24 de março de 2014

O breve épico ferroviário de Fernando Fiorese




Por Fábio Romeiro Gullo.

quem consagrou os dias
ao diálogo das nuvens
e noites consumia
descarnando arcanos
com suas miragens
um herói engendrou
lá onde finda a palavra
e a fábula principia
FERNANDO FIORESE, Dançar o nome


Depois de ter passado, com louvor, pela poesia (reunida no volume Corpo Portátil), prosa (os contos de Aconselho-te crueldade), prosa poética (os verbetes de Dicionário Mínimo) e ensaio (Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito), o “escrevinhador de textos menores”, como se autodefine em seu blog[1], Fernando Fábio Fiorese Furtado (apenas Fernando Fiorese de agora em diante), escreveu o que talvez seja sua magnum opus poética, o idílio Um dia, o trem (Nankin editorial, 2008), poema composto por 248 versos agrupados em 15 seções com duas estrofes cada, às quais se acrescenta uma seção com estrofe única à guisa de posfácio, intitulada Envoi[2].

Devido ao uso denso que faz de imagens tecidas em metáforas de alcance longo e profundo[3] – o trem (coisa de se medir com o mar), a infância, o pai e o/no filho, a viagem/jornada (a Odisséia, sempre), os diversos tipos de morte e a poesia como resistência à morte (aquela outra, maiúscula e cabal contra a qual se opõe, talvez em referência ao drummondiano poesia, morte secreta[4], o poema / após o lápis, essa morte feliz) –; imagens que, consteladas, passam a constituir mitologemas e até mesmo um mito; poder-se-ia dizer de Um dia, o trem, lato sensu, um epílio, ou épico breve: um épico sobre o amadurecimento, a morte e a infância vistos sob a égide do deus-trem, símbolo polivalente mas, fundamentalmente, representativo da imaginação criadora que descarrilha em poesia a prosa impotente do pai, imaginação já vista, em semente, na brincadeira hierática do filho.

Uma análise arquetípica (Gilbert Durand), para a qual apenas apontaremos aqui – não se trata, este pequeno texto, de uma análise sob os auspícios dessa escola crítica – mostraria, com efeito, como Um dia, o trem encarna com justeza o caminho a que tendem os arquétipos de transformarem-se, na obra de arte, em símbolos; estes, antes de constituírem narrativas plenas, a se organizarem em mito[5]. O que defere a observação que Roberto Corrêa dos Santos faz em seu texto para a orelha do livro, dizendo deste uma “quase-narrativa” ou “minimalíssimo romance”: a partir das imagens (símbolos) centrais já mencionadas, Fernando Fiorese não nos oferece uma narrativa, mas uma protonarrativa, tanto mais rica e sugestiva devido a esse estatuto pré-racional.

Mito ou narrativa mínima, idílio[6] ou epílio, trata-se de poesia complexa, densa. E como a mais bem realizada das artes que usam a linguagem verbal (escrita ou falada) como meio; como a mais bem realizada das artes; como arte, a boa poesia é necessariamente complicada, polissêmica, ambígua. Difícil[7].
Isso implica sem dúvida uma maior exigência do papel do fruidor/leitor. O que Renato Xavier escreve no  prefácio à sua magistral tradução de Ossi di seppia (Eugenio Montale, Companhia das letras, 2011) a respeito da dificuldade de penetração num universo poético coeso – algo não raro confrontado por injustas acusações de hermetismo e obscurantismo – aplica-se a contento ao texto aqui em exame. Diz Xavier a respeito das imagens da primeira obra de Eugenio Montale: “ainda que relacionadas ao tema tratado, [suas imagens] podem ser de interpretação demorada e às vezes enigmática”, ainda que se imponham “para a absorção pelo leitor” (grifo do autor), contudo apenas mediante uma “disciplina de atenção... necessária para discernir e penetrar um universo poético que é apresentado de modo coerente e rigoroso”, observando que “uma leitura lenta e meditativa gradualmente entrosa o leitor com a expressão de Montale, e vai-se desenvolvendo uma confiança que faculta o entendimento progressivo”.

Faço analogias entre aspectos de composição e fruição gerais das obras, analogias aplicáveis a quaisquer boas obras; não faço analogias entre as obras em si. Abusando das comparações, observe-se ainda, relacionado à dificuldade de penetração no ambiente denso do universo poético, o uso que ambos os autores fazem de, nas palavras de Renato Xavier, “palavras inusitadas ou desusadas e arcaísmos”. Uso preciso, com o intuito de aumentar a riqueza verbal já elevada pelo virtuosismo em outros planos, como o sintático (os versos abusam de ordens indiretas e outros malabarismos, à mímise, segundo metáfora do próprio poema, de um trem descarrilhando – à prosa equivalendo o trem em bons trilhos) e cumprir à maravilha a que seria uma das principais funções (diga-se, sim, “utilidades”) da poesia, qual seja, a de “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”, na conhecida expressão de Stéphane Mallarmé.

