17 de março de 2014

Xadrez de influências

Por Fabio Romeiro Gullo.




Mas os poetas fortes continuam retornando dos mortos, e só pela quase mediunidade de outros poetas fortes.
HAROLD BLOOM, A Angústia da influência

  
Em um curtíssimo ensaio publicado em meu blogue em 10 de novembro de 2010, intitulado Leitura de um poema de Haroldo de Campos escrito por Márcio-André, notei o quanto a leitura do poema 1984: ano 1, era de Orwell do poeta paulistano falecido em 2003 lembrava o estilo, imagens e poética do jovem poeta carioca. Eu esmiuçava, naquele ensaio, o inusitado dessa experiência, da qual, afinal, esperar-se-ia o contrário, isto é, que o texto do poeta mais jovem lembrasse o do poeta mais velho, concluindo que estávamos diante de uma vitória que atestava a maior força, naquele modo poético particular, do poeta posterior.

Tratava-se, como eu explicava, de um fenômeno de interpretação ou leitura que o crítico norte-americano Harold Bloom descreve em seu livro A angústia da influência:

apophrades, os dias tristes ou desafortunados nos quais os mortos voltam a habitar suas antigas casas, ocorre aos poetas mais fortes, mas com os muito mais fortes dá-se um grande e final movimento revisionário, que purifica até mesmo esse último influxo… Pois todos eles conseguem um estilo que capta e curiosamente retém prioridade sobre seus precursores, de modo que se subverte a tirania do tempo, e pode-se acreditar, por momentos de pasmo, que estão sendo imitados por seus ancestrais.

Naquela primeira e modesta incursão crítica, notei que ali não procuraria as origens daquela experiência de leitura singular. Agora, um ano depois, num lance mais amplo e maduro de percepção, compreendo, ao ler a coletânea de poemas de Haroldo de Campos, Xadrez de Estrelas (Perspectiva, 2008), o quanto aquela intuição inicial continha de premonitório no que diz respeito a uma visão comparativa mais ampla das obras em questão – mais especificamente, no que diz respeito a uma maior possibilidade de haver, de fato, um débito de influência de M-A para com Haroldo, deparemo-nos aqui com dívida adquirida consciente ou inconscientemente, ou ainda, nas palavras do próprio M-A (veja citação abaixo), por “contaminação não-hierárquica”, neste caso implicando-se outras possibilidades, holísticas e talvez fantásticas, como a de influências mais antigas comuns a ambos os poetas, a de influências que se “propaga[m] no ar mais do que nos olhos” (citando M-A outra vez)[1] sem respeitar direções temporais, ou a possibilidade, mais remota a meu ver, de total coincidência em vez de influência – todas essas hipóteses nem sempre exclusivas e cuja validade, em todo o caso, restará nos ombros de cada leitor.

Em correspondência comigo, respondendo à leitura de um primeiríssimo rascunho deste ensaio, o próprio poeta carioca embasa, ainda que com ressalvas, meu argumento central:

Não vou falar muito para não "influenciá-lo" (rs), mas, no texto, vc falou coisas muito acertadas e outras que nem eu tinha percebido. Por exemplo: Signantia: quasi coelum foi um livro fundamental e muito contaminador de minha poética. Entretanto, não conhecia o poema do Haroldo sobre o cavaleiro em sua armadura de carvão-de-pedra. Eu mesmo fiquei surpreso com a semelhança... Nesse sentido, acredito mais numa contaminação não-hierárquica que se propaga no ar mais que nos olhos, do que propriamente num sistema "métrico" de influências...

P.S.: De qualquer maneira, Haroldo é sim um dos meus grandes mestres, junto com Cabral, Aigui, Cummings, Celan, Halfi e outros...

Lista à qual eu tomaria a liberdade de acrescentar os nomes de Ezra Pound – provavelmente a maior influência de M-A – e, talvez tão influente quanto Haroldo, o nome de Mathieu Bénézet, cujo magnífico fragmento 5 dedos azulados foi traduzido por M-A e pode ser encontrado na edição eletrônica da revista Confraria do vento (http://www.confrariadovento.com/revista/numero9/phantascopia.htm). Nesse fragmento, apenas a título de instigação, noto como encontramos de pronto a imagem da casa (casa-bloco, no fragmento), tão cara a M-A, assim como, em outros trechos, uma semelhança de dicção e idiossincrasia de estilo que lembram sobremaneira os textos de M-A[2].

