20 de novembro de 2014

“Semeador”, inédito de Thiago Ponce de Moraes





Ó Grande Semeador,
Ó Grande Semeador de Mistérios — o mesmo é dizer —,
Ó Grande Semeador, —
O mesmo é não dizer uma só palavra,
Opera,
O Vosso Verso. Êxodo 20, versículos. E sereis salvo.

O Sapientia!
O Adonay!
O Radix Jesse!
O Clavis David!
O Oriens!
O Rex Gentium!
O Emmanuel

Mas nenhum disse, nem podia dizer:

Ó Filho!

Salvo aquele a quem

                                O
                                           O
                                O

Jesus, 33,
1 14 14 4 11 7 6 9 8 10 10 5 13 2 3 15,
Vosso Nome. Exultai!

1
14
14
4
11
7
6
9
8
10
10
5
13
2
3
15

YHWH: יה-וה
Por mais de seis mil vezes tocado.
Por todas as cifras tocadas.


II

Nem todos os Adonais,
Nem todos os ancestrais deste Deus,
Nem todos os Filhos originais em Vosso cerne ou carne.

                                          Antes de Vós
                                          Caos,
                                          Chronos,
                                          Éter,
                                          Nix,
                                          Physis,
                                          Gaia.

Escrevi para eles as grandezas da Minha lei;
Mas isso é para eles como coisa estranha.
Inscrições, Oséias, 8:12.

***

Originais o Eixo e o Espírito,
Originais o Imo, o Interior, o Meio.
E da Medula o cimo de uma frágil existência.

Mas sois capaz de estender o Espírito
Até quando? Sois
Até que ponto tenaz para fazer do Interior o Imo
De onde a carne sangra?

Da noite que ainda cinge os corpos,
Da noite que a Ideia de noite perdura a beber,
Da noite em que o Sonho é sempre três vezes o prelúdio de um Sonho.

Nesta Noite — inequívoca —, nesta reiterada força,
Não de ínfimo, mas íntimo,
De muito profundo, interno, Negro, mas não íntegro,

Nesta Noite absurda em que nem o ventre de Nix pode supor o Não de todas as faltas,
O reverso do Grande Mistério, do âmago físico das entranhas da Noite.

E Vós, por mais de seis mil vezes tocado,
Infértil, supurando o inaudito YHWH em seu vir-a-ser macerado.

Nas entranhas físicas do âmago da Noite — e em todas as suas atribuições secundárias —,
Nas negras entranhas de Nix, o fervilhar em mênstruos
Do que poderia ter sido e não foi.

Sonha seus Sonhos enquanto desfila em veste Negra,
Deusa da Morte,
E sonhar, por isso, seria também Deus.


III

Ó Grande Semeador,
Onde estais?
Ó Grande Semeador,
Onde estais quando a Noite toma forma e transtorna o seu porvir?
Ó Grande Semeador,
Onde estais quando o Seio da Noite punge este Filho?
Onde, quando o Ventre da Noite se abre e envolve este Filho em seus veios?

Ei-la, Noite intransponível,
Ainda sob o céu imenso, conquanto impuro,
Sob o mudo negror do espaço impenetrável,
Tendo todas as necessidades do mundo em torno,
A espessura dos seus gestos de areia,
O contorno próximo e palpável da areia.

Eis um cenário sem estrelas, só palavras no horror de sua pronúncia.
Precipício da pronúncia, poucos passos adiante.
Extirpado útero, istmo de Nenhures, Areia novamente —
Rotas.

                               Apesar de tudo:
                               O Domine, libera animam meam.


IV

Lá está também a melancolia da Noite, a Negra carne da Noite,
Com sua frouxa razão a encobrir o infinito, Sonho de grandes mares.

Paira a Dúvida, como uma Ave, neste céu imenso de mudo negror,
Ave de esplendor radiante por toda a extensão de grandes mares.

A Imagem recorrente clama da Noite ávida o que foi antes Sombra
Inclinada no sentido da Luz, Sombra ante o Sonho hostil de grandes mares.

Palavra aprisionada em desvario intenso de cômodos sem janelas, Albatroz,
Mônadas tristes na ferocidade de pássaro a forjar seu voo em grandes mares.

As Noites se fixam nos olhos daquela que dita a Noite, nos lábios: feroz e eternal,
Imanente, sempiterna qual distâncias na melancolia de grandes mares.

       Grandes mares de eternidade difusa,
       Grandes mares de Nadas e nadas,
       Grandes mares remotos de toda Memória,
       Grandes mares repartidos e nunca plenamente navegados,
       Grandes mares da Ideia, por tantos Aedos cantados,
       Grandes mares dos Ídolos, das Histórias, das Farsas.

***

Em vossa Presença, qualquer Idílio seria pouco,
Ó Grande Semeador!
Ó Grande Semeador,
Sempre a tantos misturado,
Por que mereceríeis mais?

Por quê, se de vosso Verbo este Filho recolhe todas as cinzas?
Por quê, se de vossas Cinzas nenhum Corpo,
Somente as sílabas do Corpo pronunciado. 

***

Vossas mãos não são leves,
Ó Grande Semeador.

Carregais o granizo negro da melancolia pelos campos,
A profunda tristeza de Ceres sem quaisquer sementes.

Nunca a encontrais em Vossa busca, pois buscais.
Somente lançais as sementes, qual Verbo de Pai que vos lega o Nome.

Dizeis palavras simples com a Vossa promessa, displicentemente,
E Vossas palavras não dizem nada, YHWH, nada mais do que são.


V

Sob o Sol de todos os Sonhos,
Sob o Sonho primordial,
Dormis.

Dormis, Orfeu, Deus tardio,
Que Ártemis nenhuma conheceis.


Thiago Ponce de Moraes é poeta e tradutor. Atualmente, cursa doutorado em Literatura Comparada na UFF — com pesquisa sobre as obras de João Cabral de Melo Neto e Joan Miró — e atua como professor no IFRJ. Publicou os livros de poemas Imp. (Caetés, 2006) e De gestos lassos ou nenhuns (Lumme Editor, 2010), além do livro de ensaios Remos e Versões (Multifoco, 2012). E-mail: poncedemoraes@gmail.com.