Por Sérgio Tavares.
O escritor fala sobre os meandros do movimento literário, o panorama atual da literatura brasileira e Sr. Bergier & outras histórias, seleta de contos que ganha resenha exclusiva
O escritor fala sobre os meandros do movimento literário, o panorama atual da literatura brasileira e Sr. Bergier & outras histórias, seleta de contos que ganha resenha exclusiva
Não custa, numa dessas pautas frias que grassam nos cadernos
literários, o editor se virar para o mercado editorial e indagar: ‘A quanto
anda a literatura brasileira?’.
A resposta não vai muito além do lead. Logo se abrem aspas,
e um conhecedor de causa irá afirmar que a literatura brasileira atual é uma variedade
de vozes, uma babel que fala a plenos pulmões com o presente e o futuro, que
dubla tendências pregressas, que atinge tonalidades fora das mediações regionais,
onde deslinda a urbe, o ethos, o mundo polifônico que, mesmo num preguiçoso
crescendo, parece entender e responder.
Ocorre que essas vozes não estão num mesmo compasso. As que
falam mais alto no momento, assim diria o mesmo conhecedor de causa, dialogam
com a autoficção. Não faz muito tempo, imperavam as que retratavam o realismo
urbano, centrado no binômio violência e sexo. Há ainda as memorialistas e as
metaficcionais. Outras, no entanto, de tão tímidas, parecem mudas. São múrmuros
infrequentes que, domados por pudor, tentam se comunicar com o realismo
fantástico.
Mas o que há com o movimento que tem em seu patamar-real o
mineiro Murilo Rubião, para se tornar uma seara desinteressante para grande
parte dos escritores brasileiros na ativa?
Escrever literatura fantástica não é fácil, talvez vá por aí
a explicação. Um autor de literatura fantástica tem de ter, na tessitura
artística, o controle absoluto sobre o plano real e o sobrenatural. Dispor de
perícia para tratar a banalidade tal qual uma argamassa de revestir fachadas,
uma aparente normalidade que abriga a substância pegajosa do absurdo, uma
geleia iodada que se infiltra nas fissuras do cotidiano, provocando a fratura
das modalidades naturais, o enfrentamento ao inexplicável. Se assim não o
for, esse autor corre o risco do fracasso ou do mais inglório pastiche. E
escritor é sobremaneira presunçoso para conviver com um desses fins impresso
no cartão de visita.
A sorte da literatura brasileira é que há os que se
aventuram sem medo. E, fortuitamente, triunfam. Basta a leitura de Sr.
Bergier, conto que inicia e empresta nome à antologia Sr. Bergier &
outras histórias (Rubra Cartoneira Editorial, 2013), de Anderson Fonseca, para
se perceber a intimidade para com os meandros onde viceja o fantástico e,
sobretudo, o valor emocional que isso carrega. A narrativa, estruturada no
formato epistolar, descreve a desgraça de um homem que desenvolve um
experimento de onde materializa um duplo de si, uma versão antagônica que lhe
vampiriza a energia à medida que assume seu posto social. Essa breve descrição
já estabelece conexões com histórias famosas do gênero, demonstrando a profundidade
do olhar afetivo com que o autor vasculha e excursiona pela literatura
fantástica. Fonseca não promove um tributo, mas oferece ao leitor pequenos novos
quadros que transcorrem dentro de uma moldura clássica.
Desse modo, os contos trazem não só incidências do universo
sobrenatural, mas capturam nuances e elementos específicos de obras exemplares.
Um homem se vinga de uma cidade com um esquadrão de corvos, um bibliotecário se
percebe consumido pelos livros, uma incursão onírica tem como desfecho um
assassinato. Se você não pescou ao menos uma dessas referências, é melhor deixar
esse artigo agora e googlear uma dessas listas dos 100 títulos
essenciais da literatura mundial.
Outros aspectos vão além da matéria literária, como a presença de epígrafes bíblicas no cabeçalho das páginas, uso característico dos contos do mineiro Murilo Rubião. A propósito, se há uma sombra delineada sobre a coletânea, esta é a bem fornida do autor de Teleco, o coelhinho.