Em seu texto crítico a respeito de parte da obra de Haroldo de Campos, no trecho em que trata de Signantia: quasi coelum (Um lance de nadas na épica de Haroldo, http://www.schulers.com/donaldo/haroldo), Donaldo Schüler, embora não pretenda interpretar o livro, já o interpreta ao classificá-lo como poema cosmogônico, com o que concordo, o mesmo podendo ser dito de Intradoxos, magnum opus de de M-A – de fato, numa comparação de ambos os livros, fica clara tal semelhança tanto em estrutura quanto em temas. Intradoxos, contudo, possui ainda outra faceta que o projeta para além de Signantia: nominalmente, seu plano de abranger se não a História, todo o mundo cultural; de se fazer poema-da-tribo, poema-total. A fragmentação e a construção ideogrâmica poundianos, assim como a constelação mallarmeana, mais do que o verso linear tradicional, são a base aqui. Novos mundos, mais do que novas visões do nosso mundo, na forma de novas imagens ou símbolos que, seguindo modelo de Gilbert Durand[3], constelam-se em sistemas de imagens e até mesmo esboços de narrativas ou, quando não, esboços de poéticas, isto é, neste contexto, novos mitos, são gerados; todo esse processo, observe-se, mais palpável e objetal em Intradoxos[4], mais abstrato e metapoético em Signantia[5]. Proponho a soma de Cantos, Signantia Quasi Coelum, Auto do Possesso (primeiro livro de Haroldo) e 5 dedos azulados, de Mathieu Bénézet, como ur-texto de Intradoxos; mais ainda: proponho a soma de Cantos, 5 dedos azulados, Auto do Possesso, Signantia e sua supracitada crítica por Donaldo Schüler como ur-texto de Intradoxos (vale notar que o texto crítico de Donaldo parece ter tido, no mínimo, tanta influência nas imagens de M-A quanto o próprio Signantia; se este não for o caso, vale então a crítica de Donaldo como interpretação de Intradoxos, via interpretação de Signantia); proponho, desde já, a superiodidade de Intradoxos sobre esse hipotético texto híbrido original, inclusive sobre os Cantos, talvez o mais famoso e notável “fracasso”[6] poético do século XX. Como veremos, Intradoxos seria o resultado da superação das influências de seu autor, ou, como preferiria Harold Bloom, a própria materialização, formalização ou, ainda melhor, a sublimação da angústia causada por essas influências sobre nosso autor, ainda que o próprio M-A não tenha consciência de tais conflitos.

Para ilustrar essas hipóteses, concentrar-me-ei, neste ensaio, em paralelos entre a obra de Haroldo de Campos, a crítica de Donaldo Schüler, o fragmento de Mathieu Bénézet e a obra de M-A, ficando para outra oportunidade comparações com a obra poundiana, em todo caso mais explícitas e evidentes. Emergerá, assim e aos poucos, um inventário incompleto das imagens compartilhadas por essas obras. Concluirei argumentando, dentro da teoria da influência poética de Harold Bloom, a favor de uma vitória relativa do efebo, M-A, na disputa pela supremacia de um modo poético particular (sem esquecer que Haroldo de Campos, mais do que M-A, trabalhou em múltiplos modos poéticos), que seria uma espécie de orfismo animista mais ou menos hermético, informado por toda a tradição vanguardista tanto em seu aspecto conteudístico (por vezes irracional – cubista, surrealista) quanto formal (indo do verso livre à fragmentação cummingsiana, da constelação mallameana à espacialização concretista) e estilístico, eminentemente urbano e técnico (também eminentemente metapoético, especialmente no caso de Haroldo), dado mais ao objeto que ao sujeito, este presente apenas em lampejos (fragmentos) ou peças isoladas (como o poema envoi de Haroldo, possível fonte direta do palpavelmente superior poema sem título de M-A, que aparece na 3ª edição da Revista 7 Faces [http://issuu.com/setefaces/docs/edi__o_3_da_7faces/37] e inicia com o verso de todo jardim, paralelo que desenvolverei adiante).


