11 de dezembro de 2014

Dois contos de "ENTRE MOSCAS", de EVERARDO NORÕES -- vencedor do Prêmio Portugal Telecom 2014






O EXERCÍCIO DO ASCO

    – Não. Não tenho o que você chama de moral. Tenho apenas dois princípios: tratar meu alvo com delicadeza e descobrir sua vulnerabilidade. Você pode pensar que se trata de um exercício fácil. Mas, analisando friamente, é a perfeita combinação entre a guerra de guerrilhas e a diplomacia. Aquilo que você aprenderia se lesse o Da guerra, de Clausewitz. A única diferença é que na guerrilha você ataca, depois regateia. No meu caso, é o contrário: procuro agradar. Só depois ataco.

   Falou-me assim, com ar cínico, depois de ingerir a terceira dose de uísque, sentado no sofá de três lugares da sala de seu apartamento, 32º andar de um prédio em Casa Forte.

   Não o via desde os tempos do colégio de jesuítas, quando driblar e chutar eram suas únicas qualidades, e o desempenho nas matérias escolares, uma rotina subalterna.

   Agora, encontro-me na sua residência, estranho convidado numa plataforma aérea, que mais parece o bunker de luxo de algum figurão da Gestapo.

   Não fosse o abraço que me deu na curva da praça, nós dois a fazermos em sentido contrário o percurso dos obesos, certamente eu não estaria ali, ouvindo o que me constrange.

   – Sirvo? Recuso-me a aceitar outra dose.

   Faço uma pausa e vejo a paisagem lá fora, recortada de mangues e favelas, vista cotidiana da horda de lobos enjaulados que alimentam a casta dos predadores da cidade.

   É o que ainda resta de uma imensa campina e, hoje, jaz entre espigões de concreto: algumas manchas verdes e uma faixa líquida, de cor suspeita, que restou de um rio.

   Viro-me e diviso a outra paisagem, a que conforma o pensamento de quem vive dentro de um aquário, onde nada tem consistência. Na parede, quadros assinados por artistas da moda. Pinturas sem valor estético combinam com a mobília sugerida por algum arquiteto. Numa estante defunta, a tela plana da televisão de n polegadas acomoda o negror da espera.

   Faz calor, a brisa desconversa a tarde.

   Mais de 60% de umidade deixam marcas à altura das axilas e um vago cheiro de desodorante misturado ao do suor da caminhada, única gota de um esforço físico.

   Estranho a citação que fez de Clausewitz.

   Certamente ele frequentara algum curso de Estado Maior, que era oferecido, num passado nem tão distante, a alguns paisanos. Era condição para alguém circular, sem atropelos, nos altos pavimentos da sociedade – supostamente montados em concreto armado –, indispensável a quem necessitasse galgar cargos ou ingressar em incertos negócios.

   A prepotência não lhe permite desconfiar de que li muito mais do que aquele tratado sobre as guerras do tempo de Napoleão. Talvez nem sequer conheça certos manuais, como os do coronel Trinquier, que opinava serem uma das piores coisas os erros cometidos pela bondade. Ou mesmo livros de memórias, como os de Paul Aussaresses, o general francês grão-mestre da tortura, que comandou o “suicídio” de Larbi Ben Mehdi, o herói argelino.

   A sirene de uma viatura de polícia emite seu uivo seco e estridente. Ele esvazia o copo com rispidez e emite uma espécie de grunhido:

   – Porra, como era bom aquele tempo, hein? Enoja-me seu perfil volumoso, o ventre inflado, as mãos cabeludas, a barba meio branca. E o vozeirão, sobretudo o vozeirão, capaz de destacá-lo em qualquer roda, de uma sonoridade entre comentarista de futebol e contador de casos de bar de subúrbio.

   Naquele instante percebi, num recanto da sala, uma pequena tela de vídeo, a focalizar, em quadradinhos, as várias entradas do prédio.

   Penso: as vidas estão recortadas como num quebra-cabeça, do qual ninguém conhece o original. Aqui, o político pode ser vizinho do mafioso; o torturador, amigo do juiz...

   E eu?

   O que faço, nessa armadilha, goleiro à espera do pênalti?

   Um imenso cão surge devagar, lambe minhas pernas, cheira o que não deve.

   E ele volta, abotoando a braguilha, displicente, pingos na calça.

   De novo, o barulho do gelo, o jato de uísque 12 anos derramado naquele copo pesado, envolvido por um guardanapo molhado de suor e água, tão asqueroso quanto tudo o que é tocado por aquele que foi o mais ágil atacante do time de futebol de um colégio de jesuítas.

   – Me dê um minuto.

   Deitado, o cão respira um respirar de cão.