Trata-se, claramente, de uma obra de “madureza” (o termo de Drummond aparece na obra, onde, descendo mais um grau em sua mineiridade, ecoa também Autran Dourado); no mínimo, ainda que se tratasse da obra de um autor iniciante, denotaria, com suas qualidades, o (raro) domínio de sua poiésis. No caso específico de Fernando Fiorese, denota ainda o amadurecimento não só de uma técnica impecável, mas também de um temário (o da infância) que aqui encontra sua expressão imagética mais bem elaborada no decorrer do corpus do autor.

O leitor atento notará também que o texto é fruto de reescritura e edição meticulosas. Como observa, em alguma parte, Haroldo de Campos a respeito de Homero, no decorrer da Odisséia, da Ilíada, a qualidade não decai. Isso não acontece aqui, na minha opinião, conforme explicarei à frente, mas, de lado as últimas cinco seções (a seção intitulada Envoi escapa), o desejo que a qualidade contínua do poema desperta é que ele se estenda em maior número de versos – o que, felizmente, não acontece, dado a sua extensão ter a medida exata que lhe permite o necessário e ótimo desenvolvimento dos temas propostos, ao qual se soma a densidade advinda de se poder abarcar numa só visada o todo (pode-se ler o texto em quarenta minutos), composto, mais uma vez devido à extensão justa e à exceção das últimas cinco partes, apenas do essencial, pois qualquer leitura atenta revela, entre outras qualidades, a inexistência de enchimento (leia-se: conteúdo narrativo)  neste texto medular.

Em que pese o acima exposto, depreende-se do poema tênues traços de uma história. Eu diria a história do herói-híbrido pai-filho-poeta condensada num único episódio maravilhoso: seu encontro com a divindade maquínica. Que estejamos diante de um épico breve corroboram, de cara, os três primeiros versos do poema: Eis que o menino admira ter na sua/ a mão do pai, menos porque onde arrua/ desenreda-se uma inteira Odisséia. Ao que passamos ao episódio elíptico de um passeio em que o pai, entre festas feitas ao filho, conta-lhe a história de tipos mineiros encontrados à porta de vendas e armazéns, outro traço comum, segundo Carlos Alberto Nunes no prefácio de sua tradução da Odisséia, aos épicos. De resto, da segunda parte do poema em diante, do indomável da memória, pai e filho partilham: a lembrança do encontro com o Trem, que um e outro fundirá num e o mesmo, o que de si é fabro, isto é, o narrador de Fernando Fiorese e não o próprio Fernando Fiorese, dado o estatuto ficcional do texto, conforme veremos adiante.

Dessa primeira visão do trem como divindade fascinante (colosso... demasia de ferro e fuga; fascina tudo o que reúne duas margens) suceder-se-á o trem como omnisímbolo, metáfora metamorfa (E muda o trem em metáfora quando) de tudo: do menino que é todo lacunas, emendas, erratas enquanto Todo remendos, o trem não desconhece/ pence, pesponto, bordado ou debrum; da escrita/literatura enquanto forma, prosa ou poesia (Seja a prosa como dormir num trem/ e a poesia quando a aduana sobrevém), e enquanto a única atividade humana efetiva contra a contingência/morte (ambos à procura de alguma escora/ para este mundo que o trem apostrofa; para o menino trem existe apenas/ enquanto na gare, sem zás nem tris,/ descansa suas engrenagens: um poema/ após o lápis, essa morte feliz; de saber que no verso desembarca/ apenas a prosa dessas coisas arcas/ o que no menino se salva do olvido).

Como visto, o poema abunda em versos, passagens e trechos da mais alta qualidade. A partir da seção intitulada Trem-metáfora, porém, algum leitor, como eu, poderá notar que, embora a qualidade da versificação não decaia, ocorre uma paralisação do desenvolvimento já circular (à semelhança do ouroboro) dos temas do poema: passa-se, a partir desse ponto, a uma revisitação, quando não a uma explicação, de imagens e metáforas já vistas, até revistas, no decorrer do poema. Algum leitor, como eu, notará que isso é absolutamente desnecessário, chegando mesmo a comprometer, aos olhos mais exigentes, o forte efeito que o poema teria causado até então. Outros discordarão.

