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9 de agosto de 2014

Os Poemas apócrifos de Paul Valéry chegam às livrarias

Por Márcio-André.




Após seis anos sem publicar um livro, eis que chego com esse que considero o meu trabalho mais importante. Os poemas apócrifos de Paul Valéry me consumiram sete anos de dedicação quase diária. O resultado começa a chegar hoje às livrarias essa semana. Para marcar a chegada do livro preparamos um book trailer para o livro. Espero que gostem. Mais informações em breve.




Caso queira adquirir o livro pela internet, veja aqui onde comprar: http://goo.gl/mRVy7C





31 de julho de 2014

Ariano Suassuna por Samarone Lima


O jornalista e escritor Samarone Lima, assessor de imprensa do mestre Ariano Suassuna, o acompanhou durante os cinco últimos anos de vida. Em entrevista ao Correio Braziliense, relata o despojamento completo do autor paraibano e como ele conseguia transformar a vida de quem estava por perto. “Mesmo em silêncio, porque seus gestos sempre eram profundos”, lembra Samarone, que trabalha atualmente num livro sobre as aulas-espetáculos de Ariano. Sobre o Jumento sedutor, livro que Ariano estava escrevendo há mais de 30 anos, Samarone diz que, ultimamente, o escritor não tocava no assunto. “Ele tinha deixado de falar porque toda entrevista queriam saber se tinha terminado”.

Você é escritor, apaixonado por literatura, e teve a oportunidade de conviver com
Ariano Suassuna nos seus últimos cinco anos de vida. Imagino que as conversas sobre literatura e seus personagens eram frequentes. Que memória você guarda dessas conversas?


Eram conversas maravilhosas. Quando tinha alguns pedidos de entrevista eu
levava numa pastinha e resolvíamos com uma certa facilidade, já que ele não tinha
como atender tudo que pediam. Depois disso, bastava eu perguntar sobre o livro
que ele estava lendo, que seus olhos brilhavam. Era uma felicidade.


Ariano costumava conceder muitas entrevistas. Ele ainda tinha paciência para jornalistas? 

Era uma relação difícil, por um motivo simples. Ele tinha uma agenda com várias demandas,e o jornalismo era voltado essencialmente para entrevistas. Se você for pesquisar, vai ver que há muitos anos Ariano dava as mesmas entrevistas, com perguntas que se repetiam. Há, claro, exceções como um Geneton Moraes, que se prepara com extremo rigor para encontrar o entrevistado, sabe cada vírgula da vida da pessoa. A entrevista se torna uma descoberta, um encontro. Mas os jornalistas, regra geral, perguntavam sempre as mesmas coisas. Nossa profissão, de certa forma, precisa se reinventar.


Como era a rotina de trabalho com Ariano?

Era bem simples. Eu recebia semanalmente dezenas de pedidos de entrevista, depoimentos para documentários, imprimia e botava numa pasta. Quando tinha muita coisa, acertava com ele e despachava os pedidos. Ele lia e dizia o que aceitava. Depois, era ver a agenda dele e encaixar. A melhor hora era quando ele dava as entrevista e eu acompanhava. Ficava me coçando para perguntar algumas coisas.

Imagino que Dom Quixote seja uma referência para Ariano. É a obra literária que ele
mais admirava?


Dom Quixote era sempre citado, mas Tolstói e Dostoievsky sempre chegavam. Foi graças a ele que passei a ler Tolstói, especialmente “Guerra e Paz”, que ele já releu inúmeras vezes. Bastava comentar um capítulo, que ele lembrava de detalhes inacreditáveis.


Ariano tinha uma alma-sertão, mas era um sujeito que vivia nessa maluquice chamada
Recife. Como ele convivia com isso?


Ele era um homem absolutamente caseiro. Saía mais para viagens, que eram muitas.


Assim como ele construiu um sertão ao seu modo, inventanto personagens e narrativas maravilhosas, de que maneira ele se alimentava desta cidade conturbada de hoje? 

Desconfio que ele se alimentava mesmo era de suas origens mais remotas. Falo do Sertão.


