6 de agosto de 2015

Poemas recentes de Sergio Mello




[Imagem de Rachel Goodyear]


Breve ensaio acerca do formato da cabeça de Steve McQueen

1) intro

the king of cool exagera no álcool
e abandona cerimônia em sua homenagem
caminhando com os nós dos dedos
um primata
na lapela a alça do caixão de Bruce Lee

2) horizonte lunar

cérebro gradeado pelo tórax
no capacete um coração em pulsações marinhas
pela janela de um reformatório na Califórnia
a lua na funilaria

3) o chapéu da catedral

trigo revolto pela música
dos pegas de Bonnevilles 1960
ponto da praia em que finais de ondas
distraem os pés enquanto a areia os suga
só então o desequilíbrio é mencionado
o princípio do corpo descoberto na nuca
como o que mal trazido à vida
é posto contra a luz

4) Paris-Dakar

publicar a mais fiel biografia de um marinheiro
sua cama amarrotada
promover visitas monitoradas
a cada lombada de ar e vinco
o orgulho com que sobreviventes
a quedas de raios exibem suas vestes
chamuscadas

5) o azul específico de todas as coisas

barrado no inferno
e tarde demais pra pegar o paraíso aberto
diz o dublê sob a fuselagem
e o dia amanhece
no azul de mil caçadas solitárias

6) ao sul de um quintal qualquer/Paris-Dakar (cont.)

a beleza de um deserto recauchutado
com a lona que envolve plantas dos pés
o tempo parado para Sam Peckinpah diante
da profecia de rachaduras que cedem não às tentativas
mas aos erros

7) moda

charme
o anúncio da flor delinquente
acesa sobre um defeito físico
antes que o reparem
embora o tempo já não seja um ponto em questão

8) túneis de melodia e mentira

dúvida outonal e semiaberta
fornos alimentados por trampolins e estalos hippies
um tremor de terra nasce na espinha de Faye Dunaway
e jamais será contido

9) amianto

o ator cínico e sujo
por não resistir à purificação
agora dorme


Manhã

Rimbaud voltando pra casa
com uma Síndrome de Estocolmo
adquirida num banheiro público
Piva observando garotinhos a caminho da aula
como uma aranha cujo veneno esfriou pra sempre
Whitman barbado e virgem
febril numa cabana
Jack Spicer bêbado e paralisado feito a lua
Carver vestindo o seu único terno
pra substituir o extintor do carro
mas antes cospe um krill na boca de sua esposa
Sylvia Plath cobrindo a cabeça com uma meia-calça fumê
porque seus óculos escuros caíram no lago
e sua boneca vodu quer passear no jardim
Bukowski sentado à beira da cama
como Bill Murray no cartaz de Lost in Translation
Emily Dickinson pensando num sepultamento
com raspas de chocolate e vagalumes
Corso olhando pro Sucrilhos
preparado com o óleo do cabelo de Ginsberg
Frank O’Hara descolorindo os pelinhos das pernas
pra exibi-las no MoMA
Haroldo de Campos abrindo a porta do banheiro
e gritando à sua mãe já acabei
rompe o silêncio no céu dos poetas


Tennessee Williams em uma de suas crises nervosas

levo pra me levantar da cama
o tempo que se leva
pra se recuperar de um luto

meus ossos de PVC
e seus refrãos devidamente encomendados
a nórdicos disc-jóqueis
o quase jazz de copos de vidro
chocando-se
delicadamente
contra mesas também de vidro

levo pra me levantar do chão
o tempo que se leva
pra voltar atrás

e com a língua empapada de terríveis domingos
esse Paraguai na minha cabeça
saio pra me drogar e fazer sexo nas docas


Meditação

andar atrás de velhos lentos
não ultrapassá-los


Hemingway

meu avô me falando da tarde em que parou um touro
com uma bíblia
sem que os chifres perfurassem a capa negra
e de um homem
no exército
que de tanto temer que descobrissem sua homossexualidade
a cada manhã sua voz se tornava mais aguda

meu avô chorando de dor
ao tentar massagear o trecho da sua perna que havia ido
pro lixo
meu avô sorrindo ao lado de um par de muletas de segunda mão
e me apontando uma prótese de plástico
como se fosse um Westley Richards cano duplo

e depois havia as terríveis noites
até que sua mão
pastoral
pousava sobre minha cabeça
a um dialeto ventoso e de vogais nulas
por anos de alcoolismo

aos meus olhos fechados Deus sempre foi um índio
até ontem
quando sonhei que encontrava meu avô
e dizia você não devia estar aí parado na calçada
porque nós te enterramos

e sorrindo ele refutava não filho
foi exatamente o contrário


Hotel

máscara
de louça
à maçaneta
do lado
socialista
de um murro

salina bengala
de não se ir
pra longe

raio cercando
em lentos giros
blocos de ora
brancas
ora azuis
esperas


Desjejum

acordo notando que está frio
como um filme do Wim Wenders
coloco umas salsichas pra ferver
engulo uma hóstia
que não passa de um sabonete gasto
e da janela
miro a cabeça de um chinês


Sergio Mello nasceu em São Paulo, em 1977. É autor de No Banheiro um Espelho Trincado (Ciência do Acidente, 2004) e Inimigo em Testamento (Soul Kitchen Books, 2013). Além de poeta, é roteirista e dramaturgo. Em 2010 a Imprensa Oficial publicou um coletânea de suas peças de teatro.