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ARMARINHO
I — Agulha e linha
Como tramar num livro tecido com as próprias mãos
um mundo sem palavras? Talvez das rugas da agulha
nas páginas de cada palma, das linhas antes
(das bocas) se abra: a trama. Entre um cigarro e outro
cigarro, lascando-se sob o sol do Rio
no alto do Morro, a agulha se move. E nos seus olhos
esta bacia
d’água basta para costurar o céu. A ousia
do céu
ou como você diz: “constelações provisórias”.
Mas não é esse só o nosso lugar.
II — Agulhas
Na maior parte do tempo estamos entupindo as veias de
coca
e chocolate, com os gordos que estrebucham
de tão gordos na Discovery Home&Health, ou os
Simpsons
entre as catástrofes do Islão com duas garrafas de
malbec de segunda
e um maço pela metade de Hollywood azul, a cinco e
cinquenta,
na maior parte do tempo não olhamos como
pendem das nossas mãos as agulhas — ignorando o que
tramam — nem como essas coisas todas
(de tão estúpidas?) às vezes parecem-nos um pouquinho
mais honestas.
III — Linhas
É assim que ele bate as asas, surge
e se apaga o nosso pássaro familiar.
Dentro de casa, resigna-se a coçar as picadas de
pernilongo
e a desentalar lentamente o algodão, a lycra acumulada
na junta das nádegas. Pensamos: é preciso aferventar o
próprio tédio,
mas não somos narradores ao redor do fogo
nem carregamos a pedra com as sobrancelhas em V.
O que se oferece são suicídios superficiais:
O futebolzinho de domingo, a voz sinistra do Faustão, é
Fan-tás-ti-co, depois um filme B de kung foo policial novaiorquino,
a Pipoca decapitando outra lagartixa na escada,
Sophia de Mello Breyner Andresen correndo stultifera
atrás de uma mosca que é ou poderia ser uma bolinha de
papel.
Aí, dentro desse dia se escondem algumas praias,
o barulho repetitivo
das ondas rasgando-se brancas... blancas... blanches nas
pedras.
Algumas conchas. Estão ali as linhas
enroladas no livro que a gente jogou (ou quis) pra
sempre no mar
da praia de Piratininga.
Bianca murmura: Basta que o sol não se segure por muito
tempo,
nem a noite. Marcelo ouve: Basta que um amigo cego
chegue dizendo bom dia
como se soubesse a luz (fugindo) do seu corpo.
Na paisagem de interior
um piazinho abre as palmas das mãos
durante o almoço e diz: “borboleta, asa”.
Outro encontra o pai pendurado no banheiro
ao voltar da escolinha Carlos Moritz.
Então na verdade nem se pode dizer que basta
mas é preciso que haja uma coisa qualquer
— não qualquer coisa: conchas
onde agarrar nosso resto de voz, um corpo — outro
corpo pra colar-se à noite: aconchear-se.
E uma orelha fria pra guardar o hálito difícil da
manhã.
AS
MULHERES ESTÃO CANSADAS DE SEREM DITAS
E-mail de F.:
vim pensando ‘as mulheres estão cansadas de serem
ditas’
abriria um novo poema
o poema do cansaço de dizer as mulheres
e ainda assim
a insistência em dizer as mulheres
‘as mulheres pensam como uma impensada roseira que
pensa rosas’
Então:
1. Tentar dizer mulheres como poderia tentar dizer
alhures / os números elevados a qualquer ausência: / uma cadeira
vazia, duas samambaias com sede / as mais de cem maritacas que voaram
caladas / ao encontro do Heyk, / que também ouvia a 4’33’’ na
Barão de Cotegipe nº 5 / esquina com a Praça VII.
2. Tentar dizer mulheres como poderia tentar dizer
talheres / as coisas que se acumulam sujas sobre a pia / a prata
inútil de lutar contra o que apodrece, / os nomes, / as fêmeas
sempre inauditas dentro das frases longas / o longo animal que as
palavras não tangem.
3. Dizê-las, sim, mas não a elas. / Se tentar dizer
mulher / a uma mulher não é dizer ou dizer não ou mal dizer / o
que esta mulher, se assim quisesse, não seria. / Pois digo(te):
mulher. Derramo(te): mulher / E não há nada senão um cheiro de
rosas / rançosas, que, atrasadas de morrer / descobrem-se mulheres.
FONTANELAS
Não se nasce entre lajotas
brancas, limpas demais.
Pois numa maternidade
o que há de tesouras
E nesse nosso primeiro pesadelo
estão apenas as mãos
de látex, indiferentes, acostumadas,
ávidas de bisturis e fórceps
Esterilizados. São tantas as ferramentas
para abrir o mundo
ao mundo,
aquele
Que pela pele (ainda desabituada)
ao peso do ar,
leva rosas dentro dos olhos.
Mas conversávamos sobre o pavor
De pressentir pulsar
junto ao peito (cheio de espinhos)
este pináculo de flor,
e será impossível domesticar
o cárdio — xucro como um potro — se ao tocar
com dedos líquidos
as fontanelas abertas
adivinharmos a guerra lá dentro,
Os escombros de tripas e tímpanos em chamas
e cordões e cadeias de artérias e unhas
e sonhos e mãos e limões e lágrimas.
Terror de confranger no peito este bicho
Antes de nós, ignorante ao sarampo que virá.
O gostoso terror que tramamos ao soltar
como se fosse um deus
(diríamos humanamente, este ser)
Por desejarmos saber
de que forma se frange o brando crâneo
(contra o chão tão duro)
e se esparramam as nuvens.
Pois estivemos sempre curiosos de olhar
como é que se viola a bruta
semente de um homem,
fruta de sangue, manga, língua, caroço.
Dizíamos: quem não teve
um bebê entre os braços
não pode tocar (por dentro)
o espanto, revirar
o vão, as vísceras
estranhas dessas éguas
molhadas, amnióticas,
selvagens — nossas mães
Infinitas, onde repousamos
com a luz acesa
e os olhos pesados,
apagando-nos, prematuros.
Marcelo Reis de Mello nasceu
em Curitiba, em 1984, e atualmente vive no Rio de Janeiro. É poeta,
crítico e um dos editores da Cozinha
Experimental. Em 2015 vai publicar o seu
segundo livro de poemas, “Elefantes dentro de um sussurro”.