Por Sérgio Tavares.
Todo mundo deveria ler Juan José Arreola para entender a literatura fantástica, principalmente porque não era o gênero que ele escrevia
Numa noite de
37, os confrades Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Simone Ocampo parolavam
sobre literatura fantástica. De maneira despretensiosa, quase recreativa, anotavam
num caderninho seus contos prediletos no gênero, lançando mão de um critério
validado unicamente pelo cruzamento do gosto pessoal. Pouco a pouco, a lista adquiria
corpo com uma estamparia de passagens vistas independentemente e breves
narrativas de nomes como Lewis Carroll, Franz Kafka, James Joyce, Guy de
Maupassant e H. G. Wells. Casares assim explica a escalação:
“Analisada sob um critério histórico ou geográfico, (a escolha) pareceria algo irregular. Não buscamos ou rechaçamos os nomes célebres. Era uma lista composta simplesmente pela reunião de textos da literatura fantástica que nos pareciam os melhores.”
Três anos
depois, numa aposta editorial, a tal lista do caderninho tornou-se o sumário da
mais representativa seleta de contos da literatura fantástica de todos os tempos;
para os mais devotos ao gênero, a “bíblia”. O êxito foi tamanho que, em 65, a antologia ganhou uma reedição acrescida
de textos de Julio Cortázar, Carlos Peralta e Elena Garro, entre outros. Essa
versão foi lançada por aqui, no final do ano passado, num projeto luxuoso da
Cosac Naify. Algo para se ter na prateleira e congratular-se todas as quartas-feiras
por isso.
Ocorre que,
como na maioria das listas, o relevo da ausência é mais sensível que o da presença.
Casares, na introdução da versão original, não se presta a justificar a exclusão
de autores do naipe de Ambrose Bierce e E. T. Hoffman, alegando, na linha
seguinte, falta de espaço para abrigar demais nomes.
E quanto a
Juan José Arreola?
Na metade dos
anos 60, o escritor mexicano era uma figura no proscênio do palco cultural
latino-americano, mantenedor da revista Mester e da coletânea Los presentes,
para a qual teve em mãos os primeiros contos de Cortázar e nada menos que o
original de Pedro Páramo, além de já ter publicado o soberbo Confabulário.
A que decisão, portanto, cabe a sua ausência: a deliberada ou a optativa?
Voltando à
introdução da antologia de 40, Casares elenca algumas características para que
um conto (e daí por diante) possa ser classificado como fantástico: 1) Explica-se
pela ação de um ser ou de um feito sobrenatural, 2) Tem explicação fantástica,
mas não sobrenatural, 3) Explica-se pela intervenção de um ser ou de um feito
sobrenatural, mas insinua também a possibilidade de uma explicação natural. Esforço-me
a acreditar que a resposta esteja aí. Embora sua prosa contenha lampejos do
verniz fantástico, o eixo temático dos seus escritos não apreende nenhuma das
naturezas supracitadas. Arreola escreve sobre os planos e os seres reais, sobre
o que há de mágico na massa plástica que adesiva a realidade. Tome-se, como
exemplo, o volume Bestiário.
Como é
notório, há alguns bestiários rondando pelas estepes literárias. Entretanto, ao
contrário dos unicórnios, das sereias, do Spider-master, do Bahamut, dos
centauros, das ninfas, do Collete, das mancúspias e do Wülkh, habitados em
Cortázar (Bestiário), Borges (O livro dos seres imaginários) e Flanders (Bestiaire
Fantastique), as bestas de Arreola são potenciais atrações de um zoológico
municipal. Não há qualquer manifestação de sobrenaturalidade no rinoceronte, no
elefante, na girafa ou no urso. O que se vê são descrições luminosas de animais
reais, que demonstram uma disposição incansável para o exame mais íntimo e
agudo dos traços singulares. Assim é o sapo:
“Salta, vez por outra, apenas para demonstrar sua estática fundamental. O salto possui a aparência do palpitar: bem observado, o sapo é todo coração.
Sob uma camada de lodo frio, submerge no inverno como uma pobre crisálida. Desperta na primavera, consciente de que nenhuma metamorfose se operou nele. É mais sapo do que nunca, em sua profunda dessecação. Aguarda em silêncio as primeiras chuvas.
E pesado de umidade, encharcado de seiva rancorosa, um belo dia emerge da terra mole, como um coração arremessado ao solo. E em sua atitude de esfinge há um secreto desejo de permuta: a fealdade do sapo nos sugere uma obsessiva qualidade de espelho.”
Mas quem é
Juan José Arreola, de fato?
Numa frase:
um autor imprescindível do século 20.
O caso é que
Arreola não é apenas um autor, é um estilo. Mestre da carpintaria do conto
curto, um artesão dotado de uma prosa que pede contínua frequentação, após o
início de sua primeira e assombrosa leitura. Nascido em 1918, em Jalisco,
México, Arreola nunca superou o ensino primário, aprendendo a ler “de ouvido” (convenço-me
que seja lenda). Ainda adolescente foi trabalhar como encadernador, de onde
extraiu a economia necessária para ir viver na Cidade do México, ingressando na
Escola Teatral de Bellas Artes, em 37. Lá integrou o grupo de teatro Poesia en
voz alta, de onde recolheu entusiasmo para fundar as publicações Cuadernos y libros
del unicornio, Mester, Los presentes e Pan, esta última em parceria com ninguém
menos que Juan Rulfo.
