26 de março de 2014

Do apego ao terrestre: a poesia ecológica de Michel Deguy



Por Paula Glenadel.

Sob o nome de “apego”, examino esse privilégio de seu êxtase [da poesia] em direção às coisas (os linguistas falam mais calmamente de movimento referencial, que os poetas, por sua vez, chamavam de imaginação), de seu amor [da poesia] pelo mundo da terra. (...) Chamemos de poesia o cuidado ou arte que toma conta desse apego. A cultura é aquilo que o cultiva.
Michel Deguy [1]

O que pode ser o terrestre hoje? Por um lado, a pergunta parece ociosa, já que a terra (a ideia de terra se confundindo com o sentimento de pertencer à terra) é uma dessas evidências compartilhadas por todos, tão imbricada na experiência de base de qualquer humano que ela aparece como um ponto cego no seu pensamento, ou seja, aquilo que nem mesmo se pensaria em colocar como questão.
Responder pelo terrestre hoje, contudo, implica adotar uma perspectiva ligeiramente diferente daquela que a questão parecia inicialmente indicar. Ao invés de definir o que ele é, é possível situar o terrestre, no contexto do complexo pensamento-escrita de Michel Deguy, como aquilo que é capaz de inspirar nosso apego, mudando a questão metafísica em questão poética, a propósito da qual Deguy invoca de modo recorrente o “habitar poeticamente” de Hölderlin.
Mas, nos dias atuais, constata-se que o terrestre se encontra rarefeito, esvaziado ou desertificado, numa experiência de desolação e devastação. A tarefa hoje seria justamente a de pensar formas de renovar esse apego, frente aos efeitos mortíferos da relação do humano com a terra e consigo mesmo. Sendo assim, caberia indagar sobre as formas de apego que o terrestre ainda pode nos inspirar.
O objetivo principal deste texto é o de traçar uma breve apresentação do modo como essas questões vêm se entrelaçando na obra artística e reflexiva de Deguy, poeta francês nascido em 1930 e autor de uma poderosa e necessária meditação sobre as mutações culturais do nosso tempo, que recentemente vem tomando para si a qualificação de ecológica, desvinculando a questão da ecologia da questão puramente ambiental e inscrevendo-a numa direção poético-filosófica.
Proponho, para essa apresentação, seguir algumas das diferentes formas que assume o pensamento do apego em Deguy, traduzindo-as umas nas outras, buscando ver o que cada uma dessas formas traz como elemento diferencial a partir da figura em que é traduzida. Pensar o comparecimento dessa questão na obra deguiana por intermédio da tradução oferece uma perspectiva esclarecedora, pois é notável que também o próprio conceito de tradução em Deguy compartilha de um pensamento do apego, muito embora convoque, paradoxalmente, um desapego, um abandono ou uma privação, tanto em sua dimensão, digamos, mais restrita, linguística, quanto em sua dimensão mais ampla, cultural ou filosófica [2].
Nesse sentido, vejamos dois trechos contrapostos de Deguy relacionados com a ideia de traduzir, nos quais cada uma dessas duas faces predomina. Aqui, a noção predominante é a de “recolher”:

Transpondo em “poema” (um “ema” que assume a sequência de mitema, teologema e filosofema), ela [a poesia] recolhe a crença destruída, em seu engodo e fragilidade. Todo o perdido, ela o muda em sua perda – como se mente a quem está morrendo e sabe disso. (DEGUY, 1998, p. 4)

Nesta outra passagem, a noção predominante vem a ser a da “privação”:




O exercício do traduzir me pareceu exemplificar a privação. Pois, traduzindo de outra língua, eu devo aprender a me privar daquilo que ela sabe fazer, para rivalizar; compreender sua façanha para inventar a transposição dela, como os acrobatas se desafiam sem se copiarem. (DEGUY, 2007, p. 72)


