17 de março de 2014

Arte que não pode ser arte



Por Allan Kaprow, 1986.


Já é bastante sabido que nos últimos trinta anos meu principal trabalho como artista reside em atividades1 e contextos que de maneira alguma sugerem arte. Por exemplo, escovar meus dentes de manhã, quando ainda mal acordei; ver no espelho o ritmo do meu cotovelo se movendo pra cima e pra baixo...

A prática de uma tal arte, que não é percebida como arte, não é tanto uma contradição quanto um paradoxo. Motivo por que requer tanto algum fundamento.

Quando falo de atividades e contextos que não sugerem arte, não quero dar a entender que um evento como escovar meus dentes todas as manhãs foi escolhido e, em seguida, inserido em um contexto de arte convencional, como Duchamp e muitos outros depois dele fizeram. Essa estratégia, pela qual uma estrutura identificadora de arte (como é uma galeria ou um teatro) confere “valor artístico” ou “discurso artístico” a algum objeto, ideia ou evento de não-arte2, foi no movimento inicial de Duchamp, de uma ironia contundente. Isso levou a um confronto toda uma série de pressupostos sagrados sobre a criatividade, o talento profissional, a individualidade, a espiritualidade, o modernismo, e os presumidos valor e função da própria alta arte. Entretanto, posteriormente, isso se tornou trivial, à medida que mais e mais não-arte foi colocada em exposições por outros artistas. Independente dos méritos de cada caso, o mesmo truísmo foi inaugurado todas as vezes em que vimos uma pilha de produtos industriais numa galeria, todas as vezes que a vida cotidiana foi alardeada em um palco: o de que qualquer coisa pode ser estetizada, desde que seja posta no pacote de arte adequado. Mas por que deveríamos querer estetizar “qualquer coisa”? Toda a ironia foi perdida nessas apresentações, as questões provocativas foram esquecidas. Continuar fazendo este tipo de movimento na arte me parece improdutivo.

Em vez disso, decidi prestar atenção em escovar meus dentes, observar meu cotovelo se mover. Estaria sozinho no meu banheiro, sem os espectadores de arte. Não haveria galeria, nenhum crítico para julgar, nenhuma publicidade. Essa foi a alteração crucial que retirou a performance da vida diária de todos, mas não da memória da arte. Eu poderia, é claro, ter dito para mim mesmo: “Agora eu estou fazendo arte!” Mas, efetivamente, eu não pensei muito sobre isso.

Minha consciência e meus pensamentos foram de outra ordem. Comecei a prestar atenção no quanto esse ato de escovar meus dentes se tornou rotina, comportamento inconsciente, comparado aos meus primeiros esforços de fazê-lo quando era criança. Passei a suspeitar de que 99% da vida diária era tão rotineira e despercebida; de que minha mente estava sempre em outro lugar; e de que os milhares de sinais enviados a mim pelo meu corpo a cada minuto eram ignorados. Também imaginei que, em relação a isso, a maioria das pessoas era como eu.

Escovando meus dentes atentamente por duas semanas, gradualmente me dava conta da tensão em meu cotovelo (ela já estava ali antes?), da pressão da escova na minha gengiva, seu leve sangramento (deveria visitar o dentista?). Eu olhei pra cima e vi, realmente vi, meu rosto no espelho. Eu raramente me olhava assim que levantava, talvez porque quisesse evitar o rosto inchado que vi, pelo menos até que fosse lavado e amenizado para se adequar à imagem pública de minha preferência. (E quantas vezes vi outros fazerem o mesmo acreditando que eu era diferente!)

