Por Thiago Mattos.
Nicole Brossard nasceu em Montreal, em 1943.
Poeta, ensaísta e romancista, Brossard é uma das vozes centrais da poesia
contemporânea quebequense, tendo, junto com outros poetas, se agrupado em torno
da revista La barre du jour, “sacudindo
a sintaxe e desenvolvendo uma voz claramente formalista” (Pierre Nepveu em
prefácio à antologia Latitudes: 9 poetas
do Québec, organizada e traduzida por Álvaro Faleiros).
Conheci
Nicole Brossard após ler alguns romancistas contemporâneos do Quebeque (Gaétan
Soucy, Noël Audet, Danny Laferrière etc.). Apesar de Brossard também ser
romancista, foi quando comecei a ler a poesia do Quebeque que a conheci. Traduzi
alguns dos seus poemas no blog Je vous défenestre,
espaço que mantenho como lugar de divulgação da poesia contemporânea em francês.
Algumas semanas depois, Márcio-André, poeta e editor da carioca Confraria do
Vento, entrava em contato comigo, falando de um antigo projeto de publicar
Nicole Brossard no Brasil. Entramos em contato com Brossard, com a Noroît
(editora que detém os direitos autorais) e, no momento, terminamos de montar o
projeto. Em conversa com Brossard, decidi traduzir Musée de l’os et de l’eau, uma de suas obras mais traduzidas, tendo
recebido o Grand Prix du Festival International de la Poésie de
Trois-Rivières, festival de que pude participar como poeta em 2013.
Traduzir poesia oferece desafios que colocam em xeque a própria noção de
traduzibilidade. Isso porque o senso comum coloca a poesia em um lugar
inalcançável, quase mítico, espécie de objeto divino intraduzível (a tradução
aí equiparada a uma violação, uma deturpação de um “original” sagrado),
intransponível e, em últimas consequências, indizível e ilegível. Sempre tentei
encontrar nos estudos da tradução reflexões que embasassem a minha certeza de
que a poesia pode (e deve) ser traduzida, o que me levou ao trabalho de autores
como Haroldo e Augusto de Campos, Ezra Pound, Meschonnic, Susan Bassnett, Mário
Laranjeira, André Lefevere, autores tão díspares mas que apontam, cada um a seu
modo, para o caráter eminentemente crítico do ato tradutório, para a tradução
enquanto gesto de leitura e, portanto, como gesto possível, ou mesmo desejado,
promovendo uma dessacralização do texto poético e, por conseguinte, uma mudança
de valores no que diz respeito à tradução de poesia.
Mas é sabido que, quando o assunto é tradução, a teoria não pode se
sobrepor à prática: estão ambas juntas uma servindo a outra. E é por isso que
tentarei trazer dois ou três aspectos da poesia de Brossard, e como são
trabalhados no processo tradutório. Musée
de l’os et de l’eau é, nesse sentido, um exemplo significativo da poética
de Brossard: o trabalho sobre a sintaxe, a preocupação formal já cedendo lugar,
na produção mais recente, a certo retorno da subjetividade, a pesquisa do
corpo, aqui transformado em museu, tempo e linguagem. (Tentar) reproduzir em
português esse estranhamento da sintaxe, esse trabalho sobre a linguagem que
coloca em xeque o próprio laço significante-significado do signo linguístico,
traz dificuldades imensas. Seleciono, a seguir, um poema em que isso se mostra
mais evidente.
à San Cristobal de Las Casas un matin de
Vierge noire
De Coca cola et d’encens siempre
je caresse une idée de vie dans la poussière
une odeur de chair et de silence
rouge partout infiltré dans les tissus
à force d’images des pans de peur
l’amor qui éloigne les chèvres
Num primeiro momento, assim ficou a tradução:
em San Cristobal de las Casas numa manhã de
Virgem negra
de Coca cola e de incenso siempre
acaricio uma ideia de vida na poeira
um cheiro de carne e de silêncio
vermelho por toda parte infiltrado nos tecidos
à força de imagens porções de medo
el amor que afasta as cabras
A tradução procurou conservar a sintaxe “estranha” (talvez mesmo
estrangeira) de Brossard, evidente sobretudo nos versos “um cheiro de carne e
de silêncio / vermelho por toda parte infiltrado nos tecidos”. Além disso,
privilegiou-se a textura fônica do texto, ou a “sonoridade” simplesmente, ainda
que nem sempre com o sucesso desejado. Por exemplo: em “pans de peur” temos uma
repetição da consoante “p” que se perde em “porções de medo”. Ou, em outro
exemplo, o próprio tamanho (e a distribuição de consoantes e vogais) do verso
“rouge partout infiltré dans les tissus”, que na versão em português fica muito
menos condensado, a ponto de “partout” virar “por toda parte”, expressão que,
ainda que retome o “p” e o “t” de “partout”, alonga-se demasiadamente no verso:
“vermelho por toda parte infiltrado nos tecidos”. Uma possível solução, tentando
conciliar o aspecto sonoro com a questão do tamanho do verso, seria lançar mão
de algo como “por tudo”, “em tudo” etc.
