31 de julho de 2014

Ariano Suassuna por Samarone Lima


O jornalista e escritor Samarone Lima, assessor de imprensa do mestre Ariano Suassuna, o acompanhou durante os cinco últimos anos de vida. Em entrevista ao Correio Braziliense, relata o despojamento completo do autor paraibano e como ele conseguia transformar a vida de quem estava por perto. “Mesmo em silêncio, porque seus gestos sempre eram profundos”, lembra Samarone, que trabalha atualmente num livro sobre as aulas-espetáculos de Ariano. Sobre o Jumento sedutor, livro que Ariano estava escrevendo há mais de 30 anos, Samarone diz que, ultimamente, o escritor não tocava no assunto. “Ele tinha deixado de falar porque toda entrevista queriam saber se tinha terminado”.

Você é escritor, apaixonado por literatura, e teve a oportunidade de conviver com
Ariano Suassuna nos seus últimos cinco anos de vida. Imagino que as conversas sobre literatura e seus personagens eram frequentes. Que memória você guarda dessas conversas?


Eram conversas maravilhosas. Quando tinha alguns pedidos de entrevista eu
levava numa pastinha e resolvíamos com uma certa facilidade, já que ele não tinha
como atender tudo que pediam. Depois disso, bastava eu perguntar sobre o livro
que ele estava lendo, que seus olhos brilhavam. Era uma felicidade.


Ariano costumava conceder muitas entrevistas. Ele ainda tinha paciência para jornalistas? 

Era uma relação difícil, por um motivo simples. Ele tinha uma agenda com várias demandas,e o jornalismo era voltado essencialmente para entrevistas. Se você for pesquisar, vai ver que há muitos anos Ariano dava as mesmas entrevistas, com perguntas que se repetiam. Há, claro, exceções como um Geneton Moraes, que se prepara com extremo rigor para encontrar o entrevistado, sabe cada vírgula da vida da pessoa. A entrevista se torna uma descoberta, um encontro. Mas os jornalistas, regra geral, perguntavam sempre as mesmas coisas. Nossa profissão, de certa forma, precisa se reinventar.


Como era a rotina de trabalho com Ariano?

Era bem simples. Eu recebia semanalmente dezenas de pedidos de entrevista, depoimentos para documentários, imprimia e botava numa pasta. Quando tinha muita coisa, acertava com ele e despachava os pedidos. Ele lia e dizia o que aceitava. Depois, era ver a agenda dele e encaixar. A melhor hora era quando ele dava as entrevista e eu acompanhava. Ficava me coçando para perguntar algumas coisas.

Imagino que Dom Quixote seja uma referência para Ariano. É a obra literária que ele
mais admirava?


Dom Quixote era sempre citado, mas Tolstói e Dostoievsky sempre chegavam. Foi graças a ele que passei a ler Tolstói, especialmente “Guerra e Paz”, que ele já releu inúmeras vezes. Bastava comentar um capítulo, que ele lembrava de detalhes inacreditáveis.


Ariano tinha uma alma-sertão, mas era um sujeito que vivia nessa maluquice chamada
Recife. Como ele convivia com isso?


Ele era um homem absolutamente caseiro. Saía mais para viagens, que eram muitas.


Assim como ele construiu um sertão ao seu modo, inventanto personagens e narrativas maravilhosas, de que maneira ele se alimentava desta cidade conturbada de hoje? 

Desconfio que ele se alimentava mesmo era de suas origens mais remotas. Falo do Sertão.


Ariano sempre disse, em suas entrevistas, que não temia a morte. O que o assustava de verdade? Ele falava sobre os seus medos?

Não. Havia o mito de que ele tinha medo de avião, mas ele sentia era um profundo tédio. Numa das poucas viagens de avião que fizemos, para Petrolina, o avião sofreu uma queda repentina de altitude e fiquei apavorado. Quando olhei para trás, Ariano estava sossegado, como se nada estivesse acontecendo.


Após o infarto do ano passado e os recorrentes problemas de saúde, a relação dele com a morte mudou?