Isso foi uma chamada de atenção para minha privacidade e minha humanidade. Uma figura pífia de mim mesmo começava a vir à tona, imagem que criei mas nunca examinei. Ela coloriu as imagens que eu fiz do mundo e influenciou no modo como lidei com as minhas imagens de outros. Vi isso pouco a pouco. Mas se esse largo campo de ressonância, irradiado do simples processo de escovar meus dentes, parece muito distante do seu ponto de partida, eu devo logo dizer que ele nunca deixou o banheiro. A fisicalidade de escovar, o sabor aromático da pasta de dente, de enxaguar a minha boca e a escova, as muitas pequenas nuances tais como ser destro me obriga a meter a escova rapidamente desse mesmo lado da boca e depois levá-la ao lado esquerdo – essas particularidades sempre ficam no presente. As grandes implicações aparecem de tempos em tempos ao longo de sucessivos dias. Tudo isso do escovar os dentes.

Como isso pode ser relevante para arte? Por que não é sociologia? É relevante pois desdobramentos dentro do próprio modernismo deixaram à dissolução da arte suas fontes de vida. A arte no ocidente tem uma longa história de movimentos secularizantes, remontando pelo menos tão remotamente quanto o período helenístico. Pelos últimos anos de 1950 e 1960, esse impulso de aproximação à vida3 dominou a vanguarda. A arte migrou do objeto especializado da galeria para o ambiente urbano real; para o corpo e mente reais; para a tecnologia de comunicação; e para as regiões remotas do oceano, do céu, e do deserto. Desse modo, a relação entre o ato de escovar os dentes e a arte recente é clara e não pode ser evitada. Aí é onde reside o paradoxo, um artista preocupado com arte-como-vida4 é um artista que faz e não faz arte. Qualquer coisa menos que paradoxo seria simplista. A menos que a identidade (e assim o sentido) do que o artista faz oscile entre o ordinário, a atividade reconhecível e a “ressonância” dessa atividade num amplo contexto humano, essa atividade se reduz ao comportamento convencional. Ou se é enquadrada como arte em uma galeria, isso a reduz à arte convencional. Assim, escovar os dentes como normalmente se faz da mesma maneira não oferece retorno ao mundo real, mas a vida ordinária realizada5 como arte/não-arte6 pode carregar o cotidiano com força de linguagem.

Tradução e notas de Ronaldo Ferrito

1“Activities”, ações desenvolvidas por Kaprow que estariam entre a performance e o happening, por assim dizer. Depois dos happenings iniciais, K. se dedicou a planejar de maneira interativa suas ações, envolvendo orientações para participação controlada do público, como vemos em “18 happenings in 6 parts”, 1959. Ali suas activities já aparecem como um tipo específico de happening, refazendo ações cotidianas ao lado de apresentações de action painting, projeções etc., com espectadores controlados por uma espécie de manual do público que definia inclusive os momentos de baterem palmas.  

2“Nonart”, no original, é um termo cunhado por K. para opor-se àarte-arte” (arte convencional, intencional e reconhecível), implicando uma tensão dialética no objeto de arte: a condição de “arte-não-arte” (art-not-art). Cf. no seu ensaio em duas partesThe Education of the Un-Artist(A Educação do A-Artista). Naquele ensaio, K. também distingue o artista (da “arte-arte”) e o a-artista (da “a-arte”).

3No original, “lifelike impulse”. “Lifelike” é um termo usado por K. para identificar a proposta essencial do movimento de live art dos anos 50 e 60, que demanda uma aproximação/não discernimento da arte com a vida, uma arte viva e ao vivo, como os hapennings ou as posteriores activities desenvolvidas por ele. O termo “lifelikeaparecerá a seguir, explicitando ainda mais seu sentido específico, na fórmulalifelike art”. Nesta primeira ocorrência, decidimos traduzir o termo em seu contexto, não sem nenhuma consequência, por “impulso de aproximação à vida”.

4No original, novamente “lifelike art”. Optamos por nossa tradução respeitando o contexto curto em que o termo aparece neste ensaio, que não nos permitiria, portanto, mantê-lo em inglês. Em português, não há ainda uma versão cristalizada, ou oficial para o termo tal como K. o concebe.

5No original, “performed”.

6No original, “art/not art”. Essencialmente o mesmo que K. diz com o termo “art-not-art” (arte-não-arte) no seu famoso ensaio, já mencionado aqui, “The Education of The Un-Artist”.