Ariano sempre disse, em suas entrevistas, que não temia a morte. O que o assustava de verdade? Ele falava sobre os seus medos?

Não. Havia o mito de que ele tinha medo de avião, mas ele sentia era um profundo tédio. Numa das poucas viagens de avião que fizemos, para Petrolina, o avião sofreu uma queda repentina de altitude e fiquei apavorado. Quando olhei para trás, Ariano estava sossegado, como se nada estivesse acontecendo.


Após o infarto do ano passado e os recorrentes problemas de saúde, a relação dele com a morte mudou?

Creio que não. Ele falou algumas vezes, nas aulas, sobre o infarto e o aneurisma com o bom humor de sempre. Numa entrevista recente, ele disse que, se tivesse que morrer, queria morrer no palco. Não havia drama nenhum.


Você é um anotador compulsivo de frases. Imagino que, no seu caderninho, tenha um capítulo inteiro com frases de Ariano. Quais as melhores frases anotadas nesses últimos cinco anos?

São tantas frase maravilhosas que ele disse. Teria que pegar meus caderninhos, que não estão aqui comigo. Mas guardei a última frase de sua última aula. Ele disse o seguinte, após elogiar muito Gilson Santana, um bailarino negro que ele adora: “Eu falei aqui várias vezes da raça negra. A gente fala assim, estou  consciente, só por uma facilidade de comunicação. Eu tenho a absoluta consciência de que só existe uma raça no mundo, que é a raça humana”. Depois disso, o teatro mergulhou numa ovação completa, e terminou a aula.


Pela devoção com que produzia suas obras, penso que Ariano era um perfeccionista. A busca pela perfeição pode explicar os longos períodos para escrever seus livros? Ele até hoje mantinha o mesmo processo de produção?

Ele escrevia todos os dias, na parte da manhã. Era uma busca pela perfeição aliada a uma criatividade sem fim. Ele sempre tinha novas histórias para acrescentar ao seu livro.


Por falar nisso, como andava o Jumento sedutor? É verdade que o livro está pronto? 

Ultimamente ele tinha deixado de falar do livro, porque toda entrevista queriam saber se ele tinha terminado. Às vezes eu achava isso uma chatice, porque bastava os jornalistas terem feito uma breve pesquisa, para saber que aquele livro era um projeto de longo fôlego. Não acho que havia inquietude, mas uma vontade de sempre continuar, pelo prazer monumental que sentia no ato de escrever. Ele sempre dizia que a literatura era missão, vocação e festa.


Ele falava sobre outros projetos além do Jumento sedutor?

Não acredito. Era seu principal projeto, e acho que ele não se desviava um minuto dele.


O mestre, à distância, me parece um gozador de primeira linha. Um sujeito que faz piada até com a sombra, aquele humor ferino do nordestino. Ele era assim na convivência diária?

Ariano era um homem que gostava de rir, e fazer rir, mas nem de longe um contador de piada ambulante. Gostava da boa conversa, sobre temas os mais diversos. Na convivência diária, era de uma gentileza profunda, de uma humildade inimaginável. Mas uma coisa é a vida, outra um teatro e uma aula-espetáculo. Havia um lado silencioso dele profundo, que sempre era respeitado.


Você viajou com ele agora nessas últimas aulas-espetáculos. Como ele estava? 

Quando tinha aula-espetáculo em Pernambuco, em qualquer cidade, era meu dever de ofício acompanhar, colocar o programa atualizado em sua mesinha, ver se algum jornalista queria entrevistá-lo, enfim. A última aula foi dia 18 de julho, em Garanhuns, no Agreste de Pernambuco, num teatro lotado. Ele tinha vindo de uma aula no teatro Castro Alves, em Salvador, dois dias antes. Tinha sido ovacionado por 1.600 pessoas. Ele chegou a Garanhuns exultante. Deu uma aula maravilhosa, exuberante, que  durou mais de duas horas. Fez o público rir, recitou poemas e se emocionou em alguns momentos. Ao final, o público ovacionou longamente. Depois de tirar várias fotos, no camarim, foi para o carro. Estava com um sorriso de menino. Este sorriso é a imagem de um homem realizado, feliz, pleno. Ele veio ao mundo e realizou sua missão. Quantos de nós conseguimos isso? Quantos países são capazes de produzir um Ariano? É o que levo comigo, esta bênção de ter vivido isso tudo, que mais parece ter sido parte de um sonho que durou cinco anos – e que talvez não termine, até que minha memória esteja viva.

