[Ilustração de Luciano Feijão]
Dou uma geral no
lugar de beira de estrada. Alguma coisa a ver com pamonha, o nome. Tomo um café
horrível e como um bom pão de batata. Da janela dá pra ver o Opala lá fora, a
alça da bolsa vermelha de Lila no banco de trás. Apesar de todos os nãos
recebidos até agora na busca pelo Maverick, me vem a sensação de alívio, de
paz. É isso que tou buscando mesmo. Novembro já... Este tá sendo um ano de
merda, não vou sentir saudades. Recapitulando, eu sou um ser que pula de
desemprego em subemprego, moro de favor na loja do meu irmão, e não vejo nada
no horizonte que possa mudar minha vida. Eu podia ganhar na loteria, claro. Mas
precisaria jogar. Sempre esqueço. Tenho uma dificuldade enorme em implementar
projetos de vida. Não tem nem quatro horas que estamos na estrada e já estou
assim, contemplativo. Parece mais. Margem da BR 101 ES, norte. Quase três da
tarde. Ignoro cada metro antes do meu passo; e ignoro após meu passo, acontece.
Nasci em 1977. Tanto sete devia me dar mais certezas na vida. Deve ser culpa do
nove. Ou do sete mesmo, sei lá. Manjo nada de número. Olho em volta. As
famílias ainda não começaram suas viagens. O lugar rescende mais a
representantes comerciais e servidores públicos. Eu sei disso porque servidor
público tem cara de servidor público, representante comercial tem cara de
representante comercial. Em resumo, esse é meu método de investigação: a cara.
Não é segredo, portanto, que me fodi muito na vida até hoje. Sinto cheiro de
café novo. Levanto, vou até o balcão e peço outra xícara. Provo. Agora sim. O
lugar vai renovando seu público. Entra um produtor rural. Eu sei. Ele tem cara
de produtor rural. Traz dois filhos com cara de playboy de roça. Parece ser uma
boa pessoa, o produtor rural, não tem culpa dos filhos que tem. É paciente, de
uma paciência quase bovina, olha os salgados na vitrine e opta por comer
pamonha. Os rapazes atacam coxinhas. O produtor rural vai sentar na varanda
lateral, longe de minha visão. Os rapazes o seguem. A BR 101 é a estrada da
minha vida. Cresci ouvindo falar dela, cresci atravessando ela de cima a baixo,
primeiro com o véi Ramiro, depois com Bel ou sozinho. E andei muito de moto.
Duas rodas. De moto as grandes rodovias te obrigam a um ritmo de viagem nada
contemplativo. É só vacilar e ficar a menos de 110 por hora que uma carreta
encosta na sua traseira. Ter uma carreta refletida no retrovisor da moto é uma
visão perturbadora.
“Aquele cara ali é
representante comercial.”, digo.
“Cê conhece?”,
pergunta Bel.
“Não. Representante
comercial tem cara de representante comercial. E aquele outro ali também. E
acaba de chegar outro, acompanhado, é um representante comercial fêmea. E ali,
outro... E mais outro.”
“E aquele ali perto
do aquário?”, questiona Bel.
“Não. Aquele ali é
funcionário público. Funcionário público tem cara de funcionário público."
“Os funcionários
públicos não deveriam estar nas repartições públicas?”, pergunta Bel.
“Funcionário
público em deslocamento. É pra fuder o orçamento com diárias. E tem aquele ali que
é também, e aquela mesa com três.”
“Fora a gente, só
tem funcionário público e representante comercial comendo aqui então?”,
pergunta Lila.
“É. Mas no fim de
dezembro as coisas vão piorar muito. Entram os turistas.”
Fragmento de Os Incontestáveis,
de Saulo Ribeiro, romance que será publicado em 2015 numa pareceria das
editoras Cousa (ES) e Patuá (SP). O livro é inspirado no roteiro
cinematográfico homônimo escrito pelo autor
com Alexandre Serafini, diretor do filme, um road movie filmado nas
estradas capixabas que também estreia em 2015.
Saulo Ribeiro
é escritor.
Luciano Feijão,
graduado em Artes Plásticas pela Ufes. Entre 2008 e 2009 atuou como professor
substituto do Departamento de Artes Visuais da Ufes para os cursos de Artes
Plásticas, Artes Visuais, Desenho Industrial e Arquitetura. Produz ilustrações
para livros, jornais e revistas desde 2003, dentre os quais se destacam:
Editora Record, Editora Abril, Folha de São Paulo e Le Monde Diplomatique
Brasil. Seus trabalhos já fizeram partes de diversas exposições coletivas e
individuais.