   Ressurge a figura de um ator de Vau da Sarapalha, texto de Guimarães, a que assisti encenado por um grupo de teatro da Paraíba. O ator imita um cachorro numa choça de caipiras mineiros atacados pela malária. E ofega, desde o início até o final da peça, de uma forma que faria inveja a qualquer cão.

   Aqui o cão é gordo e não há atores: há simplesmente cachorros...

   O cão, o verdadeiro, olha de soslaio e absorve o primeiro chute do dono.

   Ao bater na cesta ao lado, revistas se esparramam: dão colorido ao mármore pardo do piso, como a pedra de alguns túmulos chiques do cemitério de La Recoleta. Certas combinações de cores acendem metáforas: o anjo salpicado de hera, a soleira carcomida das portas das igrejas, uma bancada de necrotério.

   Fecho os olhos. Através daquela névoa que recobre as pupilas de quem chora e quer esconder as lágrimas percebo uma composição abstrata que me faz pensar no Angelus Novus, de Paul Klee.

   Por alguns instantes estou ausente, pensando em Walter Benjamin, o filósofo alemão que se suicidou para fugir aos nazistas, na fronteira da França com a Espanha, numa cidadezinha chamada Portbou. Ele usou uma espécie de parábola para dizer o que pensava sobre a história e a descreveu como o anjo que ele observou num quadro do pintor suíço. Na pintura, o anjo olha fixamente alguma coisa que foi deixada para trás, o passado. Enquanto nós acompanhamos o transcorrer dos acontecimentos, o anjo enxerga apenas a catástrofe e quer despertar os mortos, juntar os pedaços dos escombros, reedificar as ruínas. Mas, de repente, uma tempestade sopra do paraíso e faz com que suas asas se abram com tal força que ele é lançado em direção ao futuro, enquanto os entulhos se amontoam até atingirem o céu. Essa tempestade, para Benjamin, chama-se progresso. Quem venera a tradição permanece imobilizado a contemplar as ruínas, teme a tempestade, mas acaba varrido por ela...

   O obeso sai alguns instantes, vai prender o cão.

   Percorro com tédio aquela sala com todos os seus adereços. Aproveito meu instinto, apanho rapidamente entre as revistas esparramadas duas folhas de papel que esvoaçam. Busco verificar o nome completo do destinatário, desvendar algo que me chega à memória: uma notícia de jornal, um apito de sirene, um barulho de freio na avenida: um corpo estendido, perfurado, na mesa fria do necrotério...

   – Está dormindo!, ela disse.

   A que eu chamo de ela é uma mulher que anda pelos trinta, de corpo fornido, certamente assistida por algum personal trainer. Faz um sorriso de quem tenta desculpar o eclipse do dono. A garrafa de uísque está pela metade. O barulho da rua chega através das aberturas das persianas, como o crescendo de uma moto, uma máquina de cortar grama ou uma motosserra usada por alguém para serrar árvores humanas. O jeito é segurar novamente o copo, esconder com os dedos o resto de água, fingir que engulo nova dose.

   – É sempre assim. Bebe, bebe, depois cai, dormindo.
 
   Diz aquilo com indiferença. A força do hábito substitui a vergonha.

   Sabe que naqueles momentos é preciso guardar a postura hierática de uma princesa qualquer, mesmo quando desconfia que o meu olhar incide sobre o reflexo da luz no seu joelho, ou naquela penugem do braço que se tinge de dourado. Ou na fenda dos seios, quando se abaixa para apanhar as revistas. Ou no...

   De novo passeio a vista pelo veludo do divã, o mármore da pia do lavabo à saída do WC social, o canto da dupla sala e, finalmente, pela pequena TV, na qual avisto o zelador fazendo gracinhas à babá que passeia um dobermann negro e uma criança de colo.

   – É amigo dele?

   – Fomos colegas de colégio. Era artilheiro do time...

   – Puxa! Quanto tempo, hein? E nunca mais se viram?

   – Morei fora, voltei há alguns anos. Só na semana passada nos avistamos no cooper da praça.

   – Olha! Quando cai na cama, num fim de tarde como hoje, sexta-feira...

  O “nunca mais se viram?” ressuscita como se tivesse sido arrancado da pequena gaveta de um armário secreto, entre documentos, passaportes, notícias de jornal. (Ou um laudo de medicina legal.)

   Lembro, de repente, a frase do início da conversa: “Na guerrilha você ataca, depois regateia. No meu caso, é o contrário: procuro agradar. Só depois ataco”. Pergunto-me se a ela também cabe algum papel nesse estratagema. E se o perigo pode ser, de fato, mais atraente do que repulsivo, como pretende Clausewitz. Digo que vou embora, faço menção de sair. Tenta me reter:

   – O que é isso? Fica mais um pouquinho! Daqui a pouco ele acorda...

