Por Sergio Tavares
1. ‘Dias de febre na cabeça’, Nilvaldo Tenório (Carbureto,
103 págs.)
Há um sobrepeso de satisfação ao fim da leitura de ‘Dias de
febre na cabeça’, de Nilvaldo Tenório. Primeiro, pela potência do livro que
modula passagens por dias; segundo, por trazer a lume a presença de uma
literatura vigorosa e germinal fora desse eixo cego militado por gente que
entende o mercado como um tabuleiro de resta um.
São 14 contos povoados por personagens que partilham uma
existência agressiva, tornando-se vítimas (ou reféns) de perturbações mentais
ou físicas, anti-sonhadores, vozes bloqueadas por um nó na garganta que vai asfixiando
até sobrar um fino de consciência onde transcorrem as histórias. Tenório tem
uma prosa seca e profundamente realista, compondo com habilidade um cenário infiltrado
por nuances regionalistas sem que isso desnature as narrativas em seu caráter
universal.
Bons exemplos são os contos ‘Chão movediço’, um rito de
desamparo estruturado unicamente em movimentos e gestos tortuosos, e ‘Silvio’,
algo excepcional que transita pelas veredas ficcionais de Antônio Carlos Viana,
talvez o maior contista brasileiro em atividade. Vale o agradecimento público à
estimada editora Karla Melo que enxergou, antes de mim, a grandiosidade dessa
obra e me ofereceu a leitura.
2. ‘A mangueira da nossa infância’, de Alexandre Nobre
(Ficções, 110 págs.)
A imagem bucólica da capa, com apelo pueril, dá a medida do
jogo de falsas impressões que é esta bela antologia. Partindo de situações
enroupadas pela normalidade, os 12 contos, dos quais cinco foram premiados em
diferentes concursos, arrastam o leitor para um torvelinho de perdas e
angústias, uma espécie de túnel sem saída onde o obrumbamento da narrativa
torna o cenário da mesma forma irreconhecível. Tudo se degenera nessa estreia maiúscula
do paulista Alexandre Nobre.
Em ‘A mangueira da nossa infância’, que abre e empresta nome
ao livro, a intercalação de blocos de diálogos mistura passado e presente,
despertando revelações que dão margem a revelações maiores, distúrbios cuja
tragicidade se sobrepõe à redenção. Na mesma seara estão ‘Aila’ e ‘Paulo
Jorge’, tentativas inúteis de se remir de um passado doloroso. ‘Acampamento’ e
‘Na casa da minha avó’ (que pode ser lido na Flaubert #3) são descobertas do
mal cotidiano, e ainda cabe uma homenagem abrasileirada à Poe, em ‘A praia’.
Com uma prosa fina, que recorre por vez ao lirismo, Nobre
não busca uma coesão de estilos, mas um espírito criativo que dá liga às suas
narrativas.
3. ‘As coisas de João Flores’, Marco Aurélio Cremasco
(Patuá, 132 págs.)
O universo do poeta (o artista na posição de sujeito-comum)
é conformado por elementos de presença corriqueira que parecem lhe oferecer um
lado inobservado por aqueles cuja vida não detém de filtros líricos. É um tipo
de diálogo ultrassensível que permite a quem escreve traduzi-lo unicamente em
escalas de versos. Assim, o poeta revela ao mundo o que dizem as coisas incapazes
de falar. As histórias narradas pelas estrelas, pelas chuvas, pelos solitários barcos
à deriva, pela lua em gestação que enfastia os mares.
Marco Aurélio Cremasco reflete esse radioso poder de
interpretação n‘As coisas de João Flores’. Simples como sugere o nome, a vida
se desmonta em pequenos versos para um personagem-observador que, da sutileza à
quietude, desvenda ocorrências elementares, “o silêncio quebrado por um poema
pedindo passagem”. Cremasco, laureado em prosa com o Prêmio Sesc de Literatura,
demonstra que seu talento perpassa gêneros, transformando o léxico num encontro
admirável entre matéria e verbo.
Diante de uma soma de poemas primorosos, vale destaque para
‘Cena de bolero et pirouette’, uma declaração de amor em prosa lírica que
parece ter se desprendido do ‘Livro do desassossego’, de Fernando Pessoa. A
Patuá, que merece elogios pelo projeto gráfico, tem em mãos um grande candidato
a futuros prêmios.