Disposta nesse batimento entre apego e desapego, a tradução realiza uma espécie de trabalho de luto, ativo, cultivando a capacidade de transpor, ou profanar (assinalo que estas são possíveis traduções de Deguy para a palavra “traduzir”) as figuras de uma tradição e de um mundo perdidos, em termos aos quais podemos nos apegar novamente. Percebe-se, assim, e desde já, que aquilo que o poeta designa como apego se inscreve na contramão da acepção corrente, que tende a sinonimizar apego, desejo e posse, e pode vir a ser traduzido pelo próprio conceito de tradução, tal como ele o desenvolve.
O apego segundo Deguy é um “louco desejo”, “desejo do mesmo, do que permanece”, desde que se compreenda que a coisa necessita uma despossessão ou transfiguração para tornar-se ela mesma, ou seja, o “aqui” necessita uma transfiguração para tornar-se o “aqui mesmo” [3]. Nisso consiste a “loucura” desse desejo de “preservação renovante da existência humana no silêncio da vida terrestre ameaçada por nossa revolução técnica e cibernética” [4].
O apego transformante é uma outra maneira de expressar a necessidade de antropomorfose, movimento que representa uma tentativa de sair do antropomorfismo reinante e impositor de uma imitação globalizada, o modelo de vida ocidental e, portanto, mundial: “Cheio de caprichos, pretensioso, irascível, eis o homo mimado occidentalis, top modelo do universo” (DEGUY, 1998, p. 58). Lembrando que o incondicional designa em Jacques Derrida uma interrogação das condições, dos fundamentos previamente colocados, dos modelos, das “hipóteses” da razão [5], essa loucura de que fala Deguy é, então, exigência incondicional de antropomorfose, isto é, de transposição, isto é, de transfiguração, isto é, de comparação, em suma, de como-unidade, todos termos participantes de uma série de reflexões desenvolvidas há algum tempo por Deguy, para que a terra continue sendo a terra.
Nesse embate que me permito traduzir como aquele da semelhância (semblance) contra a semelhança (ressemblance) (DEGUY, 1998, p. 106), retomando uma antiga distinção da filosofia, trata-se-ia do “como se”, que se deve arrancar de um “como tal”.

A partir deste ponto, para complementar a ideia de apego, através de um maior entendimento do alcance da ideia de terrestre, vou seguir um pouco o itinerário de leitura da obra de Deguy proposto pelo estudioso Michel Collot no seu estudo Paisagem e poesia – do romantismo aos nossos dias (2005). Segundo Collot, à época de publicação de seu estudo, as relações de Deguy com Heidegger e com o pensamento grego já haviam sido bastante comentadas, ao passo que suas relações com a fenomenologia ainda estavam pouco observadas. Tentando preencher essa lacuna, Collot mostra que Deguy se refere sistematicamente a Maurice Merleau-Ponty, para articular questões fundamentais da sua própria poética, através, especialmente da figura do quiasmo entre carne e pensamento, que mostra a imaginação poética não como pura ficção de um outro mundo, mas como resposta à provocação deste mundo. Esse parentesco profundo entre linguagem e paisagem é o fundamento da geopoética de Deguy, segundo Collot (2005, p. 401).
Nos primeiros livros de poesia de Deguy [6], a predominância de uma “fenomenologia do espaço poético”, tal como é descrita por Collot, deixa transparecer um grande interesse pela relação do espaço com a linguagem e o sentido. A visão se torna um canal privilegiado de comunicação com o mundo e de expressão dos seus aspectos, como se vê em muitos de seus poemas em prosa descritivos, que remetem à terra ou a suas vistas: campo, vales, península, tempestade, mar...
Contudo, Collot aponta a entrada de Deguy, na virada dos anos 60, na era da linguagem toda-poderosa, era de “diferença mais do que de referência” (Ibidem, p. 406), e assinala o abandono, a partir dessa época, do poema em prosa descritivo característico da sua produção anterior, sugerindo que as respostas da fenomenologia pareceram insuficientes ao poeta, especialmente no que tange a dificuldade de articulação destas com a ontologia heideggeriana, que assumiu importância cada vez maior para Deguy. O crítico mostra que essa preocupação com o ponto de fuga, a perspectiva (aquilo que não se vê, mas que constitui a própria condição de visibilidade) já fora pensada por Merleau-Ponty em termos de horizonte, conceito que abriga o velamento do ser ao mesmo tempo que o desvelamento do ente (Ibidem, p. 403), mas, assim mesmo, o afastamento “histórico”, determinado pelos rumos do pensamento francês de 1968, teve lugar.
Talvez essa breve história dos movimentos da poesia de Deguy em sua relação com a fenomenologia narrada por Collot retrate uma certa reticência deste crítico em relação ao movimento geral da poesia e das concepções de linguagem francesas do final do século XX , mais do que exatamente a transformação da poesia de Deguy. Seja como for, o fato é que esse capítulo dedicado a Deguy é excelente na investigação do seu convívio com a perspectiva fenomenológica, e mostra como ele jamais deixou de ser produtivo. Numa de suas melhores observações, Collot indica:



As mesmas palavras podem descrever o mundo e a linguagem. É por isso que a poética pode, segundo Deguy, preferir, aos termos abstratos da teoria linguística ou da retórica, grandes nomes comuns e concretos que dizem ao mesmo tempo “o aparecimento das coisas” e a configuração das palavras: “limiar, batimento, orla, dobra”. Essas metáforas espaciais são de um rigor diferente em relação aos termos metalinguísticos: elas se esforçam em não isolar a linguagem poética do mundo que ela abre e ao qual ela nos abre. (Ibidem, p. 408) 


De fato, para voltar à questão do apego, é curioso acompanhar, em uma entrevista concedida por Deguy a Stéphane Baquey em 1998, o ressurgimento dessa questão pelo viés da explicitação de uma complementaridade entre filosofia e arte, refletida também em outras passagens da sua obra na sua retomada da figura heideggeriana dos “montes separados por um abismo” da filosofia e da poesia [7], na tentativa de recuperar para a poesia aquilo que em grande medida Heidegger quer reservar para a filosofia.


