17 de março de 2014

Traduzir Nicole Brossard


Por Thiago Mattos.


Nicole Brossard nasceu em Montreal, em 1943. Poeta, ensaísta e romancista, Brossard é uma das vozes centrais da poesia contemporânea quebequense, tendo, junto com outros poetas, se agrupado em torno da revista La barre du jour, “sacudindo a sintaxe e desenvolvendo uma voz claramente formalista” (Pierre Nepveu em prefácio à antologia Latitudes: 9 poetas do Québec, organizada e traduzida por Álvaro Faleiros). 
          Conheci Nicole Brossard após ler alguns romancistas contemporâneos do Quebeque (Gaétan Soucy, Noël Audet, Danny Laferrière etc.). Apesar de Brossard também ser romancista, foi quando comecei a ler a poesia do Quebeque que a conheci. Traduzi alguns dos seus poemas no blog Je vous défenestre, espaço que mantenho como lugar de divulgação da poesia contemporânea em francês. Algumas semanas depois, Márcio-André, poeta e editor da carioca Confraria do Vento, entrava em contato comigo, falando de um antigo projeto de publicar Nicole Brossard no Brasil. Entramos em contato com Brossard, com a Noroît (editora que detém os direitos autorais) e, no momento, terminamos de montar o projeto. Em conversa com Brossard, decidi traduzir Musée de l’os et de l’eau, uma de suas obras mais traduzidas, tendo recebido o Grand Prix du Festival International de la Poésie de Trois-Rivières, festival de que pude participar como poeta em 2013.
Traduzir poesia oferece desafios que colocam em xeque a própria noção de traduzibilidade. Isso porque o senso comum coloca a poesia em um lugar inalcançável, quase mítico, espécie de objeto divino intraduzível (a tradução aí equiparada a uma violação, uma deturpação de um “original” sagrado), intransponível e, em últimas consequências, indizível e ilegível. Sempre tentei encontrar nos estudos da tradução reflexões que embasassem a minha certeza de que a poesia pode (e deve) ser traduzida, o que me levou ao trabalho de autores como Haroldo e Augusto de Campos, Ezra Pound, Meschonnic, Susan Bassnett, Mário Laranjeira, André Lefevere, autores tão díspares mas que apontam, cada um a seu modo, para o caráter eminentemente crítico do ato tradutório, para a tradução enquanto gesto de leitura e, portanto, como gesto possível, ou mesmo desejado, promovendo uma dessacralização do texto poético e, por conseguinte, uma mudança de valores no que diz respeito à tradução de poesia.
Mas é sabido que, quando o assunto é tradução, a teoria não pode se sobrepor à prática: estão ambas juntas uma servindo a outra. E é por isso que tentarei trazer dois ou três aspectos da poesia de Brossard, e como são trabalhados no processo tradutório. Musée de l’os et de l’eau é, nesse sentido, um exemplo significativo da poética de Brossard: o trabalho sobre a sintaxe, a preocupação formal já cedendo lugar, na produção mais recente, a certo retorno da subjetividade, a pesquisa do corpo, aqui transformado em museu, tempo e linguagem. (Tentar) reproduzir em português esse estranhamento da sintaxe, esse trabalho sobre a linguagem que coloca em xeque o próprio laço significante-significado do signo linguístico, traz dificuldades imensas. Seleciono, a seguir, um poema em que isso se mostra mais evidente.

à San Cristobal de Las Casas un matin de
Vierge noire
De Coca cola et d’encens siempre
je caresse une idée de vie dans la poussière

une odeur de chair et de silence
rouge partout infiltré dans les tissus

à force d’images des pans de peur
l’amor qui éloigne les chèvres

Num primeiro momento, assim ficou a tradução:

em San Cristobal de las Casas numa manhã de
Virgem negra
de Coca cola e de incenso siempre
acaricio uma ideia de vida na poeira

