Por Fabio Romeiro Gullo.
Mas os poetas fortes continuam retornando dos mortos, e só pela quase mediunidade de outros poetas fortes.
Em um curtíssimo ensaio publicado em meu blogue em 10 de novembro de
2010, intitulado Leitura de um poema de
Haroldo de Campos escrito por Márcio-André, notei o quanto a leitura do
poema 1984: ano 1, era de Orwell do
poeta paulistano falecido em 2003 lembrava o estilo, imagens e poética do jovem
poeta carioca. Eu esmiuçava, naquele ensaio, o inusitado dessa experiência, da
qual, afinal, esperar-se-ia o contrário, isto é, que o texto do poeta mais
jovem lembrasse o do poeta mais velho, concluindo que estávamos diante de uma
vitória que atestava a maior força, naquele modo poético particular, do poeta
posterior.
Mas os poetas fortes continuam retornando dos mortos, e só pela quase mediunidade de outros poetas fortes.
HAROLD BLOOM, A Angústia da influência
Tratava-se, como eu explicava, de um fenômeno de interpretação ou
leitura que o crítico norte-americano Harold Bloom descreve em seu livro A angústia da influência:
A apophrades, os
dias tristes ou desafortunados nos quais os mortos voltam a habitar suas
antigas casas, ocorre aos poetas mais fortes, mas com os muito mais fortes
dá-se um grande e final movimento revisionário, que purifica até mesmo esse
último influxo… Pois todos eles conseguem um estilo que capta e curiosamente
retém prioridade sobre seus precursores, de modo que se subverte a tirania do
tempo, e pode-se acreditar, por momentos de pasmo, que estão sendo imitados
por seus ancestrais.
Naquela primeira e modesta incursão crítica, notei que ali não
procuraria as origens daquela experiência de leitura singular. Agora, um ano
depois, num lance mais amplo e maduro de percepção, compreendo, ao ler a
coletânea de poemas de Haroldo de Campos, Xadrez
de Estrelas (Perspectiva, 2008), o quanto aquela intuição inicial continha
de premonitório no que diz respeito a uma visão comparativa mais ampla das
obras em questão – mais especificamente, no que diz respeito a uma maior
possibilidade de haver, de fato, um débito de influência de M-A para com
Haroldo, deparemo-nos aqui com dívida adquirida consciente ou
inconscientemente, ou ainda, nas palavras do próprio M-A (veja citação abaixo),
por “contaminação não-hierárquica”, neste caso implicando-se outras possibilidades,
holísticas e talvez fantásticas, como a de influências mais antigas comuns a
ambos os poetas, a de influências que se “propaga[m] no ar mais do que nos
olhos” (citando M-A outra vez)[1]
sem respeitar direções temporais, ou a possibilidade, mais remota a meu ver, de
total coincidência em vez de influência – todas essas hipóteses nem sempre
exclusivas e cuja validade, em todo o caso, restará nos ombros de cada leitor.
Em correspondência comigo, respondendo à leitura de um primeiríssimo
rascunho deste ensaio, o próprio poeta carioca embasa, ainda que com ressalvas,
meu argumento central:
Não vou falar muito para não
"influenciá-lo" (rs), mas, no texto, vc falou coisas muito acertadas
e outras que nem eu tinha percebido. Por exemplo: Signantia: quasi coelum foi um livro fundamental e muito
contaminador de minha poética. Entretanto, não conhecia o poema do Haroldo
sobre o cavaleiro em sua armadura de carvão-de-pedra.
Eu mesmo fiquei surpreso com a semelhança... Nesse sentido, acredito mais numa
contaminação não-hierárquica que se propaga no ar mais que nos olhos, do que
propriamente num sistema "métrico" de influências...
P.S.: De qualquer maneira,
Haroldo é sim um dos meus grandes mestres, junto com Cabral, Aigui, Cummings,
Celan, Halfi e outros...
Lista à qual eu tomaria a liberdade de acrescentar os nomes de Ezra
Pound – provavelmente a maior influência de M-A – e, talvez tão influente
quanto Haroldo, o nome de Mathieu Bénézet, cujo magnífico fragmento 5 dedos azulados foi traduzido por M-A e
pode ser encontrado na edição eletrônica da revista Confraria do vento (http://www.confrariadovento.com/revista/numero9/phantascopia.htm). Nesse fragmento, apenas a título de
instigação, noto como encontramos de pronto a imagem da casa (casa-bloco, no fragmento), tão cara a
M-A, assim como, em outros trechos, uma semelhança de dicção e idiossincrasia
de estilo que lembram sobremaneira os textos de M-A[2].
