começaram a
circular, a maioria de nós já precisava usar as mãos para abrir e fechar os
olhos.
(…) O principal ensinamento que
temos para passar às nossas crianças é o tipo especializado de medo que
cultivamos. É evidente que não lhes basta o medo normal, que aprenderão por si
mesmas simplesmente por existir no mundo que criamos. Estamos razoavelmente
escondidos, a terra é razoavelmente infértil, as regiões circundantes estão
envenenadas, qualquer um que pisa o solo com os pés descalços percebe isso.
Estamos armados com pedras, paus, na extremidade de alguns dos quais prendemos,
com ligas finas porém resistentes, fragmentos pontiagudos e cortantes, além dos
aparelhos de longo alcance e de destruição grupal que aqueles portando os
uniformes corretos, ou a documentação exigida, ou a disposição necessária,
carregam junto a si todo o tempo. A expressão no rosto desses defensores, os
olhos muito abertos, os lábios retraídos, os tendões do pescoço visíveis e
palpitantes como os dos répteis, deixa claro que estão em contato constante com
perigos horríveis, e os exercícios de evacuação e fuga, os alarmes falsos, os
choros convulsivos nas madrugadas, os buracos de balas, o volume dos aparelhos
eletrônicos, os olhos injetados nas festas, os alarmes verdadeiros, as colunas
de fumaça no horizonte, e as descobertas daquela idade especial em que chegará
a pergunta inevitável, cara mamãe, diga-me, por favor, o que é uma cova
coletiva, tudo isso dá aos pequenos o gosto do medo. Mas o medo de que se
encarregam nossos grupamentos didáticos, panfletos, e vídeos educativos, é de
uma qualidade mais refinada, não tem gosto de nada, é menos instintivo, é
profissional, não diz respeito exatamente à evitação do sofrimento e da
aniquilação. É desapaixonado e baseado em princípios ou na ausência deles, e
não é sentido exatamente na boca do estômago, nem faz tremer, mas enrijece os
músculos das costas e dos ombros, faz enterrar as unhas nas palmas. Em vez do choro, a liberação de bílis causa
uma salivação que torna qualquer operação bucal impossível, exceto um engolir
repetido. Esses são os sinais pelos quais percebemos que a criança já aprendeu
o que tinha que aprender (isto é, nota A+). Os didatas mais tradicionais advertem
seus alunos de que é melhor que tais sinais não sejam apenas emulações
externas, mas reflitam uma convicção interna; outros, porém, já a par das
teorias mais modernas, dão de ombros, considerando que a presença ou não da
convicção é secundária, visto que a essência desse medo é a sua demonstração.
Um jovem capaz desse medo é também incapaz de arriscar-se mais do que deveria,
isto é, é incapaz de arriscar-se, exceto quando o que está em jogo é a garantia
da segurança, situação em que nenhum risco está demais. Portanto, como diz o
guia prático (p. 7), “um jovem capaz
desse medo deve estar pronto ao sacrifício, mas não visando salvar-se, visto
que a salvação é impossível” – afinal, é por isso que não deve arriscar-se –,
“e sim visando evitar sacrifícios ainda maiores”. Além do medo espontâneo, esse
é o medo que, então, é incutido cuidadosamente. Quem age segundo ele não
precisa de convicções. Trata-se de agir como se a fonte da ação fosse sempre
aniquilável, como se o resultado da ação fosse no fundo indiferente, de modo
que as únicas ações tomadas são as irracionais, as reações, as fugas, os
estouros em pânico, os reflexos, o encolher-se, o horror que causa contração, a
vontade incontrolável de chamar uma autoridade para testemunhar o inevitável, a
reprodução da fonte do horror através de incontáveis imagens, os olhos
vermelhos injetados, as gengivas à mostra. Longe de trabalhar para a
sobrevivência, esse medo acaba, não obstante, alcançando-a, e isso a despeito
do fato de que seu fundamento é o conhecimento abstrato do caráter supérfluo da
vida. Dado que nenhum de nós deveria estar aqui, não é razoável estimular nas
crianças aquela nesga de sentimento de autoconservação que elas porventura
possam conservar por acidente, mesmo depois de tudo que, mais cedo ou mais
tarde, testemunharão. O razoável é gravar nos seus olhos e ouvidos a
destruição, e deixar seus nervos tesos fazerem o resto. Não há castigos
possíveis para esses seres, há apenas estímulos. Por isso, nossos didatas não
recomendam a crueldade, mas uma benevolência irreconhecível. Cada novo golpe,
real ou irreal, é uma amortização dos golpes futuros, é a dedução, em uma
unidade, de uma quantidade infinita de golpes, reais ou irreais, e por isso os
queloides hiperplásicos se tornaram, afinal, uma coisa rara entre nós, exceto
nas genitais, de tal modo que se verifica uma confusão entre os termos “genital” e “queloide” nos meios curandeirísticos.