Creio que não. Ele falou algumas vezes, nas aulas, sobre o infarto e o aneurisma com o bom humor de sempre. Numa entrevista recente, ele disse que, se tivesse que morrer, queria morrer no palco. Não havia drama nenhum.


Você é um anotador compulsivo de frases. Imagino que, no seu caderninho, tenha um capítulo inteiro com frases de Ariano. Quais as melhores frases anotadas nesses últimos cinco anos?

São tantas frase maravilhosas que ele disse. Teria que pegar meus caderninhos, que não estão aqui comigo. Mas guardei a última frase de sua última aula. Ele disse o seguinte, após elogiar muito Gilson Santana, um bailarino negro que ele adora: “Eu falei aqui várias vezes da raça negra. A gente fala assim, estou  consciente, só por uma facilidade de comunicação. Eu tenho a absoluta consciência de que só existe uma raça no mundo, que é a raça humana”. Depois disso, o teatro mergulhou numa ovação completa, e terminou a aula.


Pela devoção com que produzia suas obras, penso que Ariano era um perfeccionista. A busca pela perfeição pode explicar os longos períodos para escrever seus livros? Ele até hoje mantinha o mesmo processo de produção?

Ele escrevia todos os dias, na parte da manhã. Era uma busca pela perfeição aliada a uma criatividade sem fim. Ele sempre tinha novas histórias para acrescentar ao seu livro.


Por falar nisso, como andava o Jumento sedutor? É verdade que o livro está pronto? 

Ultimamente ele tinha deixado de falar do livro, porque toda entrevista queriam saber se ele tinha terminado. Às vezes eu achava isso uma chatice, porque bastava os jornalistas terem feito uma breve pesquisa, para saber que aquele livro era um projeto de longo fôlego. Não acho que havia inquietude, mas uma vontade de sempre continuar, pelo prazer monumental que sentia no ato de escrever. Ele sempre dizia que a literatura era missão, vocação e festa.


Ele falava sobre outros projetos além do Jumento sedutor?

Não acredito. Era seu principal projeto, e acho que ele não se desviava um minuto dele.


O mestre, à distância, me parece um gozador de primeira linha. Um sujeito que faz piada até com a sombra, aquele humor ferino do nordestino. Ele era assim na convivência diária?

Ariano era um homem que gostava de rir, e fazer rir, mas nem de longe um contador de piada ambulante. Gostava da boa conversa, sobre temas os mais diversos. Na convivência diária, era de uma gentileza profunda, de uma humildade inimaginável. Mas uma coisa é a vida, outra um teatro e uma aula-espetáculo. Havia um lado silencioso dele profundo, que sempre era respeitado.


Você viajou com ele agora nessas últimas aulas-espetáculos. Como ele estava? 

Quando tinha aula-espetáculo em Pernambuco, em qualquer cidade, era meu dever de ofício acompanhar, colocar o programa atualizado em sua mesinha, ver se algum jornalista queria entrevistá-lo, enfim. A última aula foi dia 18 de julho, em Garanhuns, no Agreste de Pernambuco, num teatro lotado. Ele tinha vindo de uma aula no teatro Castro Alves, em Salvador, dois dias antes. Tinha sido ovacionado por 1.600 pessoas. Ele chegou a Garanhuns exultante. Deu uma aula maravilhosa, exuberante, que  durou mais de duas horas. Fez o público rir, recitou poemas e se emocionou em alguns momentos. Ao final, o público ovacionou longamente. Depois de tirar várias fotos, no camarim, foi para o carro. Estava com um sorriso de menino. Este sorriso é a imagem de um homem realizado, feliz, pleno. Ele veio ao mundo e realizou sua missão. Quantos de nós conseguimos isso? Quantos países são capazes de produzir um Ariano? É o que levo comigo, esta bênção de ter vivido isso tudo, que mais parece ter sido parte de um sonho que durou cinco anos – e que talvez não termine, até que minha memória esteja viva.