19 de junho de 2014

Em algum solo da dor [A propósito de Auréola, de Renato Rezende]

Por Roberto Corrêa dos Santos




Auréola, de Renato Rezende consiste em livro de ideias, e ideias são a parte pública do pensamento; livro de ideias compostas com fervor, fervor de poeta,  entregues sob modos de ‘romance’ a quem, sendo igualmente poeta, o consiga ler, atravessá-lo; monta Renato este maravilhoso livro de ideias disposto a gerar o grande espanto que ocorre quando se encontra alguém frente a massas de linguagens que não cessam de criar e desfazer rumos e proposições e pesquisas atinentes às curvas violentas da vida humana quando cravada e vista no cerne da dor.
Ideias são matérias do mundo, são aquilo que vira coisa justamente no instante em que se expõe: Auréola abriga esse fôlego raro nas escritas de ‘romances’ entre nós, o de multiplicar ao infinito ideias, ideias-imagens – ato que tem parecido impossível especialmente agora  em que tantos têm casos a narrar; Auréola  mantém-se firme no não-caso e firme no sim forte aos usos verbais de intensidades reflexivas e contemporâneas; tal fôlego torna coisa-do-mundo a dança do pensar quando em letra; e essa coisa-do-mundo-vinda em Auréola carrega consigo  a coreografia quase incapturável da mente agindo no cérebro, ativando bem no corpo do livro seus dispositivos sensoriais: trata-se da captura das sensações ali, na mente, na mente-corpórea de Auréola.
A abundância, o jorro, de imagem-ideia sobre imagem-ideia-imagem, esse desabar, como se diz de chuvas e tempestades, localiza-se no volume ilusoriamente pequeno, já que expansivo, amplamente expansivo.
Difícil (ou seja, o que não foi feito ainda) atravessar; fácil (ou seja, o que já se fez), porém, somente se deixada a mente-leitora em contacto elétrico e direto com a mente-escrita: descreve-se a mente de homens e mulheres quando em  estado-vida tendente ao parar, ao cair, ao não-mais-poder;  como jamais, assinala-se o delicado abrir do processar-se dos vigores depressivos, postos como  injetores de possibilidades de arte: depressão sem depressão, e fora dos romantismos excelsos da melancolia e bem no terreno das químicas sombrias da carne humana.
Dispõe Auréola, um a um, os ligamentos de vetores afetivos terríveis, o susto do sofrer e os humores daí advindos. Um homem escreve e monta um homem que sofre (o atingido por pathos): um homem ‘passivo’ e furioso não fala; ele, o homem-bem-próximo-da-não-fala deixa-se livre a uma outra espécie de vocalidade (nobre, concisa, densa) aguda e monástica; se ri o homem-esse, não se avista o riso de imediato, pois o eco do riso subterrâneo das folhas sai como se de um poço de petróleo – plástico, sombrio, brilhante.
E há a-mais a vibração da loucura: o ele da cena escriptural sabe  muito a propósito – e nega e afirma –  do que significa estar não na arena dos missionários, mas na dos profetas: arena em que se deve fundar-se a ‘si’  aos modos com que se funda uma território, e isto é dito por todas partes de Auréola: lança-se o ele antes aos altos a seta, até que ela caia e assim, o ele diz, e assim nasce a cidade. E tudo dado como máscara, camuflagem: “e dentro, nada”.
“Nascer é morrer no Outro”, declara o ele; canta-se  o terminar do mundo, o mundo das peras partidas ao meio, o mundo dos mamutes e dos dragões, e sangue, pus, urina: excrementos; canta-se o adiar (e o aguardar de)  a morte (“o fim sempre sob esperas”). Conforme o ele, no caroço desse lugar sagrado e insano e a existir somente na rede da linguagem (o que quer que se compreenda por), cabe a curta frase, a da irritação pontual: “Então tá”.
Em Auréola, os sinais do cíclico ‘rebaixamento’ emocional das almas, ou: daquela alma que se põe em verbos e figuras e que se (des)escrevem mesmo estando “sob o peso de milhões de toneladas de água”, mesmo vivendo “os movimentos do dia a dia intoleráveis”.
A vida em absurdidades, a vida que impõe o abandono das realizações relativas ao perfeito, ao grande, ao gozo. E esta vida desenha uma auto-clínica com suas exigências do escrever e escrever e escrever, escrever bem reconhecendo do amor os efeitos. Com o amor, propõe, rasgar os véus das culpas, desfazer-se de pai e irmão, ousar face a face com o espelho ir tornando-se o ele uma menina a sucumbir o pau entre as pernas, oh por que não?Por que não permitir florescer no corpo de ele um delicado ela? Um elela na maciez dos travestismos; por seu existencial intermédio “comer as mulheres”, comprometendo-as, contagiando-a. Estar a exercer e a avocar a besta, a grande besta.
Se relato há, relato do trajeto da letridade diante do mais que terrível, o ter perdido: algo, alguém, aquilo. Daí,  de súbito, brota-se as linhas, um nome-fêmeo, Aurélia: a escura, o diamante, o outro lado, o avesso. No nome, os abismos: o local do sem luz e do iluminado fantasmal, e ‘conselhos’ alguns: não sabendo “o que fazer: durma”; ponha a agir a língua até, “até alcançar o ponto”; mais: “zelar”, “mexer”. E: “quem tiver sonhado agora, que acorde”.  Que acorde.