   O claro-escuro da tarde transmuda a roupagem dos quadros, dá aos vidros e aparatos da sala aspecto de lantejoulas. Algo pesa como a véspera de um infarto. Não diria que é simplesmente cansaço esse algo que nos imobiliza, faz-nos pressentir a hora exata da retirada.

   Confiro discretamente o papel apanhado no chão. O endereço acrescenta ao nome o sobrenome que eu pressentira. Não há mais razão para permanecer ali. A vontade pede algum impulso. De que tipo?

   (O nobre impulso que coloca a alma humana acima dos maiores perigos é, de fato, a ousadia?) Troco amabilidades, digo que a tarde fluiu com rapidez, peço que transmita as desculpas por tê-lo abandonado em pleno sono, lembro o cansaço da caminhada, digo que depois telefono.

   O Buda da mesa de repente transforma-se numa pistola com silenciador, as revistas em bisturis, escalpelos, tesouras afiadas. Há um cheiro de coágulo dentro da jaula metálica por onde devo fugir.

   Na saída do elevador, cumprimento o porteiro, cujo olhar me traz de volta a uma certa Humanidade.

   De novo, na calçada, ouço gritos, sirenes, latidos incertos. O semáforo me diz que posso cruzar a rua. A multidão anoitece aos gritos. Nunca conseguirá adormecer. Porque anoitece depressa nestes tristes trópicos. Como se um lençol negro se desfraldasse sobre a cidade. Um lençol que abafa a memória e a transforma em território dos esquecidos.

   Ligo o computador para rever no YouTube a entrevista do ex-oficial da Marinha argentina Adolfo Scilingo, estilo executivo, terno bem-posto, o olhar indiferente a contaminar o écran, a voz pausada de militar disciplinado. Relata, com naturalidade, a forma de extermínio utilizada nos denominados vuelos de la muerte: as ordens dos superiores hierárquicos, as autorizações da Igreja Católica, as doses de soníferos, o modelo de aeronave utilizado nas operações, o número exato de pessoas lançadas ao mar. E as doses de uísque ao chegar a casa, após o dever cumprido.

   Ânsia de vômito. Desligo o computador.

   Pego o primeiro livro que encontro na estante, dou com a frase que me servirá de epígrafe: “Até mesmo a maldade carece de harmonia”.

   Recolho-me ao quarto, como um sonâmbulo.


§§§§


ENTRE MOSCAS
 

   A mosca cola-se ao vidro da janela. Ela é o alvo de meu olho, o objeto para onde converge minha atenção, embora além do vidro se estenda o verde da mata e, detrás dele, a casa no alto e outros elementos da paisagem: fios, cercas, monturos. E nos monturos, a lâmina das circunstâncias que corta nossas vidas: favela sem esgoto ou água encanada, barulho de martelo a pregar algum segredo ou o homenzinho apregoando macaxeira.

   Mosca: ao mesmo tempo ponto de mira e inseto (insetalvo, alvinseto?) da espécie dos esquizóforos, assim denominados por terem um sulco frontal a dividir a cabeça em dois hemisférios. Ela mexe-se, inquieta, alvo móvel a dar voltas em torno de si mesma. Fosse gente, seria considerada alguém que dissocia ação e pensamento, no limiar da esquizofrenia. Mas age assim certamente por ter olhos múltiplos, omatídios, oitocentos grãos translúcidos, esferas cristalinas, como uma TV LCD. Levam luz ao cérebro minúsculo e agora permanecem encandeados pela superfície brilhante do vidro que a detém no interior do quarto onde procuro descobrir sua estratégia de livramento da prisão na qual a mantenho.

   Ela, a mosca, terá uma duração de, no máximo, vinte e um dias, seu ciclo vital. Terminado o movimento dessa peregrinação que também pode ser subentendido como realidade subjetiva, ficarei sozinho, sem ter com quem partilhar o fastio, nem mesmo a restrita visão das gotas de chuva sobre as folhas das árvores próximas ou o reflexo do sol a esmorecer-se sobre o ocre dos telhados. Quando penso nessas sensações, não as considero mera percepção ótica de um mundo que nos estrangula, a mim e à mosca. É como se estivéssemos no interior de uma bolha invisível, onde contenho meu próprio espaço-tempo.

   Quanto à mosca, faço de tudo para não assustá-la, embora às vezes a perca de vista. Procuro segui-la atentamente e durante a perseguição me vem sempre à cabeça o verso do poeta espanhol Antonio Machado:

“(...) vosotras, moscas vulgares/me evocáis todas las cosas”.