a borboleta reflete-se em asas

Começarei por onde construí e concluí o ensaio seminal: a imagem da borboleta em voo. Como eu já havia observado, o verso de M-A, a borboleta reflete-se em asas (do poema Mecanismos, em Intradoxos), é uma verdadeira pedra-de-toque, uma das mais perfeitas imagens poéticas de que me lembro (baseado em preceito de Ezra Pound, para quem um dos melhores critérios de avaliação de um verso é sua força de fixação na memória), potentíssima em sua síntese de imagem, som e ideia (fano, melo e logopeia poundianas), em sua habilidade imagista de evocar uma imagem clara; não os sons, mas, contraditória e espantosamente, o silêncio do voo de borboleta; a ideia fantástica-órfica de um ser que, na realização de seu ato mais característico, define-se ao extremo até se tornar um e o mesmo com esse ato (“a imagem seria um pensar por dentro da coisa até chegar ao seu não e tornar-se, em sua negatividade, a coisa, ainda mesma e outra”, disse M-A em entrevista a Renato Rezende). Esse verso, por sua construção (as sílabas em “e” que compõe o verbo reflete-se – re-fle-te-se – se espelhando em movimento de sístole e diástole até se lançarem em voo via o pronome, sugestivamente dito reflexivo “se” [a esse respeito, o poema Jaguar, de Intradoxos, com seu verso refrão eu sou o jaguar, e ainda, desse livro, o verso jaguar-se em Mecanismos; vindo a calhar também a definição quase órfica de verbo reflexivo como “aquele que expressa a igualdade entre o sujeito e o objeto da ação”, o que, somando-se ao resto, creio, autoriza supor o uso proposital dessa forma, a ênclise, por M-A], somadas à preposição “em” que habilmente as liga ao “objeto indireto” “asas”, cuja imagem – “as” + “as”, as duas letras “s” cuja forma lembra talvez uma [duas] asa[s]), eu acrescentaria que esse verso, por sua construção, provoca toda uma ideia ou impressão de movimento, de voo, tão mais cinética – eu diria hipercinética, beirando um espaço e/ou movimentos fantásticos, surreais – do que seria uma foto ou mesmo uma cena filmada, todos os efeitos anteriores (fano, melo e logopáicos) concorrendo para instigar, gerar uma imagem mental plurisignificativa, de fato um vórtice poundiano do mais alto grau. Algo parecido, note-se de passagem, ocorre na leitura de um poema sem título de Signantia, o qual eu chamarei de Libélula e cujos primeiros versos se organizam assim, na tradução para o inglês, de Craig D. Dworkin:

dragonflies
in the sky of dragonflies

the flight of them
over under

dragonflies

E uma vez que não tenho acesso ao texto original na íntegra, minha tradução, na qual opto por libélua no lugar de borboleta-dragão:

libélulas
no céu de libélulas

o voo delas
sob(re)

libélulas

Note-se, especialmente na tradução, como o vai e vem da rima de “libélulas” e “delas” gera, neste poema, no nível da arquitetura (disposição espacial) mais do que no nível da tecitura (semântica e sintaxe), efeito de voo, ainda que não exatamente de bater de asas.

Em contrapartida, em Haroldo, a borboleta aparece antes como caso particular da imagem do pássaro em voo ou do voo em si, como ilustram os versos:

Um pássaro conhece-se em seu voo,
Espelho de si mesmo, órbita

do poema Teoria e prática do poema, provável verso-pai tanto da borboleta e seu voo ciclamêm de 1984: ano 1, era de Orwell quanto – muito mais explicita e poderosamente – da borboleta que se reflete em asas do poema Mecanismos de M-A[7].


No princípio...


no princípio foram os dentes
que separavam dentro e fora

no princípio foi o giro
e sua sinfonia de esferas

escreve M-A no poema Os dentes, segundo de Intradoxos.

Em Signantia, como aponta Donaldo, no princípio impera a glande, o poder criador do universo, glande que aparece no primeiro poema de Signantia e também na cosmogonia de M-A, implícita no terceiro poema de Intradoxos: depois vieram os deuses / com seus caralhos de jade; e decerto será dispensável observar aqui o quanto a imagem “deuses” (e os deuses, os deuses com suas barbas de argila, em Fábula primeira) e a imagem “jade” (fêmea de jade, no poema O faquir de Auto do possesso) aparecem na obra de Haroldo desde seu primeiro livro, Auto do Possesso.

