Por Allan Kaprow, 1986.
Já
é bastante sabido que nos últimos trinta anos meu principal
trabalho como artista reside em atividades1
e contextos que de maneira alguma sugerem arte. Por exemplo, escovar
meus dentes de manhã, quando ainda mal acordei; ver no espelho o
ritmo do meu cotovelo se movendo pra cima e pra baixo...
A
prática de uma tal arte, que não é percebida como arte, não é
tanto uma contradição quanto um paradoxo. Motivo por que requer
tanto algum fundamento.
Quando
falo de atividades e contextos que não sugerem arte,
não quero dar a entender que um evento como escovar meus
dentes todas
as manhãs
foi escolhido
e, em seguida,
inserido em
um contexto de arte convencional, como
Duchamp e muitos outros depois dele fizeram. Essa estratégia, pela
qual uma estrutura identificadora de arte (como é uma galeria ou um
teatro) confere “valor artístico” ou “discurso artístico” a
algum objeto, ideia ou evento de não-arte2,
foi no
movimento inicial de Duchamp, de
uma ironia contundente.
Isso levou a
um
confronto
toda uma série de pressupostos sagrados sobre a criatividade, o
talento profissional, a individualidade, a espiritualidade, o
modernismo, e os presumidos valor e função da própria alta arte.
Entretanto,
posteriormente, isso se tornou trivial, à medida que mais e mais
não-arte
foi colocada em exposições por outros artistas. Independente dos
méritos de cada caso, o mesmo truísmo foi inaugurado
todas as vezes em que vimos uma pilha de produtos industriais numa
galeria, todas as vezes que
a
vida cotidiana foi alardeada
em um palco: o
de que qualquer coisa pode ser estetizada, desde que seja posta no
pacote
de
arte adequado.
Mas por que deveríamos querer estetizar “qualquer coisa”? Toda a
ironia foi perdida nessas apresentações, as questões provocativas
foram
esquecidas.
Continuar fazendo este tipo de movimento na arte me parece
improdutivo.
Em
vez disso, decidi prestar atenção em escovar meus dentes, observar
meu cotovelo se mover. Estaria sozinho no meu banheiro, sem os
espectadores de arte. Não haveria galeria, nenhum crítico para
julgar, nenhuma publicidade. Essa foi a alteração crucial que
retirou a performance da vida diária de todos, mas não da memória
da arte. Eu poderia, é claro, ter dito para mim mesmo: “Agora eu
estou fazendo arte!” Mas, efetivamente, eu não pensei muito sobre
isso.
Minha
consciência e meus pensamentos foram de outra ordem. Comecei a
prestar atenção no quanto esse ato de escovar meus dentes se tornou
rotina, comportamento inconsciente, comparado aos meus primeiros
esforços de fazê-lo quando era criança. Passei a suspeitar de que
99% da vida diária
era tão rotineira e despercebida; de
que minha mente estava sempre em outro lugar; e de que os milhares de
sinais enviados a mim pelo meu corpo a cada minuto eram ignorados.
Também imaginei que, em relação a isso, a maioria das pessoas era
como eu.
Escovando
meus dentes atentamente por duas semanas, gradualmente
me dava conta da tensão em meu cotovelo (ela já estava ali antes?),
da pressão da escova na minha gengiva, seu leve sangramento (deveria
visitar o dentista?). Eu olhei pra cima e vi, realmente vi, meu rosto
no espelho. Eu raramente me olhava assim que levantava, talvez porque
quisesse evitar o rosto inchado que vi, pelo menos até que fosse
lavado e amenizado para se adequar à imagem pública de minha
preferência. (E quantas vezes vi outros fazerem o mesmo acreditando
que eu era diferente!)
Isso
foi uma chamada de atenção para minha privacidade e minha
humanidade. Uma figura pífia de mim mesmo começava a vir à tona,
imagem que criei mas nunca examinei. Ela coloriu as imagens que eu
fiz do mundo e influenciou no modo como lidei com as minhas imagens
de outros. Vi isso pouco a pouco. Mas se esse largo campo de
ressonância, irradiado do simples processo de escovar meus dentes,
parece muito distante do seu ponto de partida, eu devo logo dizer que
ele nunca deixou o banheiro. A fisicalidade
de escovar,
o sabor aromático da pasta de dente, de
enxaguar a minha boca e a escova, as muitas pequenas nuances tais
como ser destro me obriga a meter a escova rapidamente desse mesmo
lado da boca e depois levá-la ao lado esquerdo – essas
particularidades sempre ficam no presente. As grandes implicações
aparecem de tempos em tempos ao longo de sucessivos dias. Tudo isso
do escovar os dentes.