Em seu texto crítico a respeito de parte da obra de Haroldo de Campos,
no trecho em que trata de Signantia: quasi
coelum (Um lance de nadas na épica de
Haroldo, http://www.schulers.com/donaldo/haroldo), Donaldo Schüler, embora não pretenda
interpretar o livro, já o interpreta ao classificá-lo como poema cosmogônico,
com o que concordo, o mesmo podendo ser dito de Intradoxos, magnum opus
de de M-A – de fato, numa comparação de ambos os livros, fica clara tal
semelhança tanto em estrutura quanto em temas. Intradoxos, contudo, possui ainda outra faceta que o projeta para
além de Signantia: nominalmente, seu
plano de abranger se não a História, todo o mundo cultural; de se fazer
poema-da-tribo, poema-total. A fragmentação e a construção ideogrâmica
poundianos, assim como a constelação mallarmeana, mais do que o verso linear
tradicional, são a base aqui. Novos mundos, mais do que novas visões do nosso
mundo, na forma de novas imagens ou símbolos que, seguindo modelo de Gilbert
Durand[3],
constelam-se em sistemas de imagens e até mesmo esboços de narrativas ou, quando
não, esboços de poéticas, isto é, neste contexto, novos mitos, são gerados; todo
esse processo, observe-se, mais palpável e objetal em Intradoxos[4],
mais abstrato e metapoético em Signantia[5].
Proponho a soma de Cantos, Signantia Quasi Coelum, Auto do Possesso (primeiro livro de
Haroldo) e 5 dedos azulados, de
Mathieu Bénézet, como ur-texto de Intradoxos;
mais ainda: proponho a soma de Cantos,
5 dedos azulados, Auto do Possesso, Signantia e sua supracitada crítica por
Donaldo Schüler como ur-texto de Intradoxos
(vale notar que o texto crítico de Donaldo parece ter tido, no mínimo,
tanta influência nas imagens de M-A quanto o próprio Signantia; se este não for o caso, vale então a crítica de Donaldo
como interpretação de Intradoxos, via
interpretação de Signantia); proponho,
desde já, a superiodidade de Intradoxos
sobre esse hipotético texto híbrido original, inclusive sobre os Cantos, talvez o mais famoso e notável “fracasso”[6]
poético do século XX. Como veremos, Intradoxos
seria o resultado da superação das influências de seu autor, ou, como
preferiria Harold Bloom, a própria materialização, formalização ou, ainda
melhor, a sublimação da angústia
causada por essas influências sobre nosso autor, ainda que o próprio M-A não
tenha consciência de tais conflitos.
Para ilustrar essas hipóteses, concentrar-me-ei, neste ensaio, em paralelos
entre a obra de Haroldo de Campos, a crítica de Donaldo Schüler, o fragmento de
Mathieu Bénézet e a obra de M-A, ficando para outra oportunidade comparações
com a obra poundiana, em todo caso mais explícitas e evidentes. Emergerá, assim
e aos poucos, um inventário incompleto das imagens compartilhadas por essas obras.
Concluirei argumentando, dentro da teoria da influência poética de Harold
Bloom, a favor de uma vitória relativa do efebo, M-A, na disputa pela
supremacia de um modo poético particular (sem esquecer que Haroldo de Campos,
mais do que M-A, trabalhou em múltiplos modos poéticos), que seria uma espécie
de orfismo animista mais ou menos hermético, informado por toda a tradição
vanguardista tanto em seu aspecto conteudístico (por vezes irracional – cubista,
surrealista) quanto formal (indo do verso livre à fragmentação cummingsiana, da
constelação mallameana à espacialização concretista) e estilístico,
eminentemente urbano e técnico (também eminentemente metapoético, especialmente
no caso de Haroldo), dado mais ao objeto que ao sujeito, este presente apenas
em lampejos (fragmentos) ou peças isoladas (como o poema envoi de Haroldo, possível fonte direta do palpavelmente superior
poema sem título de M-A, que aparece na 3ª edição da Revista 7 Faces [http://issuu.com/setefaces/docs/edi__o_3_da_7faces/37] e inicia com o verso de todo jardim, paralelo que desenvolverei adiante).
