[Imagem de Elaine Arruda]
PÓ
[primeiro livro]
Espelho
Se o cobre quiser atravessar
A cabeça (sobre palavras, luzes),
Que olhar lançarei pela vidraça?
Haverá decerto uma linha,
Uma corrente depois da estação.
Da bala conhecerei apenas o verdete.
(E se os olhos não abrirem? E se não houver
janela?)
Memória
Pior do que a fome, pior do que a cinza
E a sua dispersão, é não haver colírio
Para nos remover o sangue da vista,
A ausência de firmamento
Acompanhando o abismo, de que nos salvámos.
Uma escada nos leva e nos redime.
Corta-nos o sopro. Mas cortará o desespero?
Abate
Não há pão que nos salve
Na hora do exílio.
Se à pátria regressamos,
Nas mãos permanece a pólvora
E no rosto o sal das ondas e das lágrimas.
Não há pedra onde reclinar a cabeça.
Por isso os olhos se dirigem ao poente.
CAMPO
DA VERDADE [segundo livro]
Avistamento
Cruzam-se as ruas do começo. No centro rompe
O manancial. Não interessa de quem é o
coração.
Se pomos os olhos na montanha, descobrimos
No meio do rio um corpo que flutua e vai
Ao encontro de outro corpo, depois de conhecer
A sua força: retirou à pedra o seu excesso
E assim manifestou a composição da terra.
Ermo
Que árvore teremos frente aos olhos
No último dia? Relembro a visão do deserto
Anunciando a cidade. As portas nunca se
fecham,
Mesmo quando o sangue corre por entre ruas
Que a sombra não pode nem quer abandonar.
Seria verdadeiro o deserto? Fito e vejo a
serra.
Sei que é necessário. Todas as vias o
procuram.
Planta
O deserto esclarece a incerteza
Quando a montanha se abre
E no cume transfigura a humanidade.
A árvore cresce, submete a geometria.
Entre nuvens, vozes e abandono,
Sublinha e justifica todas as formas,
Todos os nomes (a sua essência e a sua
redução).
PROVENÇA
[terceiro livro]
Lapidação
Nasce um homem. Atira-se uma pedra.
Talvez a mão que atira seja a minha
E o homem, nascendo, seja eu mesmo —
Ou parte de um corpo onde me incluo
Entre as células (doentes? cancerosas?).
O alvo, sem pronúncia, tem um nome.
Talvez o corpo seja pedra e movimento.
Septicémia
A gangrena atinge os membros e a palavra (este
rosto
Sem figura). O lodo não deixa erguer uma ponte
Ou baixar as águas. Sobrevivemos em segredo?
Desfolharam a árvore para que a vida
sucumbisse
À ciência. Napalm? Apenas livros, imagens e
provetas.
Os rebentos voltarão. Voltam sempre. Nem que
seja
Enforcando-nos para que os ramos voltem a
crescer.
Inversão
Se os espinhos têm veneno, como poderei curar
As feridas? Quem fala comigo vê tão só o
negativo
Das imagens. Desconhece a queda e os rasgões
Na pele. Não acredita no desterro e na fome
Que nada consegue saciar. Terei de aprender a
Viver sem antídoto. Ainda que o corpo faleça
E a tinta não consiga estancar a infecção.
Ruy Ventura
é um poeta português nascido em 1973, em Portalegre. Vive e trabalha perto de
Lisboa. Publicou os livros Arquitectura
do Silêncio (2000), Sete capítulos do
mundo (2003), Assim se deixa uma casa
(2003), Chave de ignição (2009), Instrumentos de sopro (2010) e Contramina (2012). Neste ano de 2014, foi
lançada no Brasil uma antologia da sua obra: Rua da Outra Rua (Lumme Editor, São Paulo). Seus poemas estão
traduzidos em alemão, francês, inglês e espanhol.