Por Roberto Corrêa dos Santos
Auréola, de Renato Rezende consiste em livro de ideias, e ideias
são a parte pública do pensamento; livro de ideias compostas com fervor, fervor
de poeta, entregues sob
modos de ‘romance’ a quem, sendo igualmente poeta, o consiga ler, atravessá-lo;
monta Renato este maravilhoso livro de ideias disposto a gerar o grande espanto
que ocorre quando se encontra alguém frente a massas de linguagens que não
cessam de criar e desfazer rumos e proposições e pesquisas atinentes às curvas
violentas da vida humana quando cravada e vista no cerne da dor.
Ideias são matérias do mundo, são aquilo
que vira coisa justamente no instante em que se expõe: Auréola abriga esse fôlego raro nas escritas
de ‘romances’ entre nós, o de multiplicar ao infinito ideias, ideias-imagens –
ato que tem parecido impossível especialmente agora em que tantos têm casos a
narrar; Auréola mantém-se firme no não-caso e
firme no sim forte aos usos verbais de intensidades reflexivas e
contemporâneas; tal fôlego torna coisa-do-mundo a dança do pensar quando em
letra; e essa coisa-do-mundo-vinda em Auréola
carrega consigo a
coreografia quase incapturável da mente agindo no cérebro, ativando bem no corpo
do livro seus dispositivos sensoriais: trata-se da captura das sensações ali,
na mente, na mente-corpórea de Auréola.
A abundância, o jorro, de imagem-ideia
sobre imagem-ideia-imagem, esse desabar, como se diz de chuvas e tempestades,
localiza-se no volume ilusoriamente pequeno, já que expansivo, amplamente
expansivo.
Difícil (ou seja, o que não foi feito
ainda) atravessar; fácil (ou seja, o que já se fez), porém, somente se deixada
a mente-leitora em contacto elétrico e direto com a mente-escrita: descreve-se
a mente de homens e mulheres quando em estado-vida
tendente ao parar, ao cair, ao não-mais-poder; como jamais, assinala-se o
delicado abrir do processar-se dos vigores depressivos, postos como injetores de possibilidades de arte:
depressão sem depressão, e fora dos romantismos excelsos da melancolia e bem no
terreno das químicas sombrias da carne humana.
Dispõe Auréola,
um a um, os ligamentos de vetores afetivos terríveis, o susto do sofrer e os
humores daí advindos. Um homem escreve e monta um homem que sofre (o atingido
por pathos): um homem ‘passivo’ e furioso não fala; ele, o
homem-bem-próximo-da-não-fala deixa-se livre a uma outra espécie de vocalidade
(nobre, concisa, densa) aguda e monástica; se ri o homem-esse, não se avista o
riso de imediato, pois o eco do riso subterrâneo das folhas sai como se de um
poço de petróleo – plástico, sombrio, brilhante.
E há a-mais a vibração da loucura: o ele da
cena escriptural sabe muito a propósito – e nega e afirma – do que significa estar não na arena
dos missionários, mas na dos profetas: arena em que se deve fundar-se a
‘si’ aos modos com que se
funda uma território, e isto é dito por todas partes de Auréola: lança-se o ele antes aos altos a seta, até que ela caia e assim, o ele diz, e assim nasce a cidade. E tudo dado
como máscara, camuflagem: “e dentro, nada”.
“Nascer é morrer no Outro”, declara o ele;
canta-se o terminar do
mundo, o mundo das peras partidas ao meio, o mundo dos mamutes e dos dragões, e
sangue, pus, urina: excrementos; canta-se o adiar (e o aguardar de) a morte (“o fim sempre sob esperas”).
Conforme o ele, no caroço desse lugar sagrado e insano e a existir somente na
rede da linguagem (o que quer que se compreenda por), cabe a curta frase, a da
irritação pontual: “Então tá”.
Em Auréola,
os sinais do cíclico ‘rebaixamento’ emocional das almas, ou: daquela alma que
se põe em verbos e figuras e que se (des)escrevem mesmo estando “sob o peso de milhões de toneladas
de água”, mesmo vivendo “os movimentos do dia a dia intoleráveis”.
A vida em absurdidades, a vida que impõe o
abandono das realizações relativas ao perfeito, ao grande, ao gozo. E esta vida
desenha uma auto-clínica com suas exigências do escrever e escrever e escrever,
escrever bem reconhecendo do amor os efeitos. Com o amor, propõe, rasgar os
véus das culpas, desfazer-se de pai e irmão, ousar face a face com o espelho ir
tornando-se o ele uma menina a sucumbir o pau entre as pernas, oh por que
não?Por que não permitir florescer no corpo de ele um delicado ela? Um elela na maciez dos travestismos; por seu
existencial intermédio “comer as mulheres”, comprometendo-as, contagiando-a.
Estar a exercer e a avocar a besta, a grande besta.
Se relato há, relato do trajeto da letridade
diante do mais que terrível, o ter perdido: algo, alguém, aquilo. Daí, de súbito, brota-se as linhas,
um nome-fêmeo, Aurélia: a escura, o
diamante, o outro lado, o avesso. No nome, os abismos: o local do sem luz e do
iluminado fantasmal, e ‘conselhos’ alguns: não sabendo “o que fazer: durma”;
ponha a agir a língua até, “até alcançar o ponto”; mais: “zelar”, “mexer”. E:
“quem tiver sonhado agora, que acorde”. Que
acorde.