a borboleta reflete-se em asas
Começarei por onde construí e concluí o ensaio seminal: a imagem da
borboleta em voo. Como eu já havia observado, o verso de M-A, a borboleta reflete-se em asas (do poema
Mecanismos, em Intradoxos), é uma verdadeira pedra-de-toque, uma das mais
perfeitas imagens poéticas de que me lembro (baseado em preceito de Ezra Pound,
para quem um dos melhores critérios de avaliação de um verso é sua força de
fixação na memória), potentíssima em sua síntese de imagem, som e ideia (fano,
melo e logopeia poundianas), em sua habilidade imagista de evocar uma imagem
clara; não os sons, mas, contraditória e espantosamente, o silêncio do voo de borboleta; a ideia fantástica-órfica de um ser que,
na realização de seu ato mais característico, define-se ao extremo até se
tornar um e o mesmo com esse ato (“a imagem seria um pensar por dentro da coisa
até chegar ao seu não e tornar-se, em sua negatividade, a coisa, ainda mesma
e outra”, disse M-A em entrevista a Renato Rezende).
Esse verso, por sua construção (as sílabas em “e” que compõe o verbo reflete-se – re-fle-te-se – se
espelhando em movimento de sístole e diástole até se lançarem em voo via o
pronome, sugestivamente dito reflexivo
“se” [a esse respeito, o poema Jaguar,
de Intradoxos, com seu verso refrão eu sou o jaguar, e ainda, desse livro, o
verso jaguar-se em Mecanismos; vindo a calhar também a
definição quase órfica de verbo reflexivo como “aquele que expressa a igualdade
entre o sujeito e o objeto da ação”, o que, somando-se ao resto, creio,
autoriza supor o uso proposital dessa forma, a ênclise, por M-A], somadas à
preposição “em” que habilmente as liga ao “objeto indireto” “asas”, cuja imagem
– “as” + “as”, as duas letras “s” cuja forma lembra talvez uma [duas] asa[s]),
eu acrescentaria que esse verso, por sua construção, provoca toda uma ideia ou
impressão de movimento, de voo, tão mais cinética – eu diria hipercinética,
beirando um espaço e/ou movimentos fantásticos, surreais – do que seria uma
foto ou mesmo uma cena filmada, todos os efeitos anteriores (fano, melo e
logopáicos) concorrendo para instigar, gerar uma imagem mental
plurisignificativa, de fato um vórtice poundiano do mais alto grau. Algo
parecido, note-se de passagem, ocorre na leitura de um poema sem título de Signantia, o qual eu chamarei de Libélula e cujos primeiros versos se
organizam assim, na tradução para o inglês, de Craig D. Dworkin:
dragonflies
in the sky of dragonflies
the flight of them
over under
dragonflies
E uma vez que não tenho acesso ao texto original na íntegra, minha
tradução, na qual opto por libélua no lugar de borboleta-dragão:
libélulas
no céu de libélulas
o voo delas
sob(re)
libélulas
Note-se, especialmente na tradução, como o vai e vem da rima de
“libélulas” e “delas” gera, neste poema, no nível da arquitetura (disposição
espacial) mais do que no nível da tecitura (semântica e sintaxe), efeito de
voo, ainda que não exatamente de bater de asas.
Em contrapartida, em Haroldo, a borboleta aparece antes como caso particular
da imagem do pássaro em voo ou do voo em si, como ilustram os versos:
Um pássaro conhece-se em seu
voo,
Espelho de si mesmo, órbita
do poema Teoria e prática do poema,
provável verso-pai tanto da borboleta e seu voo ciclamêm de 1984: ano 1, era de Orwell quanto – muito
mais explicita e poderosamente – da borboleta que se reflete em asas do poema Mecanismos
de M-A[7].
No
princípio...
no
princípio foram os dentes
que
separavam dentro e fora
no
princípio foi o giro
e
sua sinfonia de esferas
escreve M-A no poema Os dentes, segundo de Intradoxos.
Em Signantia,
como aponta Donaldo, no princípio impera
a glande, o poder criador do universo,
glande que aparece no primeiro poema de Signantia
e também na cosmogonia de M-A, implícita no terceiro poema de Intradoxos: depois vieram os deuses / com seus caralhos de jade; e decerto será
dispensável observar aqui o quanto a imagem “deuses” (e os deuses, os deuses com suas barbas de argila, em Fábula primeira) e a imagem “jade” (fêmea de jade, no poema O faquir de Auto do possesso) aparecem na obra de Haroldo desde seu primeiro
livro, Auto do Possesso.