Em 41,
publicou seu primeiro texto, Sueño de navidad. Quatro anos depois, ganhou uma
bolsa para estudar em Paris, cujo distanciamento serviu de catalisador para seu
estilo único de escrita, solidado em Varia invención, de 49, uma colagem de
prosa e poesia. Com esse debute, conquistou o Prêmio Fundación Rockefeller. Em
52, sua obra-cervical Confabulário recebeu a premiação Jalisco de Literatura,
seguida do Prêmio do Festival Dramático do Instituto Nacional de Bellas Artes e
o Prêmio Xavier Villaurrutia. Há um episódio que combina jocosidade e prestígio
nesse período. Arreola viajou a Cuba a convite de Gabriel Garcia Márquez que,
ao apresentá-lo a Fidel Castro, disse: “Quero que conheça Juan José Arreola, o
escritor que mais gosto, depois de mim”.
Dando dois
saltos temporais em sua biografia, em 58, o escritor mexicano publicou Bestiário e, em 63, sua primeira novela, La feria, uma sobreposição de
vinhetas, lembranças, relatos e piadas acerca da imaginária cidade de Zaplotán,
localizada em Jalisco, que muito lembra o condado de Yoknapatawphe, inventado
por Faulkner, onde jaz o tronco familiar dos Compson. Todavia, a decisão mais
acertada de Arreola foi ter reunido seus breves volumes, de 41 a 61, num tomo chamado de Confabulário
total (ou Confabulario definitivo).
Esse é, sem dúvida, o zênite de sua criação.
Composta pelos capítulos Confabulário, Vária invenção, A hora de todos,
Bestiário e Prosódia (confira, ao fim do artigo, dois textos dessa coleção),
a obra é uma mescla de vários gêneros literários: o relato, o ensaio e a
poesia, cujas influências vão de Kafka a Borges, de Baudelaire aos pensadores
gregos. Arreola transforma a língua numa criação coletiva de um único
indivíduo. Um mosaico conformado por apontamentos aforísticos, radiação
poética, exercícios de ensaios e clímax súbito da narrativa romanesca.
Borges, certa
vez, declarou que todos os escritores fazem apenas um livro na vida. Confabulário total é a prova concreta disso. Um universo incomparável, com
contornos severamente polidos que, sob o respirar da leitura, parecem adquirir musicalidade.
Para a citação que introduz o livro, Arreola pinçou um verso do compatriota
poeta modernista Carlos Pellicer: “... mudo contemplo enquanto alguém voraz me
observa”. A iminência de algo insaciável talvez explique a obsessão do escritor
em encontrar a página perfeita. Mudos (e maravilhados), contemplamos Arreola.
O encontro
Dois pontos
que se atraem não têm por que seguir forçosamente uma linha reta. Sem dúvida, é
o caminho mais curto. Há, no entanto, os que preferem o infinito.
As pessoas
caem umas nos braços das outras sem delinear a aventura. Quando muito, avançam
num ziguezague. Mas, uma vez no rumo certo, corrigem o desvio e se juntam. Amor
tão repentino representa um choque, e aqueles que assim se defrontarem são devolvidos
ao ponto de partida como por efeito de um disparo. Projetados violentamente,
sua trajetória de retorno os incrusta novamente, canhão adentro, num cartucho
sem pólvora.
Vez por
outra, um par se afasta desta regra invariável. Seu propósito é francamente
linear, não carece de retidão prévia. Misteriosamente, escolhem o labirinto.
Não podem viver separados. Esta é a única certeza que os possui, e terminam
perdendo-a ao se procurarem. Quando um deles erra e marca o encontro, o outro
finge não perceber e passa sem cumprimentar.
Liberdade
Acabo de
proclamar a independência dos meus atos. À cerimônia compareceram apenas alguns
desejos insatisfeitos, duas ou três atitudes condenáveis. Um propósito
nobilitante, que prometera aparecer, enviou à última hora sua escusa humilde. A
cena transcorreu num silêncio pavoroso. Creio que o erro esteve na proclamação
ruidosa: trombetas e sinos, foguetes e tambores. E, para culminar, uma
engenhosa queima de moral pirotécnica, que não chegou a arder de todo. No final
das contas, achei-me sozinho comigo mesmo. Despojado de todos os atributos de
caudilho, os confins da noite me encontraram empenhado na simples tarefa de
escritório. Com os últimos restos de heroísmo, atirei-me à penosa incumbência
de redigir os artigos de uma extensa constituição, que amanhã submeterei à assembleia-geral.
O trabalho divertiu-me um pouco, apagando do meu espírito a triste impressão do
fracasso. Leves e insidiosos pensamentos de rebeldia voam como mariposas noturnas
em volta da lâmpada, enquanto sobre os escombros de minha prosa jurídica passa,
de quando em vez, um tênue sopro da marselhesa.