Outra imagem muito forte de M-A, no poema Gesta, o primeiro verso o cavaleiro negro com seus pulmões negros, teria sua contrapartida no igualmente primeiro verso de A cidade (in Xadrez de estrelas) de Haroldo de Campos: O Cavaleiro em sua armadura de carvão-de-pedra, onde ainda teríamos o paralelo haroldiano do verso—imagem márcio-andriano encuanto o próprio carvão não aceita aderências de luz, do poema O reflexo, em Intradoxos. (A imagem do carvão reaparece em une négresse de Serigrafias: e no carvão / carbúnculos (mina de) e no Haroldo de Aproximações ao Topázio, de Signatia Quasi Coellum: Signância Quase Céuaqui se mascam / carvões ardentes –, poema no qual temos também o girassol pensa: / leopázios!, ecoado em Os ornamentos, de Intradoxos, onde encontramos um hipopótamo sonhando entre os girassóis.) No mesmo poema de Haroldo, temos Onde o homem sem nome é apenas um homem à sombra do Teu Nome; noutro poema, Sinfonia dos Salmos, temos E um moço que não sei invocará Teu nome e O moço encontrado sabia o Teu nome / Senhor, os Teus nomes que afirmam e são, enquanto em M-A temos, no poema A profecia: na grafia do relâmpago surgirá um nome / parte de outro nome e no poema O nome: ela agora tem um nome / e o é, em confronto com o plural e são do poema de Haroldo, confronto que apenas aponto aqui.

No outro extremo do espectro dualista-mitológico comogonia v. escatologia, teríamos o poema O funeral, de Intradoxos, o qual se deixa ver claramente (ou muito coincidentemente) uma releitura (misreading, "leitura distorcida" ou "desleitura", como prefiro, no jargão de Harold Bloom) do poema Loa do Grande Rei, que abre Auto do Possesso, no qual encontramos As portas do domínio, enquanto em O funeral temos abertas estão as duplas portas do horizonte, verso que inicia e termina o poema, do mesmo modo como Para teu gáudio, ó Rei, inicia e termina o poema de Haroldo. Em ambos os poemas, observe-se, a imagem principal é o rei, que encontra ecos—rimas em outras palavras, no caso do poema de Haroldo –, em erguerei, obreiro, disporei e grei, artifício que ilustra ou reflete na forma a ideia de que o soberano é representante—microcosmo de seu reino e povo.


envoi

Flores, olhos e frutas recorrem na imagética márcio-adriana, assim como na haroldiana. Reproduzo abaixo, para comparação, o poema envoi, de Haroldo, e o poema de todo jardim, de M-A. Ainda que um possa não derivar do outro diretamente, há pontos de contato entre os dois e talvez derivação indireta, com o que quero dizer origens comuns, estejam estas em pais poéticos compartilhados, experiências reais semelhantes, simpatia ou afinidade por imagens próximas, sensibilidades irmanadas; tão importante quanto, há, a meu ver, clara superioridade estética no poema de M-A, com o que o leitor poderá concordar ou discordar ao comparar os dois poemas ele mesmo:

envoi

as
memoráveis
coisas
carmen
nos teus olhos
poros
de uma
luz         viol
índigo
an
te
vol
ucres
veneris
vol                                                                       ve
para mim
ióplok  agna                      ó
coroada
de violetas


de todo jardim


de todo jardim escolho
a córnea rajada                de sua flor

ou a flor rajada entre    as pernas
no ventrentre                  os olhos

é inteiramente sua presença
               recolhida
no abstrato de qualquer pensamento
                                  
nem luzes com bolor
nem o seio repousado na mão

a florolho que                  vê enquanto é vista
                               adorna o que lhe adorna

enquanto-flauta trinca-ferro-ótico
as sutilezas dos lilazes-quese-lírios
                                neste cárcere do ver

                               íris-rosácea na estremadura idade da cara
                               como se calculado da extrema idade da terra

a memória do improviso das folhas
o ferruginoso de toda planta
na planta de toda fisionomia