Outra imagem muito forte de M-A, no poema Gesta, o primeiro verso o cavaleiro negro com seus pulmões negros,
teria sua contrapartida no igualmente primeiro verso de A cidade (in Xadrez de
estrelas) de Haroldo de Campos: O
Cavaleiro em sua armadura de carvão-de-pedra, onde ainda teríamos o
paralelo haroldiano do verso—imagem márcio-andriano encuanto o próprio carvão não aceita aderências de luz, do poema O reflexo, em Intradoxos. (A imagem do carvão reaparece em une négresse de Serigrafias:
e no carvão / carbúnculos (mina de) e no Haroldo de Aproximações ao Topázio, de Signatia
Quasi Coellum: Signância Quase Céu – aqui
se mascam / carvões ardentes –, poema no qual temos também o girassol pensa: / leopázios!, ecoado em
Os ornamentos, de Intradoxos, onde encontramos um hipopótamo sonhando entre os girassóis.)
No mesmo poema de Haroldo, temos Onde o
homem sem nome é apenas um homem à sombra do Teu Nome; noutro poema, Sinfonia dos Salmos, temos E um moço que não sei invocará Teu nome
e O moço encontrado sabia o Teu nome /
Senhor, os Teus nomes que afirmam e são, enquanto em M-A temos, no poema A profecia: na grafia do relâmpago surgirá um nome / parte de outro nome e no
poema O nome: ela agora tem um nome / e o
é, em confronto com o plural e são
do poema de Haroldo, confronto que apenas aponto aqui.
No outro extremo do espectro dualista-mitológico
comogonia v. escatologia, teríamos o poema O
funeral, de Intradoxos, o qual se
deixa ver claramente (ou muito coincidentemente) uma releitura (misreading, "leitura
distorcida" ou "desleitura", como prefiro, no jargão de Harold
Bloom) do poema Loa do Grande Rei,
que abre Auto do Possesso, no qual
encontramos As portas do domínio,
enquanto em O funeral temos abertas estão as duplas portas do horizonte,
verso que inicia e termina o poema, do mesmo modo como Para teu gáudio, ó Rei, inicia e termina o poema de Haroldo. Em
ambos os poemas, observe-se, a imagem principal é o rei, que encontra ecos—rimas
em outras palavras, no caso do poema de Haroldo –, em erguerei, obreiro, disporei e grei, artifício que ilustra ou reflete
na forma a ideia de que o soberano é representante—microcosmo de seu reino e
povo.
envoi
Flores, olhos e frutas recorrem na imagética márcio-adriana, assim como
na haroldiana. Reproduzo abaixo, para comparação, o poema envoi, de Haroldo, e o poema de
todo jardim, de M-A. Ainda que um possa não derivar do outro diretamente,
há pontos de contato entre os dois e talvez derivação indireta, com o que quero
dizer origens comuns, estejam estas em pais poéticos compartilhados,
experiências reais semelhantes, simpatia ou afinidade por imagens próximas,
sensibilidades irmanadas; tão importante quanto, há, a meu ver, clara
superioridade estética no poema de M-A, com o que o leitor poderá concordar ou
discordar ao comparar os dois poemas ele mesmo:
envoi
as
memoráveis
coisas
carmen
nos
teus olhos
poros
de
uma
luz viol
índigo
an
te
vol
ucres
veneris
vol ve
para
mim
ióplok agna ó
coroada
de
violetas
de todo jardim
de todo jardim escolho
a córnea rajada de sua flor
ou a flor rajada entre as pernas
no ventrentre os olhos
é inteiramente sua presença
recolhida
no abstrato de qualquer
pensamento
nem luzes com bolor
nem o seio repousado na mão
a florolho que vê enquanto é vista
adorna o que lhe adorna
enquanto-flauta
trinca-ferro-ótico
as sutilezas dos
lilazes-quese-lírios
neste cárcere do ver
íris-rosácea na estremadura idade da
cara
como se calculado da extrema idade da
terra
a memória do improviso das
folhas
o ferruginoso de toda planta
na planta de toda fisionomia
Outro poema de Haroldo do qual convém reproduzir alguns versos,
novamente a titulo de comparação, é o poemandala,
de Lacunae:
o
olho central
rosácea
rosaberta
sangraberta
a rosácea
o olho
o centro
E ainda os seguintes versos de Austin
poems:
laranjas
contra a
lâmpada
que dialogam com versos do poema de M-A DEBUG IS ON THE TABLE (natureza morta com tangerina), como este:
uma tangerina é um olho
cítrico
ainda este, de Cazas
