Tudo que o homem semear,
isso também ceifará.
(Gálatas 6:7)
“Helena.”
“Oi, Sebastian. Sente-se para beber um café.”
“Não. Não quero. Obrigado. Como sei o seu
nome?”
“Ora, você sabe. Nós nos conhecemos.”
“Claro, claro. Mas não me lembro de estarmos
juntos.”
“Como não lembra? Estamos casados há seis
anos.”
“Seis anos? Nossa!”
“Surpreso?”
“Sim. Não me lembro de sermos casados, nem
sequer dessa sala. Lembro-me de você, porém, não como esposa. Afinal, onde
estou?”
“Em nossa casa, onde mais seria?”
“Não esqueço isso... Em algum momento a matei.
Sim, você estava aí sentada, bebendo seu café, quando a surpreendo
apunhalando-a no pescoço. Tenho certeza de não ter sido um sonho, mas agora não
sei o que é.”
“Querido, você realmente fez isso. Você fez
nesse instante. Tome a faca.”
“Não, não posso. Aliás, não quero.”
“Não há querer. Pegue.”
“E agora?”
“Apunhala-me seu imbecil.”
Dezenas de vezes, Sebastian afundou a faca.
Dezenas a repetir-se indefinidamente, até se tornarem inumeráveis. E à medida
que se repetia a cena, Sebastian dizia não.
* * *
É
importante saber manejar a faca para cortar um pedaço de carne, melhor manejo
deve-se ter, contudo, na hora de introduzi-la no corpo de alguém. Sobretudo,
coragem.
Estou
indo matar Helena, uma mulher que conheci há dois dias, quando a deixei em
frente à sua casa. Ela pagou a viagem, agradeceu-me e entrou. Hoje retorno para
cobrar o restante da dívida. É a terceira vez que a mato. Não me canso de
fazê-lo.
Eu a
vejo bebendo café. Retiro do bolso uma faca com cabo de madeira. Ela me vê.
Está surpresa. Não a deixo gritar. Um golpe no pescoço, depois outro, e outro,
e outro. Quando a faca penetra a carne até o cabo, paro. Largo o corpo no chão.
Fecho a porta e vou.
Sei
que voltarei a matá-la da mesma forma. Não entendo a razão de isso repetir-se.
Mas não me sinto cansado, até acho divertido.
*
* *
“Helena. Olhe para mim. Eu tenho que matá-la.
Preciso que olhe.”
“Sebastian, por que você deseja matar-me? Eu
te amo.”
“Não. Você não me ama. Vamos acabar com isso.
Mantenha os olhos assim.”
* *
*
...Helena está na sala sentada à mesa Mcdonald
vermelha, bebendo café. A mesa fica ao lado da janela de frente para a Avenida
São Paulo. Helena está de vestido estampado em flores copo-de-leite num fundo
azul-piscina. A mesa vermelha destaca o azul que cobre sua pele branca
sobreposta na tempestade cinza da vidraça. Ela está distraída.
Inesperadamente diante de seus olhos aparece
um homem alto e careca, segurando uma faca. Helena não tem tempo para gritar, a
faca entra em sua garganta uma vez, depois outra, e mais outra até tudo
escurecer.
* *
*
“Quanto tempo?”
“Quanto tempo o
quê?”
“Responda! Há
quanto tempo estamos aqui, nesse universo, revivendo o mesmo dia?”
“Como vou saber?
Não sou eu a razão disso. É você.”
“Eu? Impossível.”
“Sem dúvida. Você
é idiota? Estou morta, lembra-se? Só um deus pode reviver-me. E outra, como eu
poderia estar ciente de minha própria morte? Diga.”
“Não sei.”
“Você sabe. Claro
que sabe”.
“Eu... Eu criei
isso.”
“Só pode.”
“E quem seria
você?”
“Isso importa? Cumpra
seu dever. Mate-me.”
“Não quero.”
“Faça!”
* *
*
Sebastian não dorme, revive o dia, e com ele o punhal enterrado na
garganta de Helena. 96 vezes em 24 horas, e cada repetição dura 15 minutos. De
certo modo, à medida que ele a mata, parte de sua personalidade é destruída. A
consequência: a vontade de matá-la diminui. No entanto, o programa obriga-o a
fazer. A liberdade está restrita ao tempo. A reinicialização súbita impede que
ele aja diferente do momento anterior. Não entendo como sua mente suporta ser
zerada para a reinicialização. Embora ciente de que Sebastian não esquece, seu
cérebro faz as mesmas escolhas baseadas na gravação daquele pedaço do tempo.
Dr.
Minos
* *
*
...Dessa vez, Helena está sorrindo. Ela e eu
bebemos café.
“Sebastian, você me ama?”
“Não sei Helena. Acho que sim.”
“Já é um começo.” Ela ri.
Um homem entra... Sou eu. Não consigo
levantar-me para impedir. Ele a mata.
* *
*
...Entro na casa. É inevitável. Perdi o número
de quantas vezes revivi a cena. Estou cansado. Não suporto matá-la. Mas devo,
nem sei por quê.
* *
*
É
importante saber manejar a faca para cortar um pedaço de carne, melhor manejo
deve-se ter, contudo, na hora de introduzi-la no corpo de alguém. Sobretudo,
coragem.
Estou
indo matar Helena, uma mulher que conheci há dois dias, quando a deixei em
frente à sua casa. Ela pagou a viagem, agradeceu-me e entrou. Hoje retorno para
cobrar o restante da dívida. É a décima primeira vez que a mato. Minha faca não
se cansa de fazê-la. Quanto a mim, não suporto mais o peso do aço em minha mão.
Eu desejo abandonar a faca, mas ela fundiu-se à carne, como se fundiu ao tempo.
A cada momento que revivo, revivo-o empunhando o aço.
* *
*
“Não, não irei fazer isso. Não mais.”
Paro atrás de Helena. Ela continua a beber seu
café.
“Não irei.”
“Você deve.” Diz o homem de paletó e gravata.
“Por que devo?”
“Porque essa é a sua condenação, prisioneiro
1104.”
“Quem sou eu?”
“Prisioneiro 1104. O que vê não é a realidade,
mas a memória dela. Você está sonhando. Há dois anos, você, Sebastian,
assassinou Helena, e foi sentenciado à prisão perpétua. Sua condenação é viver
o mesmo homicídio todos os dias pelo resto de sua vida. Você está num presídio.
Sou o diretor Minos. Criei o programa Dédalus, um labirinto temporal, em que o
condenado revive o mesmo dia. Não se trata, contudo, de uma máquina do tempo.
Não exatamente. Um computador acessa sua memória e induz o cérebro, durante o
sono, a repetir a cena. Você revive tudo como se fosse real, porém, como se
trata de um sonho, existe certa arbitrariedade que faz com que algumas coisas
mudem. O que altera a cena são suas emoções que se transformam a cada
repetição. Em seu caso, Sebastian, foi a paixão. Apaixonado, ou não, você tornará
a matá-la.”
“Não, por favor, não.”
“Arrependeu-se?”
“Sim. Não quero mais.”
“Isso basta.”
* *
*
Sebastian está sentado à mesa bebendo café.
Inesperadamente, Helena aparece e o apunha-la no pescoço uma vez, depois outra,
e outra, até tudo escurecer.
* *
*
“Doutor Minos, o prisioneiro 1104 está em
coma.” — disse a enfermeira.
“Ordene que desliguem os aparelhos.”
“Como desejar.”
Anderson
Fonseca
é autor de O que eu disse ao General (ed.
Oitava Rima, 2014).