NOVOS POEMAS [2013-2014]
Tarso de Melo
BANGLADESH 24042013
a foto final, o último fôlego,
nervos entre vigas (vida, não ouso,
não ouço), o sangue irmanado
ao concreto, o amor sob o pó,
sonhos sob os escombros: foi a última
vez em que meu corpo soube o seu,
foi a primeira vez em que nós fomos
apenas corpo, apenas corpos, nós
que antes éramos aço e músculos,
músculos e aço agora enlaçamos o pó
do que éramos, o pó a que fomos,
mil como nós abraçados à morte,
tecidos agora ao que tecíamos,
nossas roupas e as roupas em que
nos tornamos, agora que nosso amor
se chama morte, agora que nosso
mundo é ainda menor, apenas nós,
nosso pó, um nó entre nós e tudo.
AS
MORTES DE OSCAR
104, quase 105 anos levando consigo seus mortos
104, quase 105 anos guardando a morte para depois
104, quase 105 anos cedendo a vez à morte alheia
e Oscar, menino antigo, regendo o mundo com o lápis infinito,
interrompia as curvas do concreto para gravar as baixas
das trincheiras, do Pacífico, do Mar do Norte, Belgrado
os mortos de Oscar, soterrados sob um “x”, chegavam em bandos
do Kosovo, Ruanda, Dafu, Afeganistão, Sérvia, Iraque
da Somália, Etiópia, Sudão, Libéria, Angola
despencavam do Andraus, do Joelma, das Torres Gêmeas
saltavam além das redes antissuicídios
sucumbiam nas Malvinas e nas tribos guaranis
apinhavam os trens de Auschwitz, Buchenwald, Dachau
sumiam sob o gelo da Sibéria e ao sol do Caribe
erravam de Treblinka a Guantánamo, da Bósnia ao Haiti
fartos de gás mostarda, agente laranja, napalm, antrax
(Oscar guarda até hoje todos os gritos do DOPS
os ecos da Candelária, o sangue dos 111, as ordens do PCC
os estampidos insones e o vermelho quente
intenso a correr pelas vielas do Jardim Ângela e além)
com Oscar enterramos todas as suas mortes
e não sabemos o que fazer com as mortes de amanhã
VARIAÇÕES
SOBRE O MEDO
1.
as fibras ainda ardem
e contam as vítimas
que a vida aqui já foi mais leve
que as feridas
sempre expostas
já deixaram dormir
mas hoje – e hoje não é
nada mais nada menos
que essas cordas ligando
o que deixamos de ser
e o que jamais seremos –
o vento não perdoa, visita
casas, valas, almas, e leva
entre os dentes
as ilusões com que armamos
nosso esconderijo
2.
não há mais um mundo a ser criado
: deus, desempregado, assiste
(rasante solitário)
ao despencar de sua obra
3.
na calçada, nos rios, na turba,
no céu, nas sombras, na carne:
você diz ter medo e preme
aos cacos
os dias, as noites, as palavras
que um dia entregaria
você (seu próprio homem-do-saco,
sua íntima loira-do-banheiro)
agarrado, mais e mais,
aos galhos, como fiapos,
que impedem o abismo
de engolir os voos
de sua infinita
fuga
4.
(as asas insones de um pássaro
espancam, na distância, a memória
desta noite, deste mundo)
5.
o minério de seus medos,
o desespero posto em segredo,
um pavor que se armadilha
: não há santo disposto a recolhê-los,
nada, nenhum copo que os afogue,
ninguém a quem doar seu alicate
deixe tudo onde está
LEGENDAS PARA FOTOS QUE NÃO HÁ
[um] nesta
alegra ver
tão bem
no desconhecido
o rosto afeto
[dois] naquela
como um velho amigo
o completo estranho
feliz
[três] aqui
o sorriso que enche
a paisagem
de ninguém
a ninguém
RETRATO
N. 1
A noite cai como sempre caiu
e você, impaciente, fala de um novo homem.
Levanto a cabeça, olho em volta, não o vejo.
Eu peço menos pressa, outro copo,
e me distraio enquanto os homens de sempre,
exibindo sua sede, barriga demais, dentes a menos,
coçam lentamente os membros que ainda sentem
à beira de um rio que há muito os despreza.
De tempos em tempos nos escondemos em nossos telefones,
mesmo que eles não nos chamem, mesmo que nos devorem.
Descemos por entre cores que prometem nos levar além,
e já percebemos que a mutação máxima ao nosso alcance
é apenas uma dificuldade cada vez maior de voltar à tona.
É tarde. Estranho. Quando acorda, se acorda,
você diz que não quer morrer, mas não sabe o que nos prende à
vida.
Nem quer saber. Queria outros olhos, um ouvido mais puro,
músculos e sinapses, mas não sabe bem o que faria com eles.
A mesa está cheia, a luz baixa, o rádio já cansado
– mas o novo homem não chega. Na tevê o homem de sempre
mostra suas garras, moendo ao vivo outros homens de sempre.
E você pergunta, como quem não quer resposta, se o novo homem
acaso vai usar seus superpoderes para ser ainda mais superpodre.
Poderíamos rir. Mas guardamos para outro tempo.
Hora de ir. Outro país se esvaiu, mais alguns foram linchados,
seus sonhos foram vendidos. Mais cedo ou mais tarde, a conta
viria.
E – pelo corpo, pelo copo – não passou o bastante
para esquecermos que ninguém virá pagar por nós.
NATURAL
O jogo está perdido, Doni, e não me venha dizer
que a morte é natural. Natural como a morte do cão
sob as ranhuras de um pirelli, natural como o corpo
que não levanta quando tudo na cidade grita, natural
como o corpo que não acorda mais e não permite dormir,
natural como a carne aderindo invisível dia após dia
às solas multicoloridas que pulverizam o estrago
que, insistentes, fazemos uns dos outros, uns aos outros.
Não há mais jogo, cara, não há mais partida. Voam
sobre nosso espanto o resto de uma conversa que
ninguém mais vai interromper e o vulto inquieto
de tudo o que não dissemos sob tudo que foi dito.
Sem asas, os pássaros sobreviventes vão andar
entre seus versos sem saber se já não é deles a pasta,
a graxa, a prancha em que tanto voo se transformou.
Deixe assim. Uma palavra a mais não dirá nada.
Tarso
de Melo (Santo André,
1976) é advogado e professor universitário, doutor em direito pela USP. Seus
livros de poesia estão reunidos em Poemas
1999-2014 (Dobra/e-galáxia,
2014).