Outro poema de Haroldo do qual convém reproduzir alguns versos, novamente a titulo de comparação, é o poemandala, de Lacunae:

o
olho central
rosácea
rosaberta

sangraberta
a rosácea
o olho
o centro

E ainda os seguintes versos de Austin poems:

laranjas

contra a
lâmpada

que dialogam com versos do poema de M-A DEBUG IS ON THE TABLE (natureza morta com tangerina), como este:

uma tangerina é um olho cítrico

ainda este, de Cazas (Dulcinéia Catadora, 2011):

o sono do deus dentro da casca de uma laranja

este, de Monsanto:

nós ao pé da fonte comendo tangerinas frescas

e outro de as antenas (Intradoxos):

lâmpada de vapor de mercúrio

Para encerrar, um verso de poema com cinco versos sobre barata, de Intradoxos, verso que conjuga duas das imagens que tratei aqui:

ferindo lâmpadas [frutas] elétricas


flexões e sílex

A palavra sílex, que por si mesma conota condições primitivas – armas pré-históricas eram fabricadas especialmente dessa pedra dura e cortante –, aparece duas vezes em Intradoxos, uma no poema Metáforas organizadas em sons distintos e um final de duas imagens:

ao sílex de teu dente

outra em Mecanismos:

codex-sílex: silício-sílice a

Na obra de Haroldo de Campos essa palavra ocorre pelo menos uma vez, na poderosa evocação do poeta como herói mitológico do poema A cidade, que, reforce-se, supracitamos a propósito do verso O Cavaleiro em sua armadura de carvão-de-pedra. Aqui encontramos sílex no verso:

Com a mão livre ainda fere o Sílex do Sonho

De dois outros poemas – marinha do Haroldo de Serigrafias, entrós do M-A de Intradoxos –, proponho comparar o primeiro verso de entrós:

rotas flexas

com os seguintes, de marinha:

um
regato
lacre
flexo

comparação que me sugere, também a julgar pelo estilo de entrós, que no caso deste estamos diante de um poema escrito no automático, o uso inconsciente de palavras e estilo há muito lidos, gravados porque causadores de forte impressão, finalmente esquecidos apenas para aflorarem de forma espontânea sem a informação de suas origens.


Conclusão

Cabe reforçar que os paralelos acima são apenas exemplos cuja intenção é antes indicar influências possíveis ou prováveis, ficando a cargo do leitor – de preferência armado da leitura aprofundada das obras em exame – concordar ou não com tais propostas, especialmente no que diz respeito à vitória estética de Márcio-André, a qual sustento ao comparar sua obra com a de Haroldo de Campos, vitória ainda mais controversa quando vista sob a ótica altamente idiossincrática, que também sustento, da proporção revisionária de Harold Bloom, a denominada apophrades, brevemente descrita no começo deste ensaio[8].

De resto é preciso notar que se trata de vitória relativa, a do efebo sobre o mestre, pois, seguindo a teoria de Bloom, na qual se observa que toda desleitura (todo poema, toda obra, pois todo poema é desleitura de um texto anterior) é também um cerceamento, uma redução do escopo do objeto distorcido, observo, na inssistência da poética márcio-andriana em manter-se integralmente focada no programa animista-órfico, ao mesmo tempo que a origem de sua força (não há dispersão de energia, esta integralmente concentrada numa poética específica), a origem de seu ser-sempre-o-mesmo, de seu olhar limitado ainda que infinitamente permutável ou infinitamente gerador de novas experiências, de seu fechamento a outros modos poéticos; ao contrário da obra harodiana, múltipla ao extremo, obra para a qual o modo órfico-animista não passa de um episódio entre outros, tanto ou mais memoráveis (que o diga o próprio Haroldo, queixoso do rótulo de “concretista”).

Haroldo, assim, teria dispersado suas energias criativas, que, se focadas ao modo obsessivo e exclusivo de um William Blake, de um Rilke, talvez lhe tivessem rendido uma obra poética mais coesa e poderosa, porém mais restrita, a exemplo do próprio irmão Augusto de Campos, cuja poética permaneceu mais centrada em preceitos concretos (leia-se: verbivocovisuais; leia-se: princialmente, plásticos), mais preocupada com o preceito de Maiakóvski segundo o qual “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”[9], e nisso mais forte e identificável, e de Márcio-André, que, na qualidade de poeta – poeta órfico –, encontra neste nosso início de século pouquíssimos paralelos em sua força e originalidade, assim como Haroldo na qualidade de erudito e homem de letras em todo o século XX[10].


por Fábio Gullo

(Publicado originalmente no Portal Musa Rara.)