O ponto mais problemático está, contudo, na palavra amor, empregada em espanhol por Brossard: “à force d’images des
pans de peur / l’amor qui éloigne les
chèvres”. Em uma primeira tradução, a solução foi colocar el amor, a fim de recuperar a língua espanhola, já que amor coincidiria com o português. Ocorre
que esse é a menor das dificuldades: “l’amor”,
lido por um falante nativo do francês, desliza muito facilmente para a mesma
pronúncia de “la mort”, deslize que, se vista a estrutura global do poema, não
é por acaso: a morte atravessa o texto, infiltrando-se inclusive na própria
passagem “l’amor”, gerando uma
situação ambígua em que tanto o “amor” quanto a “morte” “afasta as cabras”. Em
português esse deslocamento de significantes não é possível – ou pelo menos não
em uma tradução direta. A pronúncia de “el
amor não geraria algo como “a morte”. Há no mínimo três caminhos, nenhum
deles plenamente satisfatórios: abandonar a tentativa de reproduzir tal efeito
em português, contentando-se com a possibilidade de que a figura da morte que
atravessa os versos anteriores “contamine” o verso em questão, ou lançar mão de
uma recriação mais livre, afastando-se da “forma” do “original” para se
aproximar do seu funcionamento, do seu artifício: tentar encontrar na tradução
uma estrutura que, nessa interface espanhol-português (como ocorreu no
espanhol-francês de Brossard) coloque em jogo, no próprio plano sonoro, o amor
e a morte; mas não parece aconselhável se afastar do referente “amor”;
portanto, poderia se fazer algo como “el
amor te afasta das cabras”, em que o pronome “te”, ainda que mude o sentido
dos agentes (“el amor que afasta as
cabras” vira “el amor te afasta das
cabras”) recupera parcialmente o som de “morte”. Uma terceira solução seria, na tentativa de
manter os signos “amor” e “morte”, criar algo como “el amor(te) que afasta as cabras”: a dupla leitura é recuperada, ainda
que de um modo muito menos sutil. Muito menos interessante.
O penúltimo verso traz um problema semelhante: “à force d’images des pans
de peur”. “Pans” em francês pode ser traduzido sem grandes problemas por parte,
porção, pedaço. Mas, se levarmos em conta a forte presença da figura da morte no
poema, a palavra “Pans” nos remete também ao deus Pan da mitologia grega,
conhecido como o único deus a ter conhecido a morte. Em português o mesmo deus
se chama Pã, novamente não trazendo (ao menos não em um primeiro momento) uma
solução imediata para se jogar com essa dupla leitura possível em língua
francesa.
O texto de Brossard é, enfim, transparentemente opaco: há um explícito (e
constante) trabalho sobre a linguagem, que ora põe em xeque a sintaxe, ora põe
em xeque a própria leitura do signo linguístico. Na minha versão final (ou
quase) da tradução do poema, tentei trazer essa dupla leitura para a versão em
português (já que esse me parece um dos aspectos mais interessantes da poesia
de Brossard), mesmo que por vezes leve a um afastamento maior em relação ao
original. É por isso que optei por “el
amor te afasta das cabras” e “à força de porções de pânico”, em que “pânico”
recupera o deus Pã e traz ainda um segundo ganho: a repetição de /p/.
em San Cristobal de las Casas numa manhã de
Virgem negra
de Coca cola e de incenso siempre
acaricio uma ideia de vida na poeira
um cheiro de carne e de silêncio
vermelho por toda parte infiltrado nos tecidos
à força de imagens porções de pânico
el amor te afasta das cabras