Outros aspectos vão além da matéria literária, como a presença de epígrafes bíblicas no cabeçalho das páginas, uso característico dos contos do mineiro Murilo Rubião. A propósito, se há uma sombra delineada sobre a coletânea, esta é a bem fornida do autor de Teleco, o coelhinho.
Tal como Rubião, Fonseca é um reescrevedor. É notável o
apuro para com a eleição das palavras, o lento refinamento do texto para se
alcançar o resultado clarificado. Uma disposição que redunda numa prosa fluente,
enxuta e impregnada de lirismo expondo a própria carpintaria do conto. Prova
disso é o brevíssimo (e precioso) Pétala, que encerra a antologia, onde a
tragicidade é envolvida por uma atmosfera de delicadeza que muito lembra as
narrativas Petúnia e Botão-de-rosa, de Rubião. Fazendo alusão à célebre
analogia proposta por Julio Cortázar, o conto fantástico arrebata em baixa
voltagem.
É do escritor argentino, aliás, uma das melhores descrições
do encontro com o sobrenatural, contida no pequeno artigo Do sentimento do
fantástico, parte do volume de ensaios Valise de cronópios:
'O fantástico força uma crosta aparente, e por isso lembra o ponto vélico; há algo que encosta o ombro para nos tirar dos eixos. Sempre soube que as grandes surpresas nos esperam ali onde tivermos aprendido por fim a não nos surpreender com nada, entendendo por isto não nos escandalizarmos diante das rupturas da ordem. Os únicos que creem verdadeiramente nos fantasmas são os próprios fantasmas'.
Ao exemplo de Cortázar, Fonseca mostra que não é preciso ter medo da literatura fantástica. É preciso talento.
'O fantástico força uma crosta aparente, e por isso lembra o ponto vélico; há algo que encosta o ombro para nos tirar dos eixos. Sempre soube que as grandes surpresas nos esperam ali onde tivermos aprendido por fim a não nos surpreender com nada, entendendo por isto não nos escandalizarmos diante das rupturas da ordem. Os únicos que creem verdadeiramente nos fantasmas são os próprios fantasmas'.
Ao exemplo de Cortázar, Fonseca mostra que não é preciso ter medo da literatura fantástica. É preciso talento.
Entrevista: Anderson Fonseca
‘O conto faz parte da tradição oral do homem’
A literatura brasileira feita na última década dá sinais de
estar intransferivelmente ancorada no realismo urbano. Em Sr. Bergier & outras
histórias há referências claras às narrativas produzidas no século XIX, onde
são explorados a perplexidade diante de um fato extraordinário, a hesitação
entre o racional e o devaneio, o acatamento ao sobrenatural. Nesse caso,
pode-se afirmar que a sua antologia é uma ave rara ou um intruso?
Um intruso. A visão positivista que adentrou as letras
portuguesas, depois da carta de Pero Vaz de Caminha, ainda se mantém viva -
acho isso cancerígeno. Admiro as letras hispânicas, pois o fantástico faz parte
da língua, e surge de uma admiração. A língua portuguesa busca, desde o século
XVI, analisar sob uma ótica cientifica a realidade que a circunda. Literatura e
Teologia são os dois lados de uma mesma moeda. Assim, quando me indaga se minha
antologia é um intruso ou ave rara, digo ser ela um intruso, justamente pela
língua portuguesa ainda estranhar o maravilhoso nos meandros da construção
literária. Exemplo desse estranhamento é Murilo Rubião, uma joia no meio de
tantas pedras brutas. Apesar de hoje
observamos um movimento “surrealista” na literatura, é tímido. Eu repugno qualquer tentativa de converter a
literatura em uma ciência. A decadência da Teologia inicia-se com sua busca em
ser uma ciência do divino, o mesmo erro cai a Literatura quando tenta explicar
de modo objetivo uma criação subjetiva.