um cheiro de carne e de silêncio
vermelho por toda parte infiltrado nos tecidos

à força de imagens porções de medo
el amor que afasta as cabras

A tradução procurou conservar a sintaxe “estranha” (talvez mesmo estrangeira) de Brossard, evidente sobretudo nos versos “um cheiro de carne e de silêncio / vermelho por toda parte infiltrado nos tecidos”. Além disso, privilegiou-se a textura fônica do texto, ou a “sonoridade” simplesmente, ainda que nem sempre com o sucesso desejado. Por exemplo: em “pans de peur” temos uma repetição da consoante “p” que se perde em “porções de medo”. Ou, em outro exemplo, o próprio tamanho (e a distribuição de consoantes e vogais) do verso “rouge partout infiltré dans les tissus”, que na versão em português fica muito menos condensado, a ponto de “partout” virar “por toda parte”, expressão que, ainda que retome o “p” e o “t” de “partout”, alonga-se demasiadamente no verso: “vermelho por toda parte infiltrado nos tecidos”. Uma possível solução, tentando conciliar o aspecto sonoro com a questão do tamanho do verso, seria lançar mão de algo como “por tudo”, “em tudo” etc.
O ponto mais problemático está, contudo, na palavra amor, empregada em espanhol por Brossard: “à force d’images des pans de peur / l’amor qui éloigne les chèvres”. Em uma primeira tradução, a solução foi colocar el amor, a fim de recuperar a língua espanhola, já que amor coincidiria com o português. Ocorre que esse é a menor das dificuldades: “l’amor”, lido por um falante nativo do francês, desliza muito facilmente para a mesma pronúncia de “la mort”, deslize que, se vista a estrutura global do poema, não é por acaso: a morte atravessa o texto, infiltrando-se inclusive na própria passagem “l’amor”, gerando uma situação ambígua em que tanto o “amor” quanto a “morte” “afasta as cabras”. Em português esse deslocamento de significantes não é possível – ou pelo menos não em uma tradução direta. A pronúncia de “el amor não geraria algo como “a morte”. Há no mínimo três caminhos, nenhum deles plenamente satisfatórios: abandonar a tentativa de reproduzir tal efeito em português, contentando-se com a possibilidade de que a figura da morte que atravessa os versos anteriores “contamine” o verso em questão, ou lançar mão de uma recriação mais livre, afastando-se da “forma” do “original” para se aproximar do seu funcionamento, do seu artifício: tentar encontrar na tradução uma estrutura que, nessa interface espanhol-português (como ocorreu no espanhol-francês de Brossard) coloque em jogo, no próprio plano sonoro, o amor e a morte; mas não parece aconselhável se afastar do referente “amor”; portanto, poderia se fazer algo como “el amor te afasta das cabras”, em que o pronome “te”, ainda que mude o sentido dos agentes (“el amor que afasta as cabras” vira “el amor te afasta das cabras”) recupera parcialmente o som de “morte”.  Uma terceira solução seria, na tentativa de manter os signos “amor” e “morte”, criar algo como “el amor(te) que afasta as cabras”: a dupla leitura é recuperada, ainda que de um modo muito menos sutil. Muito menos interessante.
O penúltimo verso traz um problema semelhante: “à force d’images des pans de peur”. “Pans” em francês pode ser traduzido sem grandes problemas por parte, porção, pedaço. Mas, se levarmos em conta a forte presença da figura da morte no poema, a palavra “Pans” nos remete também ao deus Pan da mitologia grega, conhecido como o único deus a ter conhecido a morte. Em português o mesmo deus se chama Pã, novamente não trazendo (ao menos não em um primeiro momento) uma solução imediata para se jogar com essa dupla leitura possível em língua francesa.
O texto de Brossard é, enfim, transparentemente opaco: há um explícito (e constante) trabalho sobre a linguagem, que ora põe em xeque a sintaxe, ora põe em xeque a própria leitura do signo linguístico. Na minha versão final (ou quase) da tradução do poema, tentei trazer essa dupla leitura para a versão em português (já que esse me parece um dos aspectos mais interessantes da poesia de Brossard), mesmo que por vezes leve a um afastamento maior em relação ao original. É por isso que optei por “el amor te afasta das cabras” e “à força de porções de pânico”, em que “pânico” recupera o deus Pã e traz ainda um segundo ganho: a repetição de /p/.

em San Cristobal de las Casas numa manhã de
Virgem negra
de Coca cola e de incenso siempre
acaricio uma ideia de vida na poeira

um cheiro de carne e de silêncio
vermelho por toda parte infiltrado nos tecidos

à força de imagens porções de pânico

el amor te afasta das cabras