Por Fábio Romeiro Gullo.
quem consagrou os dias
ao diálogo das nuvens
e noites consumia
descarnando arcanos
com suas miragens
um herói engendrou
lá onde finda a palavra
e a fábula principia
ao diálogo das nuvens
e noites consumia
descarnando arcanos
com suas miragens
um herói engendrou
lá onde finda a palavra
e a fábula principia
FERNANDO FIORESE,
Dançar o nome
Depois de ter passado, com louvor, pela poesia (reunida no
volume Corpo Portátil), prosa (os
contos de Aconselho-te crueldade),
prosa poética (os verbetes de Dicionário
Mínimo) e ensaio (Murilo na cidade:
os horizontes portáteis do mito), o “escrevinhador de textos menores”, como
se autodefine em seu blog[1],
Fernando Fábio Fiorese Furtado (apenas Fernando Fiorese de agora em diante),
escreveu o que talvez seja sua magnum
opus poética, o idílio Um dia, o trem
(Nankin editorial, 2008), poema composto por 248 versos agrupados em 15 seções com
duas estrofes cada, às quais se acrescenta uma seção com estrofe única à guisa
de posfácio, intitulada Envoi[2].
Devido ao uso denso que faz de imagens tecidas em metáforas de
alcance longo e profundo[3]
– o trem (coisa de se medir com o mar), a infância, o pai e o/no filho, a viagem/jornada
(a Odisséia, sempre), os diversos
tipos de morte e a poesia como resistência à morte (aquela outra, maiúscula e cabal contra a qual se opõe, talvez em
referência ao drummondiano poesia, morte
secreta[4],
o poema / após o lápis, essa morte feliz)
–; imagens que, consteladas, passam a constituir mitologemas e até mesmo um
mito; poder-se-ia dizer de Um dia, o trem,
lato sensu, um epílio, ou épico breve:
um épico sobre o amadurecimento, a morte e a infância vistos sob a égide do
deus-trem, símbolo polivalente mas, fundamentalmente, representativo da
imaginação criadora que descarrilha em poesia a prosa impotente do pai, imaginação
já vista, em semente, na brincadeira hierática do filho.
Uma análise arquetípica (Gilbert Durand), para a qual apenas
apontaremos aqui – não se trata, este pequeno texto, de uma análise sob os
auspícios dessa escola crítica – mostraria, com efeito, como Um dia, o trem encarna com justeza o
caminho a que tendem os arquétipos de transformarem-se, na obra de arte, em
símbolos; estes, antes de constituírem narrativas plenas, a se organizarem em
mito[5].
O que defere a observação que Roberto Corrêa dos Santos faz em seu texto para a
orelha do livro, dizendo deste uma “quase-narrativa” ou “minimalíssimo
romance”: a partir das imagens (símbolos) centrais já mencionadas, Fernando
Fiorese não nos oferece uma narrativa, mas uma protonarrativa, tanto mais rica
e sugestiva devido a esse estatuto pré-racional.
Mito ou narrativa mínima, idílio[6]
ou epílio, trata-se de poesia complexa, densa. E como a mais bem realizada das
artes que usam a linguagem verbal (escrita ou falada) como meio; como a mais
bem realizada das artes; como arte, a boa poesia é necessariamente complicada,
polissêmica, ambígua. Difícil[7].
Isso implica sem dúvida uma maior exigência do papel do
fruidor/leitor. O que Renato Xavier escreve no
prefácio à sua magistral tradução de Ossi
di seppia (Eugenio Montale, Companhia das letras, 2011) a respeito da
dificuldade de penetração num universo poético coeso – algo não raro confrontado
por injustas acusações de hermetismo e obscurantismo – aplica-se a contento ao
texto aqui em exame. Diz Xavier a respeito das imagens da primeira obra de
Eugenio Montale: “ainda que relacionadas ao tema tratado, [suas imagens] podem
ser de interpretação demorada e às vezes enigmática”, ainda que se imponham
“para a absorção pelo leitor” (grifo
do autor), contudo apenas mediante uma “disciplina de atenção... necessária
para discernir e penetrar um universo poético que é apresentado de modo
coerente e rigoroso”, observando que “uma leitura lenta e meditativa
gradualmente entrosa o leitor com a expressão de Montale, e vai-se
desenvolvendo uma confiança que faculta o entendimento progressivo”.
Faço analogias
entre aspectos de composição e fruição gerais das obras, analogias aplicáveis a
quaisquer boas obras; não faço analogias entre as obras em si. Abusando das
comparações, observe-se ainda, relacionado à dificuldade de penetração no
ambiente denso do universo poético, o uso que ambos os autores fazem de, nas
palavras de Renato Xavier, “palavras inusitadas ou desusadas e arcaísmos”. Uso
preciso, com o intuito de aumentar a riqueza verbal já elevada pelo virtuosismo
em outros planos, como o sintático (os versos abusam de ordens indiretas e
outros malabarismos, à mímise, segundo metáfora do próprio poema, de um trem
descarrilhando – à prosa equivalendo o trem em bons trilhos) e cumprir à
maravilha a que seria uma das principais funções (diga-se, sim, “utilidades”)
da poesia, qual seja, a de “dar um sentido mais
puro às palavras da tribo”, na conhecida expressão de Stéphane Mallarmé.
