12 de fevereiro de 2015

“Reboot”, conto de Anderson Fonseca



Imagem de León Ferrari


Tudo que o homem semear,
isso também ceifará.
(Gálatas 6:7)


“Helena.”

“Oi, Sebastian. Sente-se para beber um café.”

“Não. Não quero. Obrigado. Como sei o seu nome?”

“Ora, você sabe. Nós nos conhecemos.”

“Claro, claro. Mas não me lembro de estarmos juntos.”

“Como não lembra? Estamos casados há seis anos.”

“Seis anos? Nossa!”

“Surpreso?”

“Sim. Não me lembro de sermos casados, nem sequer dessa sala. Lembro-me de você, porém, não como esposa. Afinal, onde estou?”

“Em nossa casa, onde mais seria?”

“Não esqueço isso... Em algum momento a matei. Sim, você estava aí sentada, bebendo seu café, quando a surpreendo apunhalando-a no pescoço. Tenho certeza de não ter sido um sonho, mas agora não sei o que é.”

“Querido, você realmente fez isso. Você fez nesse instante. Tome a faca.”

“Não, não posso. Aliás, não quero.”

“Não há querer. Pegue.”

“E agora?”

“Apunhala-me seu imbecil.”

Dezenas de vezes, Sebastian afundou a faca. Dezenas a repetir-se indefinidamente, até se tornarem inumeráveis. E à medida que se repetia a cena, Sebastian dizia não.

*     *     *

É importante saber manejar a faca para cortar um pedaço de carne, melhor manejo deve-se ter, contudo, na hora de introduzi-la no corpo de alguém. Sobretudo, coragem.

Estou indo matar Helena, uma mulher que conheci há dois dias, quando a deixei em frente à sua casa. Ela pagou a viagem, agradeceu-me e entrou. Hoje retorno para cobrar o restante da dívida. É a terceira vez que a mato. Não me canso de fazê-lo.

Eu a vejo bebendo café. Retiro do bolso uma faca com cabo de madeira. Ela me vê. Está surpresa. Não a deixo gritar. Um golpe no pescoço, depois outro, e outro, e outro. Quando a faca penetra a carne até o cabo, paro. Largo o corpo no chão. Fecho a porta e vou.

Sei que voltarei a matá-la da mesma forma. Não entendo a razão de isso repetir-se. Mas não me sinto cansado, até acho divertido.

*     *     *

 “Helena. Olhe para mim. Eu tenho que matá-la. Preciso que olhe.”
“Sebastian, por que você deseja matar-me? Eu te amo.”
“Não. Você não me ama. Vamos acabar com isso. Mantenha os olhos assim.”

*     *     *

...Helena está na sala sentada à mesa Mcdonald vermelha, bebendo café. A mesa fica ao lado da janela de frente para a Avenida São Paulo. Helena está de vestido estampado em flores copo-de-leite num fundo azul-piscina. A mesa vermelha destaca o azul que cobre sua pele branca sobreposta na tempestade cinza da vidraça. Ela está distraída.

Inesperadamente diante de seus olhos aparece um homem alto e careca, segurando uma faca. Helena não tem tempo para gritar, a faca entra em sua garganta uma vez, depois outra, e mais outra até tudo escurecer.

*     *     *

“Quanto tempo?”

“Quanto tempo o quê?”

“Responda! Há quanto tempo estamos aqui, nesse universo, revivendo o mesmo dia?”

“Como vou saber? Não sou eu a razão disso. É você.”

“Eu? Impossível.”

“Sem dúvida. Você é idiota? Estou morta, lembra-se? Só um deus pode reviver-me. E outra, como eu poderia estar ciente de minha própria morte? Diga.”

“Não sei.”

“Você sabe. Claro que sabe”.

“Eu... Eu criei isso.”

“Só pode.”

“E quem seria você?”

“Isso importa? Cumpra seu dever. Mate-me.”

“Não quero.”

“Faça!”

*     *     *

Sebastian não dorme, revive o dia, e com ele o punhal enterrado na garganta de Helena. 96 vezes em 24 horas, e cada repetição dura 15 minutos. De certo modo, à medida que ele a mata, parte de sua personalidade é destruída. A consequência: a vontade de matá-la diminui. No entanto, o programa obriga-o a fazer. A liberdade está restrita ao tempo. A reinicialização súbita impede que ele aja diferente do momento anterior. Não entendo como sua mente suporta ser zerada para a reinicialização. Embora ciente de que Sebastian não esquece, seu cérebro faz as mesmas escolhas baseadas na gravação daquele pedaço do tempo.

Dr. Minos

*     *     *

...Dessa vez, Helena está sorrindo. Ela e eu bebemos café.

“Sebastian, você me ama?”

“Não sei Helena. Acho que sim.”

“Já é um começo.” Ela ri.

Um homem entra... Sou eu. Não consigo levantar-me para impedir. Ele a mata.

*     *     *

...Entro na casa. É inevitável. Perdi o número de quantas vezes revivi a cena. Estou cansado. Não suporto matá-la. Mas devo, nem sei por quê.

*     *     *

É importante saber manejar a faca para cortar um pedaço de carne, melhor manejo deve-se ter, contudo, na hora de introduzi-la no corpo de alguém. Sobretudo, coragem.
Estou indo matar Helena, uma mulher que conheci há dois dias, quando a deixei em frente à sua casa. Ela pagou a viagem, agradeceu-me e entrou. Hoje retorno para cobrar o restante da dívida. É a décima primeira vez que a mato. Minha faca não se cansa de fazê-la. Quanto a mim, não suporto mais o peso do aço em minha mão. Eu desejo abandonar a faca, mas ela fundiu-se à carne, como se fundiu ao tempo. A cada momento que revivo, revivo-o empunhando o aço.

*     *     *

“Não, não irei fazer isso. Não mais.”

Paro atrás de Helena. Ela continua a beber seu café.

“Não irei.”

“Você deve.” Diz o homem de paletó e gravata.

“Por que devo?”

“Porque essa é a sua condenação, prisioneiro 1104.”

“Quem sou eu?”

“Prisioneiro 1104. O que vê não é a realidade, mas a memória dela. Você está sonhando. Há dois anos, você, Sebastian, assassinou Helena, e foi sentenciado à prisão perpétua. Sua condenação é viver o mesmo homicídio todos os dias pelo resto de sua vida. Você está num presídio. Sou o diretor Minos. Criei o programa Dédalus, um labirinto temporal, em que o condenado revive o mesmo dia. Não se trata, contudo, de uma máquina do tempo. Não exatamente. Um computador acessa sua memória e induz o cérebro, durante o sono, a repetir a cena. Você revive tudo como se fosse real, porém, como se trata de um sonho, existe certa arbitrariedade que faz com que algumas coisas mudem. O que altera a cena são suas emoções que se transformam a cada repetição. Em seu caso, Sebastian, foi a paixão. Apaixonado, ou não, você tornará a matá-la.”

“Não, por favor, não.”

“Arrependeu-se?”

“Sim. Não quero mais.”

“Isso basta.”

*     *     *

Sebastian está sentado à mesa bebendo café. Inesperadamente, Helena aparece e o apunha-la no pescoço uma vez, depois outra, e outra, até tudo escurecer.

*     *     *

“Doutor Minos, o prisioneiro 1104 está em coma.” — disse a enfermeira.

“Ordene que desliguem os aparelhos.”

“Como desejar.”


Anderson Fonseca é autor de O que eu disse ao General (ed. Oitava Rima, 2014).