[Imagem de Rachel Goodyear]
Breve ensaio acerca
do formato da cabeça de Steve McQueen
1)
intro
the
king of cool exagera no álcool
e
abandona cerimônia em sua homenagem
caminhando
com os nós dos dedos
um
primata
na
lapela a alça do caixão de Bruce Lee
2)
horizonte lunar
cérebro
gradeado pelo tórax
no
capacete um coração em pulsações marinhas
pela
janela de um reformatório na Califórnia
a
lua na funilaria
3)
o chapéu da catedral
trigo
revolto pela música
dos
pegas de Bonnevilles 1960
ponto
da praia em que finais de ondas
distraem
os pés enquanto a areia os suga
só
então o desequilíbrio é mencionado
o
princípio do corpo descoberto na nuca
como
o que mal trazido à vida
é
posto contra a luz
4)
Paris-Dakar
publicar
a mais fiel biografia de um marinheiro
sua
cama amarrotada
promover
visitas monitoradas
a
cada lombada de ar e vinco
o
orgulho com que sobreviventes
a
quedas de raios exibem suas vestes
chamuscadas
5)
o azul específico de todas as coisas
barrado
no inferno
e
tarde demais pra pegar o paraíso aberto
diz
o dublê sob a fuselagem
e
o dia amanhece
no
azul de mil caçadas solitárias
6)
ao sul de um quintal qualquer/Paris-Dakar (cont.)
a
beleza de um deserto recauchutado
com
a lona que envolve plantas dos pés
o
tempo parado para Sam Peckinpah diante
da
profecia de rachaduras que cedem não às tentativas
mas
aos erros
7)
moda
charme
o
anúncio da flor delinquente
acesa
sobre um defeito físico
antes
que o reparem
embora
o tempo já não seja um ponto em questão
8)
túneis de melodia e mentira
dúvida
outonal e semiaberta
fornos
alimentados por trampolins e estalos hippies
um
tremor de terra nasce na espinha de Faye Dunaway
e
jamais será contido
9)
amianto
o
ator cínico e sujo
por
não resistir à purificação
agora
dorme
Manhã
Rimbaud
voltando pra casa
com
uma Síndrome de Estocolmo
adquirida
num banheiro público
Piva
observando garotinhos a caminho da aula
como
uma aranha cujo veneno esfriou pra sempre
Whitman
barbado e virgem
febril
numa cabana
Jack
Spicer bêbado e paralisado feito a lua
Carver
vestindo o seu único terno
pra
substituir o extintor do carro
mas
antes cospe um krill na boca de sua esposa
Sylvia
Plath cobrindo a cabeça com uma meia-calça fumê
porque
seus óculos escuros caíram no lago
e
sua boneca vodu quer passear no jardim
Bukowski
sentado à beira da cama
como
Bill Murray no cartaz de Lost in Translation
Emily
Dickinson pensando num sepultamento
com
raspas de chocolate e vagalumes
Corso
olhando pro Sucrilhos
preparado
com o óleo do cabelo de Ginsberg
Frank
O’Hara descolorindo os pelinhos das pernas
pra
exibi-las no MoMA
Haroldo
de Campos abrindo a porta do banheiro
e
gritando à sua mãe já acabei
rompe
o silêncio no céu dos poetas
Tennessee Williams em
uma de suas crises nervosas
levo
pra me levantar da cama
o
tempo que se leva
pra
se recuperar de um luto
meus
ossos de PVC
e
seus refrãos devidamente encomendados
a
nórdicos disc-jóqueis
o
quase jazz de copos de vidro
chocando-se
delicadamente
contra
mesas também de vidro
levo
pra me levantar do chão
o
tempo que se leva
pra
voltar atrás
e
com a língua empapada de terríveis domingos
esse
Paraguai na minha cabeça
saio
pra me drogar e fazer sexo nas docas
Meditação
andar
atrás de velhos lentos
não
ultrapassá-los
Hemingway
meu
avô me falando da tarde em que parou um touro
com
uma bíblia
sem
que os chifres perfurassem a capa negra
e
de um homem
no
exército
que
de tanto temer que descobrissem sua homossexualidade
a
cada manhã sua voz se tornava mais aguda
meu
avô chorando de dor
ao
tentar massagear o trecho da sua perna que havia ido
pro
lixo
meu
avô sorrindo ao lado de um par de muletas de segunda mão
e
me apontando uma prótese de plástico
como
se fosse um Westley Richards cano duplo
e
depois havia as terríveis noites
até
que sua mão
pastoral
pousava
sobre minha cabeça
a
um dialeto ventoso e de vogais nulas
por
anos de alcoolismo
aos
meus olhos fechados Deus sempre foi um índio
até
ontem
quando
sonhei que encontrava meu avô
e
dizia você não devia estar aí parado na calçada
porque
nós te enterramos
e
sorrindo ele refutava não filho
foi
exatamente o contrário
Hotel
máscara
de
louça
à
maçaneta
do
lado
socialista
de
um murro
salina
bengala
de
não se ir
pra
longe
raio
cercando
em
lentos giros
blocos
de ora
brancas
ora
azuis
esperas
Desjejum
acordo
notando que está frio
como
um filme do Wim Wenders
coloco
umas salsichas pra ferver
engulo
uma hóstia
que
não passa de um sabonete gasto
e
da janela
miro
a cabeça de um chinês
Sergio
Mello
nasceu em São Paulo, em 1977. É autor de No
Banheiro um Espelho Trincado (Ciência do Acidente, 2004) e Inimigo em Testamento (Soul Kitchen
Books, 2013). Além de poeta, é roteirista e dramaturgo. Em 2010 a Imprensa
Oficial publicou um coletânea de suas peças de teatro.