(Dulcinéia Catadora, 2011):
o sono do deus dentro da
casca de uma laranja
este, de Monsanto:
nós ao pé da fonte comendo
tangerinas frescas
e outro de as antenas (Intradoxos):
lâmpada de vapor de mercúrio
Para encerrar, um verso de poema
com cinco versos sobre barata, de Intradoxos,
verso que conjuga duas das imagens que tratei aqui:
ferindo lâmpadas [frutas]
elétricas
flexões e sílex
A palavra sílex, que por si mesma conota condições primitivas – armas
pré-históricas eram fabricadas especialmente dessa pedra dura e cortante –,
aparece duas vezes em Intradoxos, uma
no poema Metáforas organizadas em sons
distintos e um final de duas imagens:
ao sílex de teu dente
outra em Mecanismos:
codex-sílex: silício-sílice
a
Na obra de Haroldo de Campos essa palavra ocorre pelo menos uma vez, na
poderosa evocação do poeta como herói mitológico do poema A cidade, que, reforce-se, supracitamos a propósito do verso O Cavaleiro em sua armadura de
carvão-de-pedra. Aqui encontramos sílex
no verso:
Com a mão livre ainda fere o
Sílex do Sonho
De dois outros poemas – marinha
do Haroldo de Serigrafias, entrós do M-A de Intradoxos –, proponho comparar o primeiro verso de entrós:
rotas flexas
com os seguintes, de marinha:
um
regato
lacre
flexo
comparação que me sugere, também a julgar pelo estilo de entrós, que no caso deste estamos diante
de um poema escrito no automático, o uso inconsciente de palavras e estilo há
muito lidos, gravados porque causadores de forte impressão, finalmente
esquecidos apenas para aflorarem de forma espontânea sem a informação de suas
origens.
Conclusão
Cabe reforçar que os paralelos acima são apenas exemplos cuja intenção é
antes indicar influências possíveis ou prováveis, ficando a cargo do leitor –
de preferência armado da leitura aprofundada das obras em exame – concordar ou
não com tais propostas, especialmente no que diz respeito à vitória estética de
Márcio-André, a qual sustento ao comparar sua obra com a de Haroldo de Campos,
vitória ainda mais controversa quando vista sob a ótica altamente
idiossincrática, que também sustento, da proporção revisionária de Harold
Bloom, a denominada apophrades, brevemente descrita no
começo deste ensaio[8].
De resto é preciso notar que se trata de vitória relativa, a do efebo
sobre o mestre, pois, seguindo a teoria de Bloom, na qual se observa que toda
desleitura (todo poema, toda obra, pois todo poema é desleitura de um texto anterior)
é também um cerceamento, uma redução do escopo do objeto distorcido, observo,
na inssistência da poética márcio-andriana em manter-se integralmente focada no
programa animista-órfico, ao mesmo tempo que a origem de sua força (não há
dispersão de energia, esta integralmente concentrada numa poética específica),
a origem de seu ser-sempre-o-mesmo, de seu olhar limitado ainda que
infinitamente permutável ou infinitamente gerador de novas experiências, de seu
fechamento a outros modos poéticos; ao contrário da obra harodiana, múltipla ao
extremo, obra para a qual o modo órfico-animista não passa de um episódio entre
outros, tanto ou mais memoráveis (que o diga o próprio Haroldo, queixoso do rótulo
de “concretista”).
Haroldo, assim, teria dispersado suas energias criativas, que, se
focadas ao modo obsessivo e exclusivo de um William Blake, de um Rilke,
talvez lhe tivessem rendido uma obra poética mais coesa e poderosa, porém
mais restrita, a exemplo do próprio irmão Augusto de Campos, cuja poética
permaneceu mais centrada em preceitos concretos (leia-se: verbivocovisuais;
leia-se: princialmente, plásticos), mais preocupada com o preceito de
Maiakóvski segundo o qual “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”[9],
e nisso mais forte e identificável, e de Márcio-André, que, na qualidade de poeta
– poeta órfico –, encontra neste nosso início de século pouquíssimos paralelos
em sua força e originalidade, assim como Haroldo na qualidade de erudito e
homem de letras em todo o século XX[10].
por Fábio Gullo
(Publicado originalmente no Portal Musa Rara.)