Trata-se, claramente, de uma obra de “madureza” (o termo de
Drummond aparece na obra, onde, descendo mais um grau em sua mineiridade, ecoa
também Autran Dourado); no mínimo, ainda que se tratasse da obra de um autor
iniciante, denotaria, com suas qualidades, o (raro) domínio de sua poiésis. No caso específico de Fernando
Fiorese, denota ainda o amadurecimento não só de uma técnica impecável, mas
também de um temário (o da infância) que aqui encontra sua expressão imagética
mais bem elaborada no decorrer do corpus do
autor.
O leitor atento notará também que o texto é fruto de reescritura
e edição meticulosas. Como observa, em alguma parte, Haroldo de Campos a
respeito de Homero, no decorrer da Odisséia,
da Ilíada, a qualidade não decai. Isso
não acontece aqui, na minha opinião, conforme explicarei à frente, mas, de lado
as últimas cinco seções (a seção intitulada Envoi
escapa), o desejo que a qualidade contínua do poema desperta é que ele se
estenda em maior número de versos – o que, felizmente, não acontece, dado a sua
extensão ter a medida exata que lhe permite o necessário e ótimo
desenvolvimento dos temas propostos, ao qual se soma a densidade advinda de se
poder abarcar numa só visada o todo (pode-se ler o texto em quarenta minutos),
composto, mais uma vez devido à extensão justa e à exceção das últimas cinco
partes, apenas do essencial, pois qualquer leitura atenta revela, entre outras
qualidades, a inexistência de enchimento (leia-se: conteúdo narrativo) neste texto medular.
Em que pese o acima exposto, depreende-se do poema tênues
traços de uma história. Eu diria a história do herói-híbrido pai-filho-poeta
condensada num único episódio maravilhoso: seu encontro com a divindade
maquínica. Que estejamos diante de um épico breve corroboram, de cara, os três
primeiros versos do poema: Eis que o
menino admira ter na sua/ a mão do pai, menos porque onde arrua/ desenreda-se
uma inteira Odisséia. Ao que passamos ao episódio elíptico de um passeio em
que o pai, entre festas feitas ao filho, conta-lhe a história de tipos mineiros
encontrados à porta de vendas e armazéns, outro traço comum, segundo Carlos
Alberto Nunes no prefácio de sua tradução da Odisséia, aos épicos. De
resto, da segunda parte do poema em diante, do indomável da memória, pai e
filho partilham: a lembrança do encontro com o Trem, que um e outro fundirá num
e o mesmo, o que de si é fabro, isto
é, o narrador de Fernando Fiorese e não o próprio Fernando Fiorese, dado o
estatuto ficcional do texto, conforme veremos adiante.
Dessa primeira visão do trem como divindade fascinante (colosso... demasia de ferro e fuga; fascina tudo o que reúne duas margens)
suceder-se-á o trem como omnisímbolo, metáfora metamorfa (E muda o trem em metáfora quando) de tudo: do menino que é todo lacunas, emendas, erratas enquanto Todo remendos, o trem não desconhece/ pence,
pesponto, bordado ou debrum; da escrita/literatura enquanto forma, prosa ou
poesia (Seja a prosa como dormir num
trem/ e a poesia quando a aduana sobrevém), e enquanto a única atividade
humana efetiva contra a contingência/morte (ambos
à procura de alguma escora/ para este mundo que o trem apostrofa; para o menino
trem existe apenas/ enquanto na gare, sem zás nem tris,/ descansa suas
engrenagens: um poema/ após o lápis, essa morte feliz; de saber que no verso
desembarca/ apenas a prosa dessas coisas arcas/ o que no menino se salva do
olvido).
Como visto, o poema abunda em versos, passagens e trechos da
mais alta qualidade. A partir da seção intitulada Trem-metáfora, porém, algum
leitor, como eu, poderá notar que, embora a qualidade da versificação não
decaia, ocorre uma paralisação do desenvolvimento já circular (à semelhança do
ouroboro) dos temas do poema: passa-se, a partir desse ponto, a uma
revisitação, quando não a uma explicação, de imagens e metáforas já vistas, até
revistas, no decorrer do poema. Algum leitor, como eu, notará que isso é
absolutamente desnecessário, chegando mesmo a comprometer, aos olhos mais
exigentes, o forte efeito que o poema teria causado até então. Outros
discordarão.
