Por Paulo Ferraz.
Há alguns meses circulou a notícia de um inusitado assassinato na Rússia, um professor teria matado a um colega por este haver dito que a prosa seria superior à poesia. Por mais torpe ou pitoresca que se apresente para nós tal conduta, tanto que serviu para todo tipo de chiste, aparentemente não chega a ser inusitado que esse crime literário tenha se dado na Rússia, sobre a qual já se disse o seguinte: Por que você está reclamando? Só entre nós a poesia é respeitada. Aqui mata-se por ela. Só entre nós. Em nenhum outro lugar.
O autor da frase
teria sido o poeta Óssip Mandelstam, cuja ironia, mais que uma constatação do
terror vivido por seus companheiros de geração, acabou se mostrando uma espécie
de premonição, pois seu destino por alguns anos esteve sujeito aos caprichos de
Iosif Stalin, o qual – além de eliminar dissidentes e deportar populações
inteiras, não sendo necessário para tais atos mais que sua mera desconfiança –
mantinha uma bizarra relação com artistas soviéticos, atraindo uns para seu
séquito, desde que estes fossem gênios devotados a sua causa, ou condenando
outros ao ostracismo, à miséria ou à morte pura e simples. Seu interesse pela
arte era um eco bastante degenerado do adolescente que cantava no coro e
escrevia poemas em georgiano.
O fato é que
Stalin não precisava de muitas desculpas para perseguir quem quer que fosse,
mas Mandelstam lhe ofereceu um motivo ao regressar de uma viagem à Armênia: um
poema, hoje conhecido como “Epigrama contra Stalin” ou “O montês do Kremlin”,
que, embora não publicado, fora declamado entre seu círculo mais próximo de
amigos, no qual expressava seu descontentamento com os rumos da revolução
soviética e traçava um satírico retrato do veterano e rústico bolchevique georgiano,
no poema chamado de montês e osseta, que conquistara o Kremlin com
seu bigode de barata.
Nesses primeiros
anos da década de 1930, Stalin ainda não tinha dado início à fase mais doentia
de suas execuções, conhecida como o grande expurgo, mas já se mostrara
bastante intolerante quanto a qualquer obstáculo em seu projeto, o que incluía
não apenas afastar eventuais adversários, mesmo os parceiros mais íntimos, mas
também confiscar a produção de grãos da Ucrânia, cujas conseqüências incluem a
morte de alguns milhões de ucranianos, tragédia que teria sido presenciada por
Mandelstam, quando fora de visita à Criméia. A revolução que não havia poupado
a maior parte de seus opositores (monarquistas, liberais ou mencheviques),
agora se voltava contra aqueles que a fizeram ou nela engajaram com fervor. Era
o princípio do terror stalinista, por isso Boris Pasternak, ao ouvir a
declamação de Mandelstam, teria dito que seu texto não era um poema, mas um ato
suicida, do qual ele não iria participar. Pasternak e Anna Akhmatova teriam
aconselhado Mandelstam a esquecer o poema e não mais declamá-lo, mas já era
tarde, pois o Estado policialesco já estava montado e atuante, com informantes
infiltrados em todos os meios.
Mandelstam foi
feito de gato e sapato por Stalin, que após ouvir intermediários como Nikolai
Bukharin e Pasternak (a este teria perguntado, mas ele é um gênio, não é?) decidiu por humilhá-lo no corpo e na
alma, determinando que fosse isolado, mas
mantido vivo. Seu martírio durou quase cinco anos. Após sua prisão em maio
de 1934, foi primeiro exilado nos Urais, onde ficou por três anos sobrevivendo
com a ajuda dos amigos que o haviam aconselhado a não seguir com a aventura
literária. Em janeiro de 1937, numa tentativa inútil de clemência, indício de
que emocionalmente já se encontrava abalado, Mandelstam escreve uma ode ao Pai dos Povos, cuja falta de sinceridade
é gritante, tanto que não impressionou nem mesmo o homenageado sempre ávido
pelo culto à sua personalidade, mas um panegírico de elogios grandiloquentes e
a lembrança de um Cáucaso helênico não seriam suficientes para poupá-lo, justo
pelo contrário. Por fim, mesmo tendo cumprido integralmente seu exílio, é
novamente julgado em maio de 1938 e sentenciado a outros cinco anos de
trabalhos forçados por atividade
contrarrevolucionária. Os anos de exílio e vigilância minaram suas forças e
sua sanidade a tal ponto que enviado para o gulag
mal resistiu à longa viagem transiberiana, morrendo possivelmente em 27 de
dezembro logo após sua chegada no campo de trânsito de Vtoraya Rechka, nas
proximidades de Vladivostok, no extremo oriente.
O regime e o
ditador dos dedos como grossas e gordas
larvas não mais se importavam se era ou não um gênio, morto era apenas mais
um cadáver a ser lançado numa vala comum, sem direito a qualquer identificação,
impondo-lhe assim uma nova pena, o esquecimento. A dúvida de Stalin mas ele é um gênio, não é? finalmente
seria sanada, sim, era um gênio e seu nome e sua poesia venceu o silêncio,
especialmente graças ao Epigrama, um
dos raros gestos que ousaram desafiar um modelo de estado que na fachada
pregava o progresso da sociedade mas nos seus porões desprezava toda e qualquer
manifestação de individualidade. Traduzi-lo agora é manter viva sua ousadia.
Sem sentir o
país sob os pés, vivemos,
Nossa fala é
contida e sem extremos.
Mas onde quer
que se cochiche apenas
O montês do
Kremlin entrará em cena.
Seus dedos são
grossas e gordas larvas
Mas certas,
feito o aço, são suas palavras.
O bigode é uma
risonha barata
Enquanto o brilho
da bota arrebata.
Em meio a uma
horda de pescoços finos,
Negaceia com
favores aos cretinos.
Quem assobia,
quem mia, quem choraminga,
Ele escolhe,
balbucia e deixa à míngua.
Como ferraduras
faz seus decretos,
Vai na virilha,
no olho, no esqueleto,
Lembra execução,
mas é uma festa
Que alegra seu
largo busto de osseta.
Novembro, 1933
Мы живем, под
собою не чуя страны,
Наши речи за
десять шагов не слышны,
А где хватит на
полразговорца,
Там припомнят
кремлевского горца.
Его толстые
пальцы, как черви, жирны,
И слова, как
пудовые гири, верны,
Тараканьи
смеются глазища
И сияют его
голенища.
А вокруг него
сброд тонкошеих вождей,
Он играет
услугами полулюдей.
Кто свистит, кто
мяучит, кто хнычет,
Он один лишь
бабачит и тычет.
Как подкову,
дарит за указом указ —
Кому в пах, кому
в лоб, кому в бровь, кому в глаз
Что ни казнь у
него — то малина
И широкая грудь
осетина.
Ноябрь 1933