[1] “Um texto do repertório
clássico, por sua vez, não deixa de ter influência do texto de um jovem
escritor.“ Márcio-André, in Didática
pelos quanta, 2009, http://intradoxos.blogspot.com.br/2011/04/didatica-pelos-quanta.html
enormes rosas de
interior oculto
mesa humana
eu vos espero
unido pela terra e pelo céu
2 braços são o amparo
para a oferenda os ventiladores murmuram
Oceano Oceano
silhuetas açafrão
na imprecisão das coisas
uma meditação
perfume secreto e logo invisível
a todo instante testemunha de 1 passagem
do homem
mesa humana
eu vos espero
unido pela terra e pelo céu
2 braços são o amparo
para a oferenda os ventiladores murmuram
Oceano Oceano
silhuetas açafrão
na imprecisão das coisas
uma meditação
perfume secreto e logo invisível
a todo instante testemunha de 1 passagem
do homem
E, aproveitando o ensejo, este trecho de Poema do oitavo dia depois de Pentecostes
(Haroldo de Campos, in Auto do possesso):
Pensando nesse azul
cortado cerce
Dos templos, cujo
côncavo esfuzia
Os pássaros e as
flores vespertinas;
E logo nesses pálidos
mancebos
Que à dextra de Tanit
se concediam
À lua recém-vinda e
mais propícia,
Converto-me às
virtudes do heliotropo,
E sou, malgrado meu,
feito invisível.
[4] “Paraíso são as coisas.”
Escreve Donaldo Schüler no ensaio citado. Ainda: “Frases no papel [verso
de Signantia] têm a origem das águas,
das plantas, das pedras, do ar, do sol.”
onde um
céu de chumbo
sartúneo
respira
violetas de
genciana
um texto
este
e sua i-
leitura
Chamo a atenção para
a natureza metalinguística da segunda estrofe e para o modo como a
primeira estrofe soa a Márcio-André contido.
[6] “Não me esforçarei a expor
ou a explicar, desculpar, as fraquezas, as aberrações do pensamento de Pound,
pois se é certo que sua tentativa poética se salda por um malogro, que ela está
viciada desde seu ponto de partida pela insuficiência de alguns de seus
aspectos teóricos, ele se mostrou capaz de um novo tipo de apreensão poética da
história, ele conseguiu forjar, para exprimí-la, ferramentas que são por vezes
de maravilhosa precisão.” Escreve Michel Butor em seu ensaio A tentativa poética de Ezra Pound, in Repertório, Ed. Perspectiva, 1974; ao
que eu acrescentaria: ferramentas essas reutilizadas por M-A, com o acréscimo
de outras, à maravilha, em especial em Intradoxos
e, mais importante, ali e, até onde me é dado saber, apenas ali, sem o prejuízo
de aspectos teóricos insuficientes, o que pode ser verificado comparando-se a
fortuna crítica em torno de Intradoxos
mais as próprias entrevistas e trabalhos teóricos do autor com sua obra
realizada.
[7] Também dragões, como deuses,
abundam no universo órfico de M-A, e poderiam muito bem ter relação com a
pletora de deuses que aparecem em Auto do
possesso e com os dragões selenitas desta estrofe de poema de Signantia:
a lua
entre dois
dragões
(Em Intradoxos,
temos a segunda parte do livro, intitulada O
semeador de dragões; sleepdragon,
do poema Terralis; dragão lilás, de Gesta; o flanco das dragas
confere dragões, de Trova.)
[8] Na verdade, acredito que
este ponto de minha visão crítica só poderá ser corretamente e melhor apreciado
após estudo atento da teoria poética de Harold Bloom, exposta sobretudo em seu
livro já citado A Angústia da Influência.
[9] Haroldo, é certo, jamais deixou de se preocupar com a
forma; mas deixou, isto sim, de se preocupar em renová-la constantemente,
sempre lançando, nesse sentido, olhares mais para a tradição do que para a
invenção, entendida invenção no sentido que Pound dava ao tipo de poeta que
denominava de “inventor”, isto é, “os que descobrem um novo processo ou cuja obra
nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo”, feito realizado com
frequência por Augusto.
[10] É de
conhecimento geral que tanto Haroldo de Campos quanto Márcio-André se
dedicaram a outros afazeres artísticos e literários; por exemplo, a produção de
ensaios e traduções. Gostaria de reforçar que o argumento que desenvolvo
considera exclusivamente a produção poética-textual desses autores, ao insistir
em quanto o foco numa única poética levou um ou outro a produzir obra mais
coesa e intensa.