Agora, uma palavra a respeito do possível aspecto
autobiográfico do poema. Não me recordo se há algo no próprio texto que indique
isso, ou se colhi essa informação da curta exegese que o próprio autor faz do
poema em matéria que escreveu para a revista eletrônica Germina literatura
(veja a primeira nota de rodapé). Afirma o autor que Um dia, o trem, é uma ficção colhida, quando muito, de vagas
lembranças de uma infância que não teria envolvido de forma profunda o trem e
seus apêndices – estradas de ferro, estações –, não podendo ser chamada,
propriamente, de ferroviária. A esse respeito, seria interessante notar, se bem
leio certas passagens do poema e declarações do autor encontradas na internet,
que o próprio Fernando Fiorese tem a ficção e a imaginação – se entendermos
aquela como fruto desta – em alta conta (traço compartilhado com a épica/poética
de Homero). Em Um dia, o trem Fernando
Fiorese expressa essa noção ao comparar a viagem tranquila à prosa, e a estase
da espera anterior a uma possível partida ou o descarrilhamento à poesia, como
se esta derivasse sua maior potência e interesse de um flerte com o limiar, com
os extremos: ou da estase que permite a contemplação detida e estimula a mente
a imaginar as possibilidades/encontros que o périplo trará, ou do movimento
demasiado, que leva ao excesso de possibilidades e, finalmente, ao desastre, a
propósito do que se citem os últimos quatro versos do poema:
Aponta
a morte com o riso fácil
De
quem, com o que foi e o que deveria,
Reúne
em si duas margens e, à revelia,
Publica
aqui outra edição do desastre.
Por último
gostaria de chamar a atenção para o projeto gráfico do livro, de Antônio do
Amaral Rocha, desde a belíssima capa com ilustração de Paolo Meninchini, às ilustrações
presentes uma página par sim, outra não (em branco), com o texto ocorrendo na
página ímpar, fotografias de Jesualdo de Almeida Castro retratando objetos
ferroviários, como uma placa, saborosíssima em sua ironia, em que se pode ler
“É proibido transitar pela linha, multa 5$000”, todas extraídas do arcevo do
Museu Ferroviário de Juiz de Fora.
Em conclusão, a mim não restam dúvidas de que falamos aqui de um grande
poema, agora –após ter lido dezenas de vezes o livro que, à semelhança daquele
que Fernando Fiorese recebeu outrora de Fabrício Carpinejar para seu deleite
estético e tátil[8], recebi tão gentilmente do autor após contato via Facebook –, agora um
dos meus prediletos, objeto de deleite sem fim que resultou, entre outras
consequências, neste comentário crítico que não se quer objetivo, mas
comprometido e afetivo. Ao cabo da leitura de Um dia, o trem, ficará patente a qualquer bom leitor, ainda que seus padrões sejam os
mais altos, que ele definitivamente se encontra diante de trabalho muito maior
do que seria capaz um mero “escrevinhador de textos menores”.
Dito isso, e de tudo o que se disse, que fique o próprio
Fernando Fiorese com a última palavra (extraída do livro Aconselho-te crueldade):
Mas repetir tinha para o poeta propósitos menos ordinários e mais
farmacêuticos: manter o medo sob controle, aferrar-se à ordem tranqüilizadora
das coisas, degustar a fantasia de que seja possível endireitar as linhas do
destino conforme as ficções do passado. E principalmente, tal uma caricatura da
obra do Verbo divino, arrancar daquelas palavras — sempre iguais, sempre as
mesmas, mas repetidas até encontrar um sal de diferença —, arrancar delas um
corpo, aquele corpo anterior ao desastre, capaz de dizer-se sem paráfrases ou
citações.
(Originalmente publicado no Portal Musa Rara: http://www.musarara.com.br/)
[2]
Contagem do próprio autor em http://www.germinaliteratura.com.br/2009/ageneticadacoisa_fernandofiorese_out09.htm
[3] O
verbo foi escolhido a dedo: uma das metáforas-leitmotiv do temário de Fioresede emparelha o tecelão ao poeta, o
artesanato daquele à arte deste.
[4] Do
poema Brinde no banquete das musas
(Drummond, Antologia poética)
[5] Em entrevista a Maria Lúcia Outeiro Fernandes e Paulo
Andrade (O espanto originário: a poesia
por Iacyr Freitas e Fernando Fiorese), Fernando Fiorese responde a respeito
da relação mito e poesia:
A poesia
extrai a sua força da tensão imemorial e continuada entre mythos e logos, entre palavra mágica e signo racional,
entre acaso e cálculo. Se há algum vigor na minha obra, devo o mesmo ao
constante empenho em perseguir o arco que une tais forças antagônicas e
complementares.
[6]
Neste caso, penso em algo mais próximo, em clima, de Hermann und Dorothea de Goethe; numa espécie de último idílio mineiro, já algo entre
o pastoral e o industrial, representado pela imagem do trem cruzando o interior
– ainda – bucólico do estado, imagem que serviria de pivô, dada uma narrativa,
para o relacionamento de pai e filho.
[7] “Difícil acompanhar a mensagem geral
submersa em poemas, estrofes, versos, tudo a serviço de reminiscências e
valores subjetivos.” Fábio Lucas in A
poesia de Um dia, o trem, http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1117