Ao mencionar o mineiro Murilo Rubião, contista por
excelência, você traz à tona o atrito entre o gênero e o mercado editorial
brasileiro. 'Conto não vende' virou uma frase-pronta, um pré-requisito para
desprezar um original. Tem quem diga que o escritor que debuta com uma antologia
está fadado ao fracasso. Ocorre que, desde que a escritora canadense Alice
Munro foi laureada com o Nobel de Literatura, no ano passado, há um movimento partidário
ao gênero, artigos publicados em jornais prestigiando as breves narrativas e
alguns lançamentos digitais, a exemplo da revista Flaubert, na qual você tem
o papel de editor. Como vê esse momento? É puro hype ou tem fôlego para
produzir um efeito significativo?
Acho bom ver revistas como a Flaubert resgatarem o valor que
merece o gênero conto, lamento que seja tão tardio. Lamento também que seja
necessário um prêmio para resgatar esse valor, visto que o conto faz parte da
tradição oral do homem. Histórias como as da Bíblia e as lendas indígenas são
breves narrativas que conservam uma cultura, e antes de serem escritas eram
narrativas orais. O Romance surge logo após a invenção da imprensa, enquanto,
antes dele, já existia o conto. Se o conto perdeu sua força deve-se à cultura
de massa, o que é natural. Eu tenho a esperança de que essa onda se fixe entre
as marés, e não seja apenas uma crista que em seguida desaparece no oceano.
A antecedência do conto ao romance dá margem a ideia comumente propagada de que as breves narrativas ofereceriam ferramentas linguísticas
necessárias para o autor almejar algo mais vultuoso, uma narrativa longa e
robusta. O que acha disso? Contos são degraus para o romance ou estamos diante
de terrenos distintos, que cobram técnicas e ferramentas peculiares para frutificar?
Sem dúvida, o conto e o romance são gêneros distintos com
técnicas claramente distinguíveis. Às vezes, entretanto, acontece do escritor
publicar um conto como romance, ou, um romance como conto. Isso se deve ao fato de não conhecer as
técnicas de cada gênero. Justamente aí, talvez, encontra-se o fracasso de
algumas obras. Autores como Horácio Quiroga e Jorge Luís Borges, jamais
escreveram um romance. Mas sou um homem sem muitas certezas, e não sei se
deixaria de me arriscar a escrever um romance como fez Borges.
Voltando ao Sr. Bergier & outras histórias, é evidente
o valor afetivo com que você trata a matéria que constitui seus contos, como se
escrevesse, antes de tudo, para si próprio. O quanto de preocupação com o
futuro leitor deve conter no processo criativo?
Quando escrevo não penso muito no leitor, preocupa-me mais a
história e o que desejo transmitir através dela. Por causa disso, levo meses
trabalhando em apenas uma narrativa. Nem sempre fico satisfeito, aliás, nunca
estou. E eu só concluo uma história quando sinto que nada mais tenho a dizer.
Além de escritor, você é crítico e consultor literário.
Nesse novo mercado editorial em que jovens estreantes são alçados à condição
incontestável de gênio, que conselho daria para alguém que realmente deseja se
tornar um escritor de carreira?
Primeiro: não escreva pensando em leitores, escreva para si
e seus personagens. Escreva como se você fizesse parte da história. Segundo:
Trabalhe a palavra até a exaustão. Escrever bem não é cortar palavras, é
colocá-las sem excesso e sem falta. Terceiro: Não escreva no calor da emoção,
deixe-a morrer. Reflita o que sentiu, e depois escreva. Quarto: Procure a frase
que marcará o inicio de sua narrativa. Quinto: Depois de pronto o livro apresente
a um leitor crítico e um revisor. Sexto: Revisado o livro, envio-o a um agente
literário. Sétimo: Depois de publicado o livro, trabalhe na divulgação da obra.
Não pense que isso é trabalho apenas da editora, é seu também.
... Esqueça o que eu disse. Nenhum conselho vale a pena.