S.B. : Tomarei Merleau-Ponty, a maneira como você fala do quiasmo. Pode-se transpor Merleau-Ponty em uma leitura da poesia ?


M.D. : Sim, creio que Merleau-Ponty toma emprestado da experiência dos artistas para dizer o que se passa com o ser-no-mundo. Tudo o que ele consegue dizer do quiasmo, o entrelace, a carne, ele só pode dizê-lo porque passa por Cézanne, Claude Simon ou outros que ele analisa, isto é, pelo que o artista faz, ao mesmo tempo operações e comentário dessas operações. Isso lhe permite descrever em termos fenomenológicos o ser-no-mundo na sua plenitude. Ele precisa disso. Isso equivaleria a dizer que não se pode fazer fenomenologia no sentido filosófico, senão apoiado, ajudado, pela maneira como os artistas produzem e dizem o seu ser-no-mundo. Não são apenas adjuvantes para esclarecer. É o que Cézanne faz e o que ele diz do que faz que permitem a Merleau-Ponty compreender a maneira corrente de ser-no-mundo, a subjetividade no sentido fenomenológico. Isso equivale a dizer que não há sensação, mas que há emoção. E que esses momentos de emoção designam momentos de plenitude. [8]


É preciso ressaltar que aquilo que Deguy chama aqui de emoção também poderia ser chamado de sentido. O ser-no-mundo é figura central nessa sua explicação das relações entre arte e pensamento. Ele introduz o sentido “ecológico” (isto é, na escala da vida terrestre dita pelo logos) dos fatos contemporâneos analisados e criticados a partir de uma “razão poética”, título de outro de seus livros (2000).
Deguy reivindica a ecologia de maneira atenta à linguagem, num gesto herdeiro do gesto heideggeriano, para tentar recolocar esse termo, que experimenta uma intensa circulação na contemporaneidade, em outro lugar – um lugar, contudo, não apenas filosófico, mas que também interessa à poesia. E, para isso, como Heidegger, é a Hölderlin que ele recorre.


Se tomarmos as palavras pela etimologia, e as coisas em questão por uma perspectiva de conjunto (synopsis) de muito ampla generalidade, podemos dizer: ecologia e poesia não somente convêm uma à outra, mas dizem e visam “o mesmo”. A ecologia é uma logia, um pensamento do oikos, isto é, a morada terrestre e mundana dos humanos – de seu “ecúmeno” [9]. Quanto à poesia, se dermos ouvido a Hölderlin, ela foi (ainda poderá ser?) modo de habitação dos homens: “Dichterisch aber wohnet der Mensch”. Os poetas, os artistas (Dichter) “reúnem a beleza da terra” (Andenken). (DEGUY, 2010, p. 114)


A ecologia aparece, assim, como mais uma figura recente que traduz as considerações sobre o apego em Deguy. É um movimento que, sob esse nome, já está presente em Reabertura após obras [10] e convida ao deslocamento e à redistribuição das figuras do mundo e da terra.
Em Écologiques, publicado em 2012, que o poeta vincula também à tradição das Géorgicas do poeta latino Virgílio, Deguy reforça a ideia de que não se trata apenas de meio-ambiente, mas de mundo. Como o poeta esclarece, a terra é diferente do planeta, assim como o mundo não é a soma dos meios-ambientes; seu entendimento da relação terra-mundo passa, mais uma vez, por Heidegger.



Não se trata de desenfumaçar o nicho, de despoluir o Umwelt (atmosfera ou meio ambiente), mas de reabrir a abertura – e reorganizar as aberturas – para a “grandeza” ou “clareira” (Lichtung) do mundo ou do Ser. (DEGUY, 2010, p. 115)


É assim que, retomando uma de suas figuras preferidas, o poeta investe a expressão “terra prometida” com essa dimensão ecológica que promete uma reabertura, não apenas para a “grandeza” do mundo, mas também para o inacabado da nossa tarefa poética de dizer a grandeza do mundo.



