12 de junho de 2014

Fogos-fátuos

Conto de Ronaldo Cagiano.




Entre a realidade e o sonho
a diferença é apenas mecânica.
Miguel Ángel Astúrias
“Sr. Presidente

  As lembranças daquele dezesseis de julho de cinquenta num Maracanã opulento e silenciado pela bomba de Gigghia parecia não abandonar Vander. Efervescentes, como terríveis miasmas que emanavam de algum pântano, os cadáveres de Paolo Rossi, Michel Platini e Zidane, carrascos insepultos de outras copas, aqueles pênaltis perdidos por Zico e Sócrates, o vacilo de Toninho Cerezo, passe errado deixando escapar a bola fatal no pé do adversário rumo a mais uma derrocada, tantas carusmas do passado soprados novamente naquele domingo do Varjão, ciceroneando os piores momentos de uma agonia recalcitrante. Mas o tilintar dos copos, a cerveja mofada servida no bar do João Capeta e a moçada antecipando a festa nas ruas, tudo reverberava na madrugada, à espera do apito final do outro lado do Atlântico.
  Como sempre fazia em todas as grandes decisões do Corinthians, repetiria o mesmo ritual: uma vela pra Nossa Senhora Aparecida e outra pra Ogum.  Ao mesmo tempo em que adulava o Vaticano, reverenciava Mãe Menininha do Gantois. A mandinga já estava preparada, o hexa no papo. Pensava em setenta, quando ainda com nove anos, fora despertado pelos fogos de artifício de seu Leôncio, que o retirou, num frio junho, do jogo de botão com os meninos da dona Cidinha e do seu Tõe, para subirem até o morro da torre de televisão em Cataguases, onde comemoraram a conquista definitiva taça Jules Rimet. Dia inesquecível em que empunhou pela primeira vez um foguete trepado num fé-ne-mê e viu seu estrondo ecoar por toda a cidade.
  Dos jogos que em mais de quarenta anos acompanhou — desde as narrações de Geraldo José de Almeida, em seu radinho de pilha no porão úmido em que passou a adolescência às margens do ribeirão Meia-Pataca, até os espetáculos cinematográficos das transmissões da telona — respingavam em sua cabeça aqueles flashes de profunda agonia. Não, não, não, ele repetia dentro de si, como no indesejado 2 x 1, uma final que parecia repetir o fiasco de 50 diante do Uruguai, para luto de uma plateia estarrecida, aos trinta e quatro do segundo tempo.
  Quarenta e três do segundo tempo, diante de um estádio completamente energizado por mais uma final Brasil x Itália, o terceiro na carreira da seleção brasileira em uma decisão, sem contar a frustração da seleção telesca de 82, a campeã do futebol arte, que ele ouviu tantas vezes pronunciarem como prêmio de consolação ou saída honrosa para os milhões de técnicos que culpavam a ausência de um ponta. Não cabia em si nos derradeiros instantes. E se Júlio César falhasse como Barbosa? E se um empate levasse à prorrogação e a decisão fosse por pênaltis, ressuscitando um Zico ou um Baggio perdendo a oportunidade diante do gol? Como num filme de Win Wenders. Como naqueles dias em que, disputando uma final contra o Operário F.C. , como center four improvisado no dente-de-leite do Manufatora E.C., ouviu a charanga provocativa bradar das arquibancadas no campo do adversário:
                                  
                                   É canja, é canja de galinha
                                   arranja outro time
                                   pra jogar com a nossa linha!

  Tudo baralhava naquela madrugada entre escombros no morro sitiado e no seu íntimo rebobinavam velhos fantasmas: a epilepsia bissexta de Ronaldo, a catatonia de Roberto Carlos ajeitando a meia nas quartas de final na Alemanha, a mancada de Cerezo na Espanha, as maracutaias de 78 que roubaram a taça do Brasil na Argentina e o reduziram a vencedor moral, num campeonato para hermano nenhum botar defeito.
  Já agonizava o relógio de Armin Mobarak, o árbitro persa. Alguns minutos mais e Vander ouviria a histriônica algaravia de Galvão Bueno, ao lado de Pelé e Casagrande na cabine de transmissão  é hexa! é hexa! é hexa! ensurdecendo a cidade, e os milhões de litros de cerveja inebriando a pátria em chuteiras e o feriado na segunda-feira, e ao vivo a tevê acompanhando a caravana até o Galeão para esperar Dunga e seus heróis, e os campeões subindo a rampa do Palácio do Planalto para as honras de praxe em ano de eleição.
  Eeeeeeeeerrrrrrrrrrrrrrrrgue os braços esse que veio do país de Ahmadinejad, galvaniza o locutor. Acabou! Acabou! Acabou! É do Brasil! É do Brasil! Mandela é brasileiro! A taça é nossa! — explodia dentro dele o ensurdecedor grito do locutor que, da tribuna do Soccer City, em Johanesburgo, abraçado ao Rei e a Lula, extrapolava o grito interrompido na garganta pelos dois a zero da França em 2006, agora reconvertido em dádiva na madrugada brasileira que trazia consigo o sol escaldante da tarde pós-apartheid.
  Despertou num átimo, entre foguetes que espocavam tímidos num dos lados do morro. Sem entender o silêncio, as ruas desertas, os becos quase apagados e sem movimento, contrastando com a zoeira que emergia daquela extravagante pirotecnia, num sono que não foi desperto pelo espetáculo da comemoração, ele acordou o neto (filho da sua primogênita Neide, mãe solteira) e quis levá-lo à porta, para saírem em carreata. A filha já estava de pé, preparando-se desde as cinco da matina para o trabalho, tinha que sair cedo para começar mais uma jornada de diarista, fazendo o longo calvário do transporte para sair da zona Leste até os Jardins. Espreguiçou, coçou os olhos, retirou a remela dos cantos. Olhou, não viu os carros. Não viu ninguém. Na mesa, os destroços da tarde anterior, que parecia tão longe, e que ele dividira com o Tobias, o Adão e o Celestino, o pessoal que o tinha ajudado a bater lage de um puxadinho que ele fez nos fundos, naquele sábado. A mulher já estava no quintal estendendo a roupa, quando ele apareceu na porta, pra onde vai, Vandico? E ele recebeu na cara os respingos do lençol que ela esticava no varal, voltou-se para o fogão, tomou um gole de café e olhou a folhinha do Sagrado Coração de Jesus. Maio agonizava. Os fogos da madrugada repetiram de novo naquela manhã povoada de cerração. Vinham do outro lado da favela a senha do 3º Comando, anunciando a chegada da mercadoria.

  Poucos dias depois, num fatídico dez de julho, a Holanda despacharia os canarinhos, que atravessariam o Atlântico com uma mão na frente e outra atrás, acordando-o do sono interrompido pelos fogos de outros combates.