Mas os especialistas garantem que se o processo fosse aperfeiçoado a tal ponto
que não deixasse mais marcas reconhecíveis, então seu fundamento mesmo estaria
eliminado, e, desprovidos desse medo científico, ficaríamos reduzidos a um medo
original que talvez nos destruísse. Mas como, de qualquer forma, nos
destruiremos, nossa resistência adquirida à formação de queloides foi
contornada pela produção artificial de cicatrizes sob as quais não há, na
verdade, nenhuma ferida. Isso mostra o quão longe chegou nosso domínio sobre a
destruição, cuja antecipação é o motivo principal da infusão artificial do
medo, e também seu resultado principal. Não deve nos incomodar que dediquemos
tanto esforço simplesmente a repetir aquilo que, sem nenhum esforço, nos
vitimaria de qualquer jeito. Embora esse esforço só seja suportável até certo
ponto, persistiremos nele muito além desse ponto, e é aí que está a genialidade
do método como um todo. É assim que logramos viver aqui, hoje. Aliás, é isso
que chamamos de vida. (...)
Filas na estrada
Quando chegamos à estrada, já
havia populações inteiras deslocando-se em filas, num fluxo humano e desumano,
carregando nas costas tudo aquilo que lhes havia sido ordenado que carregassem,
populações que, como nós, obviamente não se haviam levantado de sua origem
voluntariamente, havendo-o feito, não obstante, provavelmente sem muita
resistência, compelidos meramente pelo rugir dos motores dos veículos aéreos e antiaéreos. A bem da verdade, sua aparência
destruída denotava que, como no nosso caso, é provável que tampouco o lugar de
onde vinham se tratava de sua origem, mas sim de uma parada transitória, embora
os mais jovens, a seu turno, dessem todos os sinais de serem originários de
tais paradas transitórias. Dentro das filas, subfilas de indivíduos presos uns
aos outros por correias indestrutíveis de fibra sintética trançada denotavam a
reemergência de sistemas penais entre os povos pós-sociais, e também o
reaproveitamento de técnicas de reciclagem desenvolvidas em períodos
precedentes, e aplicadas por humanos pequenos ou crianças de dedos ágeis,
habitando túneis desocupados e reocupados, sob a luz de candeeiros de gordura
sintética, o tipo de lugar onde se imagina que se desempenha todo o tipo de
trabalho indestrutível. Alguns de nós observaram tais coisas, e especularam a
respeito daquelas populações que se moviam nas longas filas pela estrada que, também
ela, tinha sido reciclada, pelo menos até certo ponto. E embora aqueles que nos
conduziam aparentemente não fizessem qualquer diferença entre nós e os outros,
ficou claro logo nos primeiros instantes que também nós fomos observados. Com
base nessas observações, sob o rugido dos veículos aéreos e antiaéreos,
estabelecemos o protocolo de hostilização mútua que iria reger nosso transporte
e deslocamento. Mantivemos esse protocolo através de um regime de gestos,
golpes, armamentos automáticos, de madeira, de osso, e gritos. E enquanto
fazíamos assim, os oficiais e funcionários, curvados no interior dos seus
veículos estreitos e baixos, com o rugir dos motores nos ouvidos, talvez
levassem as mãos à cabeça ou ao peito e gritassem, escancarando as bocas, parando
apenas no último segundo, de modo a manterem audível a nesga de voz necessária
para transmitir instruções aos seus subordinados.
Pedro Rocha de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da UNIRIO. Organizou com Felipe Brito o livro "Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social", publicado pela Boitempo em 2013.