Agora, uma palavra a respeito do possível aspecto autobiográfico do poema. Não me recordo se há algo no próprio texto que indique isso, ou se colhi essa informação da curta exegese que o próprio autor faz do poema em matéria que escreveu para a revista eletrônica Germina literatura (veja a primeira nota de rodapé). Afirma o autor que Um dia, o trem, é uma ficção colhida, quando muito, de vagas lembranças de uma infância que não teria envolvido de forma profunda o trem e seus apêndices – estradas de ferro, estações –, não podendo ser chamada, propriamente, de ferroviária. A esse respeito, seria interessante notar, se bem leio certas passagens do poema e declarações do autor encontradas na internet, que o próprio Fernando Fiorese tem a ficção e a imaginação – se entendermos aquela como fruto desta – em alta conta (traço compartilhado com a épica/poética de Homero). Em Um dia, o trem Fernando Fiorese expressa essa noção ao comparar a viagem tranquila à prosa, e a estase da espera anterior a uma possível partida ou o descarrilhamento à poesia, como se esta derivasse sua maior potência e interesse de um flerte com o limiar, com os extremos: ou da estase que permite a contemplação detida e estimula a mente a imaginar as possibilidades/encontros que o périplo trará, ou do movimento demasiado, que leva ao excesso de possibilidades e, finalmente, ao desastre, a propósito do que se citem os últimos quatro versos do poema:

Aponta a morte com o riso fácil
De quem, com o que foi e o que deveria,
Reúne em si duas margens e, à revelia,
Publica aqui outra edição do desastre.

Por último gostaria de chamar a atenção para o projeto gráfico do livro, de Antônio do Amaral Rocha, desde a belíssima capa com ilustração de Paolo Meninchini, às ilustrações presentes uma página par sim, outra não (em branco), com o texto ocorrendo na página ímpar, fotografias de Jesualdo de Almeida Castro retratando objetos ferroviários, como uma placa, saborosíssima em sua ironia, em que se pode ler “É proibido transitar pela linha, multa 5$000”, todas extraídas do arcevo do Museu Ferroviário de Juiz de Fora.

Em conclusão, a mim não restam dúvidas de que falamos aqui de um grande poema, agora –após ter lido dezenas de vezes o livro que, à semelhança daquele que Fernando Fiorese recebeu outrora de Fabrício Carpinejar para seu deleite estético e tátil[8], recebi tão gentilmente do autor após contato via Facebook –, agora um dos meus prediletos, objeto de deleite sem fim que resultou, entre outras consequências, neste comentário crítico que não se quer objetivo, mas comprometido e afetivo. Ao cabo da leitura de Um dia, o trem, ficará patente a qualquer bom leitor, ainda que seus padrões sejam os mais altos, que ele definitivamente se encontra diante de trabalho muito maior do que seria capaz um mero “escrevinhador de textos menores”.

Dito isso, e de tudo o que se disse, que fique o próprio Fernando Fiorese com a última palavra (extraída do livro Aconselho-te crueldade):

Mas repetir tinha para o poeta propósitos menos ordinários e mais farmacêuticos: manter o medo sob controle, aferrar-se à ordem tranqüilizadora das coisas, degustar a fantasia de que seja possível endireitar as linhas do destino conforme as ficções do passado. E principalmente, tal uma caricatura da obra do Verbo divino, arrancar daquelas palavras — sempre iguais, sempre as mesmas, mas repetidas até encontrar um sal de diferença —, arrancar delas um corpo, aquele corpo anterior ao desastre, capaz de dizer-se sem paráfrases ou citações.



(Originalmente publicado no Portal Musa Rara: http://www.musarara.com.br/)




[3] O verbo foi escolhido a dedo: uma das metáforas-leitmotiv do temário de Fioresede emparelha o tecelão ao poeta, o artesanato daquele à arte deste.
[4] Do poema Brinde no banquete das musas (Drummond, Antologia poética)
[5] Em entrevista a Maria Lúcia Outeiro Fernandes e Paulo Andrade (O espanto originário: a poesia por Iacyr Freitas e Fernando Fiorese), Fernando Fiorese responde a respeito da relação mito e poesia:

A poesia extrai a sua força da tensão imemorial e continuada entre mythos e logos, entre palavra mágica e signo racional, entre acaso e cálculo. Se há algum vigor na minha obra, devo o mesmo ao constante empenho em perseguir o arco que une tais forças antagônicas e complementares.

[6] Neste caso, penso em algo mais próximo, em clima, de Hermann und Dorothea de Goethe; numa espécie de último idílio mineiro, já algo entre o pastoral e o industrial, representado pela imagem do trem cruzando o interior – ainda – bucólico do estado, imagem que serviria de pivô, dada uma narrativa, para o relacionamento de pai e filho.
[7]Difícil acompanhar a mensagem geral submersa em poemas, estrofes, versos, tudo a serviço de reminiscências e valores subjetivos.” Fábio Lucas in A poesia de Um dia, o trem, http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1117