   Penso, então, na mosca que pousava no olho do primeiro morto que vi. O cadáver, estendido no caixão, mãos postas, rosto escondido com um lenço que de vez em quando era erguido por um curioso ou um parente próximo. Quando o morto era descoberto, a mosca voava, voava, e regressava, com insistência quase raivosa, aos olhos do defunto. “Tão moço!”, repetiam todos a mesma frase ao afugentarem a mosca no voo que se limitava ao território de uma camisa de cambraia de linho branca.

   Ao evocarem todas as coisas, lembro também a que me perseguiu na travessia de um trecho de deserto. Havia sido prevenido de que o instinto de sobrevivência levaria a mosca a se grudar em algum de nós e a seguir-nos até o fim da viagem. Instintivamente, ela sabia que, naquelas circunstâncias, abandonar o hospedeiro significaria a morte. Descuidei-me e tornei-me seu alvo. Feri-me, de leve, de tanto tentar livrar-me do assédio e acabei por guardar uma pequena mancha vermelha, que ainda trago no rosto.

   Encontrei-a de novo, a minha mosca. Começou a saltitar sobre o livro aberto ao lado, em cima de um pedaço de frase: “to drive home the finality of death”.

   Caminha com passadas microscópicas, ultrapassa o trecho “by the monotonous buzzing of the flies?” e depois de roçar meu braço esquerdo aterrissa finalmente na pequena porção de comida, de cerca de 3 gramas, que depositei sobre a folha de papel branco, tamanho A4. Assim, estará abastecida durante a rápida trajetória sobre o nosso reino particular de cinco metros quadrados: mesa, computador, pequena estante com cerca de vinte livros e metade de uma resma de papel reciclável.

   Sobre o fundo branco acompanho seus pequenos gestos nervosos, seus rodopios, riscos no papel. Mexe as patas, esfrega no pouco de comida o que se poderia chamar de focinho, mas cujo termo correto é probóscide. Não pode ingerir sólidos, por isso deposita uma mistura de saliva e suco gástrico, um ínfimo vômito, naqueles minúsculos resíduos. Uma digestão externa, que não consigo observar, nem mesmo com óculos. Se conseguisse examinar melhor, diria o quanto de asco poderia causar-me. Mas por ser um ato tão microscópico, como tudo o que não se vê, não me dá nojo. Imagino que assim deve pensar Deus – se é que Ele existe – sobre todos nós humanos, pequenos insetos nervosos a se mexerem, sem objetivo nenhum no nosso pequeno bólido perdido no universo. Deixo-a mais calma, a digerir sua refeição de final de tarde. Levanto da cadeira, onde fico o dia quase todo a ler e a buscar entender os teoremas da incompletude de Gödel. Olho-a como para me despedir e penso de novo:

“(...) vosotras, moscas vulgares/me evocáis todas las cosas”.

   Nenhum poema sobre moscas igual a esse de Antonio Machado. Nada de “mosca azul, asas de ouro e granada” daqueles versos do outro Machado, que certamente detestava negros, complexado, submetido a ataques epilépticos, orgulhoso de sua farda de academia, dólmã de antigas turquias. Quanto a mim, prefiro a mosca de verdade: preta, sem metáforas. A que reina sobre nossa podridão, faz brilhar a ferida. Como a mosca-varejeira: pequenos ovos-luz, larvas esbranquiçadas sobre a úlcera na perna do cego da feira, que nos obrigava a correr para fugir de sua companhia.

   Ei-la sobre o papel imaculado: simples ponto escuro sobre o branco, que tudo pode significar: sinal enigmático do texto, buraco negro das origens, fuligem final dos grandes incêndios, caractere original de alguma tradução de Camilo Pessanha. Aquele de barba toda moscas, tuberculose e concubinas, no sujo chão da China.

   Desligo o ar-condicionado. Levanto da cadeira, com comichões na perna direita. Fecho a porta com cuidado. Giro a chave, para que ela não fuja durante a noite e eu não perca sua companhia, pelo menos durante os presumíveis 21 dias que ainda lhe restam.

   E de repente a escuto, numa espécie de murmúrio.

   Ligo a grande mosca, a que não se mexe, não volteia no ar. A que mede trinta e seis polegadas, milhares de grãos translúcidos, esferas cristalinas de alta definição, que levam a escuridão ao nosso cérebro minúsculo. E agora encandeiam a noite, na qual, sozinho, confundo-me com ela...



Everardo Norões é cearense da cidade de Crato, 1944. Viveu na França, Argélia, Moçambique e hoje está radicado em Recife, Pernambuco. Poeta e prosador, é autor de Poemas Argelinos (1981); Poemas (2000); Nas entrelinhas do mundo, em co-autoria (2002); Le tigri del Bengala (Itália, 2005). Esses dois contos pertencem a seu livro mais recente, Entre Moscas (Confraria do Vento, 2013), com o qual acaba de ganhar o Prêmio Portugal Telecom 2014, na categoria contos/crônicas.