[1]Um texto do repertório clássico, por sua vez, não deixa de ter influência do texto de um jovem escritor.“ Márcio-André, in Didática pelos quanta, 2009, http://intradoxos.blogspot.com.br/2011/04/didatica-pelos-quanta.html
[2] Por exemplo:

enormes rosas de interior oculto
mesa humana
                  eu vos espero
unido pela terra e pelo céu

2 braços são o amparo
para a oferenda        os ventiladores murmuram
Oceano Oceano

                     silhuetas açafrão
na imprecisão das coisas

                                  uma meditação
perfume secreto e logo invisível
a todo instante testemunha de 1 passagem
do homem

E, aproveitando o ensejo, este trecho de Poema do oitavo dia depois de Pentecostes (Haroldo de Campos, in Auto do possesso):

Pensando nesse azul cortado cerce
Dos templos, cujo côncavo esfuzia
Os pássaros e as flores vespertinas;
E logo nesses pálidos mancebos
Que à dextra de Tanit se concediam
À lua recém-vinda e mais propícia,
Converto-me às virtudes do heliotropo,
E sou, malgrado meu, feito invisível.

[3] in As estruturas antropológicas do imaginário, Martins Fontes, 2004, p. 62.
[4]Paraíso são as coisas.” Escreve Donaldo Schüler no ensaio citado. Ainda: “Frases no papel [verso de Signantia] têm a origem das águas, das plantas, das pedras, do ar, do sol.”
[5] A título de exemplo, este poema de Haroldo, de Excrituras:

onde um
céu de chumbo
sartúneo
respira
violetas de
genciana

um texto
este
e sua i-
leitura

Chamo a atenção para  a natureza metalinguística da segunda estrofe e para o modo como a primeira estrofe soa a Márcio-André contido.
[6] “Não me esforçarei a expor ou a explicar, desculpar, as fraquezas, as aberrações do pensamento de Pound, pois se é certo que sua tentativa poética se salda por um malogro, que ela está viciada desde seu ponto de partida pela insuficiência de alguns de seus aspectos teóricos, ele se mostrou capaz de um novo tipo de apreensão poética da história, ele conseguiu forjar, para exprimí-la, ferramentas que são por vezes de maravilhosa precisão.” Escreve Michel Butor em seu ensaio A tentativa poética de Ezra Pound, in Repertório, Ed. Perspectiva, 1974; ao que eu acrescentaria: ferramentas essas reutilizadas por M-A, com o acréscimo de outras, à maravilha, em especial em Intradoxos e, mais importante, ali e, até onde me é dado saber, apenas ali, sem o prejuízo de aspectos teóricos insuficientes, o que pode ser verificado comparando-se a fortuna crítica em torno de Intradoxos mais as próprias entrevistas e trabalhos teóricos do autor com sua obra realizada.
[7] Também dragões, como deuses, abundam no universo órfico de M-A, e poderiam muito bem ter relação com a pletora de deuses que aparecem em Auto do possesso e com os dragões selenitas desta estrofe de poema de Signantia:

a lua
entre dois
dragões

(Em Intradoxos, temos a segunda parte do livro, intitulada O semeador de dragões; sleepdragon, do poema Terralis; dragão lilás, de Gesta; o flanco das dragas confere dragões, de Trova.)

[8] Na verdade, acredito que este ponto de minha visão crítica só poderá ser corretamente e melhor apreciado após estudo atento da teoria poética de Harold Bloom, exposta sobretudo em seu livro já citado A Angústia da Influência.
[9] Haroldo, é certo, jamais deixou de se preocupar com a forma; mas deixou, isto sim, de se preocupar em renová-la constantemente, sempre lançando, nesse sentido, olhares mais para a tradição do que para a invenção, entendida invenção no sentido que Pound dava ao tipo de poeta que denominava de “inventor”, isto é, “os que descobrem um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo”, feito realizado com frequência por Augusto.
[10] É de conhecimento geral que tanto Haroldo de Campos quanto Márcio-André se dedicaram a outros afazeres artísticos e literários; por exemplo, a produção de ensaios e traduções. Gostaria de reforçar que o argumento que desenvolvo considera exclusivamente a produção poética-textual desses autores, ao insistir em quanto o foco numa única poética levou um ou outro a produzir obra mais coesa e intensa.