O duplo apego ao “habitar”, ou seja, à “beleza da terra” (Andenken) e à língua (aos saberes, às artes, aos falares da língua, etc.), em outros termos à promessa de “terra prometida” (não possuída) – em que transformá-lo a fim de não descartá-lo? (DEGUY, 2010, p. 119)


Este breve percurso crítico em torno da noção de apego quis sublinhar também o grau de coerência do pensamento poético de Michel Deguy, que o vem desenvolvendo ao longo de muitas décadas, sem jamais, contudo, se permitir uma acomodação a certezas consolidadas por escritos anteriores, e costuma retomar muitas das suas propostas em outros livros sob forma de “variações”, sempre buscando trazê-las para o constante embate com o contemporâneo.


Referências bibliográficas
Collot, Michel.  Paysage et poésie – du romantisme à nos jours. Paris: José Corti, 2005.
DEGUY, Michel. L’énergie du désespoir. Ou d’une poétique continuée par tous les moyens. Paris: P.U.F., 1998.

______. La raison poétique. Paris: Galilée, 2000.

______. Desolatio. Paris: Galilée, 2007.

______.  Ecologia e poesia. Tradução: Marcos Siscar. Revista Matraga. Rio de Janeiro, v.17, n. 27, jul./dez. 2010.
Derrida, Jacques. Rogues. Two essays on reason. Translated by Pascale-Anne Brault and Michael Naas. Stanford, California: Stanford University Press, 2005.



[1] Conferência sobre « L’attachement », Université de tous les savoirs, 31/ 12/ 2000, disponível em http://www.canal-u.tv/video/universite_de_tous_les_savoirs/l_attachement.1218.
[2] Seria preciso compreender esse paradoxo um pouco à maneira da reflexão desenvolvida por outro poeta da geração de Deguy, Jacques Roubaud, sobre a memória como um processo que comporta a lembrança e o esquecimento. Veja-se, por exemplo, LEAL, Paula Glenadel. Jacques Roubaud: a poesia como espiral da memória. Revista Anpoll, Vol. 2, No 5 (1998).
[3] Seria possível realizar uma associação dessa proposta com a teoria da tradução em Benjamin, na meddia em que ela encarrega a tradução da tarefa de conferir uma sobrevida do texto original, que se torna mais “ele mesmo”, mais próximo de uma língua “pura”, absoluta, ao ser traduzido. Ver Castello Branco, Lucia (org.) A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.
[4] Essas expressões fazem parte da mesma conferência de Deguy sobre “L’attachement”, de 2000.
[5]Hypothesis in Greek will have signified before all else the base or basis, the infrastructure posed beneath or at the bottom of a foundation. (…) It will have also done this as the subject, substance, or supposition of a discourse, as a proposition, design, or resolution, but most often as a condition. The rationality of reason is forever destined, and universally so, for every possible future and development, every possible to-come and becoming, to contend between, on the one hand, all these figures and  conditions of the hypothetical and, on the other hand, the absolute sovereignty of the an-hypothetical, of the unconditional or absolute principle (…)”. DERRIDA, 2005, p. 136.
[6] Como em Fragment du cadastre (1960) e Poèmes de la Presqu’île (1961).
[7]Denken und Dichten, diz Heidegger. Pensar e fazer obra ? Faço como se se tratasse de filosofia e poesia. Elas vizinham por um abismo, diz o pensador citando o poeta. Por um abismo : uma dobra prehistórica, arcaica ou palaica, as teria separado, a essas duas. De modo que, graças ao abismo da disjunção, elas são vizinhas, olhando uma para a outra do alto, o que é ao mesmo tempo muito longe e  muito perto.” DEGUY, Michel. Savoir du non-savoir. In : Noesis [Online], 7 | 2004, Online since 15 May 2005, connection on 07 August 2013. URL : http://noesis.revues.org/27.
[8]Entrevista de Stéphane Baquey com Michel Deguy, Prétexte Hors-série 9. 1998. Disponível em http://pretexte.perso.neuf.fr/PretexteEditeur/ancien-site/revue/entretiens/entretiens_fr/entretiens/michel-deguy.htm .
[9] Nota de Deguy no artigo, seguida por Nota do seu Tradutor: “Termo desgastado graças a A. Berque [N.T.: Augustin Berque é um geógrafo francês, autor de Écoumène. Introduction à l’étude des milieux humains, 2001].
[10] 2007 na edição francesa da Galilée; 2010 na tradução brasileira publicada pela EdUnicamp. Tradução Paula Glenadel e Marcos Siscar.




Esse texto integrará o livro Poetas da Natureza, Editora Edufma/Fundação Sousândrade (Editora da Universidade Federal do Maranhão). Org. Josoaldo Lima Rego.