Como
isso pode ser relevante para arte? Por que não é só
sociologia? É relevante pois desdobramentos dentro do próprio
modernismo deixaram à dissolução da arte suas fontes de vida. A
arte no ocidente tem uma longa história de movimentos
secularizantes, remontando pelo menos tão remotamente quanto o
período helenístico. Pelos últimos anos de 1950 e 1960, esse
impulso de aproximação
à vida3
dominou a vanguarda. A
arte migrou do objeto especializado da galeria para o ambiente urbano
real; para o corpo e mente reais; para a tecnologia de comunicação;
e para as regiões remotas do oceano, do céu, e do deserto. Desse
modo, a relação entre o ato de escovar os dentes e a arte recente é
clara e não pode ser evitada. Aí é onde reside o paradoxo, um
artista preocupado com arte-como-vida4
é um artista que faz e não faz arte. Qualquer coisa menos que
paradoxo seria simplista. A menos que a identidade
(e assim o sentido) do que o artista faz
oscile entre o ordinário, a atividade reconhecível e a
“ressonância” dessa atividade num amplo contexto humano, essa
atividade se reduz ao comportamento convencional.
Ou se é enquadrada como arte
em uma galeria, isso a reduz à arte
convencional. Assim, escovar os dentes como normalmente se faz da
mesma maneira não oferece retorno ao mundo real, mas a vida
ordinária realizada5
como arte/não-arte6
pode carregar o cotidiano com força de linguagem.
Tradução e notas de Ronaldo Ferrito
1“Activities”, ações desenvolvidas por Kaprow que estariam entre a
performance e o happening,
por assim dizer. Depois dos happenings iniciais, K. se dedicou a
planejar de maneira interativa suas ações, envolvendo orientações
para participação controlada do público, como vemos em “18
happenings in 6 parts”, 1959. Ali suas activities já aparecem
como um tipo específico de happening, refazendo ações cotidianas ao lado de apresentações de action painting, projeções etc., com espectadores controlados por uma espécie de manual do público que definia inclusive os momentos de baterem palmas.
2“Nonart”,
no original, é um termo
cunhado por K. para opor-se
à
“arte-arte”
(arte convencional,
intencional e reconhecível),
implicando
uma tensão dialética no
objeto de arte: a condição de “arte-não-arte”
(art-not-art).
Cf.
no seu ensaio em duas partes
“The Education of the Un-Artist”
(A
Educação
do A-Artista).
Naquele
ensaio, K. também distingue o artista (da
“arte-arte”)
e o a-artista (da “a-arte”).
3No
original, “lifelike impulse”. “Lifelike” é um termo
usado por K. para identificar a proposta essencial do movimento
de live art dos anos 50 e
60, que demanda uma
aproximação/não discernimento
da arte com
a vida, uma arte viva e ao
vivo, como
os hapennings
ou as posteriores activities
desenvolvidas por ele.
O termo “lifelike”
aparecerá a
seguir, explicitando ainda
mais seu sentido específico, na
fórmula “lifelike
art”. Nesta
primeira ocorrência, decidimos
traduzir o termo em seu
contexto, não sem nenhuma consequência, por “impulso de
aproximação à
vida”.
4No
original, novamente “lifelike art”. Optamos por nossa
tradução respeitando o contexto curto em que o termo aparece neste
ensaio, que não nos permitiria, portanto, mantê-lo em inglês. Em
português, não há ainda uma versão cristalizada, ou oficial
para o termo tal como K. o concebe.
5No
original, “performed”.
6No
original, “art/not art”. Essencialmente o mesmo que
K. diz com o termo “art-not-art” (arte-não-arte) no
seu famoso ensaio, já mencionado aqui, “The Education of The
Un-Artist”.