Conto de Ronaldo Cagiano.
Entre a realidade e o sonho
Entre a realidade e o sonho
a
diferença é apenas mecânica.
Miguel
Ángel Astúrias
“Sr.
Presidente”
As lembranças
daquele dezesseis de julho de cinquenta num Maracanã opulento e silenciado pela
bomba de Gigghia parecia não abandonar Vander. Efervescentes, como terríveis
miasmas que emanavam de algum pântano, os cadáveres de Paolo Rossi, Michel
Platini e Zidane, carrascos insepultos de outras copas, aqueles pênaltis
perdidos por Zico e Sócrates, o vacilo de Toninho Cerezo, passe errado deixando
escapar a bola fatal no pé do adversário rumo a mais uma derrocada, tantas
carusmas do passado soprados novamente naquele domingo do Varjão, ciceroneando
os piores momentos de uma agonia recalcitrante. Mas o tilintar dos copos, a
cerveja mofada servida no bar do João Capeta e a moçada antecipando a festa nas
ruas, tudo reverberava na madrugada, à espera do apito final do outro lado do
Atlântico.
Como sempre
fazia em todas as grandes decisões do Corinthians, repetiria o mesmo ritual:
uma vela pra Nossa Senhora Aparecida e outra pra Ogum. Ao mesmo tempo em que adulava o Vaticano,
reverenciava Mãe Menininha do Gantois. A mandinga já estava preparada, o hexa
no papo. Pensava em setenta, quando ainda com nove anos, fora despertado pelos
fogos de artifício de seu Leôncio, que o retirou, num frio junho, do jogo de
botão com os meninos da dona Cidinha e do seu Tõe, para subirem até o morro da
torre de televisão em Cataguases, onde comemoraram a conquista definitiva taça
Jules Rimet. Dia inesquecível em que empunhou pela primeira vez um foguete trepado
num fé-ne-mê e viu seu estrondo ecoar por toda a cidade.
Dos jogos que em
mais de quarenta anos acompanhou — desde as narrações de Geraldo José de
Almeida, em seu radinho de pilha no porão úmido em que passou a adolescência às
margens do ribeirão Meia-Pataca, até os espetáculos cinematográficos das
transmissões da telona — respingavam em sua cabeça aqueles flashes de profunda
agonia. Não, não, não, ele repetia dentro de si, como no indesejado 2 x 1, uma
final que parecia repetir o fiasco de 50 diante do Uruguai, para luto de uma
plateia estarrecida, aos trinta e quatro do segundo tempo.
Quarenta e três do
segundo tempo, diante de um estádio completamente energizado por mais uma final
Brasil x Itália, o terceiro na carreira da seleção brasileira em uma decisão,
sem contar a frustração da seleção telesca de 82, a campeã do futebol arte,
que ele ouviu tantas vezes pronunciarem como prêmio de consolação ou saída
honrosa para os milhões de técnicos que culpavam a ausência de um ponta. Não
cabia em si nos derradeiros instantes. E se Júlio César falhasse como Barbosa?
E se um empate levasse à prorrogação e a decisão fosse por pênaltis,
ressuscitando um Zico ou um Baggio perdendo a oportunidade diante do gol? Como num
filme de Win Wenders. Como naqueles dias em que, disputando uma final contra o
Operário F.C. , como center four improvisado no dente-de-leite do Manufatora
E.C., ouviu a charanga provocativa bradar das arquibancadas no campo do
adversário:
É canja, é
canja de galinha
arranja outro
time
pra jogar com
a nossa linha!
Tudo
baralhava naquela madrugada entre escombros no morro sitiado e no seu íntimo
rebobinavam velhos fantasmas: a epilepsia bissexta de Ronaldo, a catatonia de
Roberto Carlos ajeitando a meia nas quartas de final na Alemanha, a mancada de
Cerezo na Espanha, as maracutaias de 78 que roubaram a taça do Brasil na
Argentina e o reduziram a vencedor moral, num campeonato para hermano nenhum
botar defeito.
Já agonizava o
relógio de Armin Mobarak, o árbitro persa. Alguns minutos mais e Vander ouviria
a histriônica algaravia de Galvão Bueno, ao lado de Pelé e Casagrande na cabine
de transmissão é hexa! é hexa! é
hexa! ensurdecendo a cidade, e os milhões de litros de cerveja inebriando a
pátria em chuteiras e o feriado na segunda-feira, e ao vivo a tevê acompanhando
a caravana até o Galeão para esperar Dunga e seus heróis, e os campeões subindo
a rampa do Palácio do Planalto para as honras de praxe em ano de eleição.
Eeeeeeeeerrrrrrrrrrrrrrrrgue os braços esse que veio do país de Ahmadinejad,
galvaniza o locutor. Acabou! Acabou! Acabou! É do Brasil! É do Brasil! Mandela
é brasileiro! A taça é nossa! — explodia dentro dele o ensurdecedor grito do
locutor que, da tribuna do Soccer City, em Johanesburgo, abraçado ao Rei e a
Lula, extrapolava o grito interrompido na garganta pelos dois a zero da França
em 2006, agora reconvertido em dádiva na madrugada brasileira que trazia
consigo o sol escaldante da tarde pós-apartheid.
Despertou num
átimo, entre foguetes que espocavam tímidos num dos lados do morro. Sem
entender o silêncio, as ruas desertas, os becos quase apagados e sem movimento,
contrastando com a zoeira que emergia daquela extravagante pirotecnia, num sono
que não foi desperto pelo espetáculo da comemoração, ele acordou o neto (filho
da sua primogênita Neide, mãe solteira) e quis levá-lo à porta, para saírem em carreata. A filha já
estava de pé, preparando-se desde as cinco da matina para o trabalho, tinha que
sair cedo para começar mais uma jornada de diarista, fazendo o longo calvário
do transporte para sair da zona Leste até os Jardins. Espreguiçou, coçou os
olhos, retirou a remela dos cantos. Olhou, não viu os carros. Não viu ninguém.
Na mesa, os destroços da tarde anterior, que parecia tão longe, e que ele dividira
com o Tobias, o Adão e o Celestino, o pessoal que o tinha ajudado a bater lage
de um puxadinho que ele fez nos fundos, naquele sábado. A mulher já estava no
quintal estendendo a roupa, quando ele apareceu na porta, pra onde vai,
Vandico? E ele recebeu na cara os respingos do lençol que ela esticava no
varal, voltou-se para o fogão, tomou um gole de café e olhou a folhinha do
Sagrado Coração de Jesus. Maio agonizava. Os fogos da madrugada repetiram de
novo naquela manhã povoada de cerração. Vinham do outro lado da favela a senha
do 3º Comando, anunciando a chegada da mercadoria.
Poucos dias depois, num
fatídico dez de julho, a Holanda despacharia os canarinhos, que atravessariam o
Atlântico com uma mão na frente e outra atrás, acordando-o do sono interrompido
pelos fogos de outros combates.