24 de julho de 2014

Quatro poemas do poeta galego Mário Regueira



Mario Regueira é um dos mais destacados escritores galegos da atualidade. Nasceu em 1979, em Ferrol. Diplomado em Direito, abandonou a profissãopara dedicar-se a literatura, licenciouse em letras galega anos depois. É doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade de Compostela. Tem se destacado como prosador com os livros "Rebelión no inverno", de 2004, "L'affiche rouge", de 2007 e "Outono aquí", que recebeu o prêmio Lueiro Rey em 2011, e também como poeta: seu livro "Tanxerina", ganhou o prêmio Pérez Parallé 2005, e "Blues da Crecente", o Premio Xohán Carballeira 2009. Ocasionalmente escreve críticas, artigos de opinião e blogues.

Publicamos os poemas originais, em galego, sem adaptação ao português do Brasil.


HOMENAXE A HÉLÈNE RYTMANN

Ninguén sabía a verdade, por iso a esculca, a delimitación precisa.
Cada liña de Marx anunciaba un mundo novo, aínda que
as túas epifanías
pasaban antes pola forza das trincheiras,
o disimulo da saia longa fronte ao gris dos uniformes,
ou o do estilete súbito arrefriando as pernas.
Para quen sobreviviu aos progroms do zar a esperanza sempre ten a forma
dunha baioneta escachando a xeada da mañá,
e o pintor de tapices semella
un meniño abandonado na espantosa brancura dos sanatorios.

Esquivamos a morte dezanove veces,
sen saber que viviamos na súa casa,
e o comedor estaba sempre cheo de homes graves
que nos asaltaban polo corredor:

“Ti non es racional Hélène,
fas a revolución porque algunha paixón de clase
che oprime o fondo do útero, e queres ser nai, ser loba,
turbillón que tanto acariña como asalta”.

“Ti non es Hélène, es outra cousa,
que aínda estamos decidindo”.

Non foron as súas maos, era a conclusión,
agora que non somos suxeitos e a burguesía católica
asasina na intimidade do fogar, estruturada,
obediente, autoconclusiva,
terribelmente coherente.
(Das Kapital en tapas de coiro,
espantado sobre o primeiro andel).

Serás a nosa razón Hélène, a nosa prisioneira torturada como tantas
no son repetitivo dos epitalamios,
nas sabas de liño dos barrios altos.

E dormes na anaina brutal da batería de Art Taylor,
mentres a Europa dos 99 luftballons se ergue
paseniño
nalgún lugar terríbel das chairas.


ALAN TURING

Claro que merecías algo mellor.
Esta luz, por exemplo.
A loita que non cesa e que nos mantén
vivos e atléticos, imparábeis, extenuados,
en constante progresión cara á vitoria final.

A maxia dos números, mazás en pleno inverno,
cuartos escuros e a teoría do caos, bolboreta, area aleatoria
sobre o peito espido, cordas e un outro mundo
con leves variacións, respiración diaria, amor medrando
como caramuxas na secuencia de Fibonacci,
até un final pausado e calmo.

A lembranza inapagábel da Kriegsmarine afundido, bombas de palenque cada ano,
e ser coroado señor dos mares. As tripas do reloxo de deus, todos os enigmas
abertos coma rosas abrochando. Deus e os seus ministros atados de mans
no lugar máis escuro da galaxia. Algo mellor.

KCN
(Aproximadamente a metade da poboación é capaz de percibir o cheiro dun envelenamento por cianuro nos restos do cadáver. Un aroma inconfundíbel a a améndoas amargas que porén pasa completamente desapercibido para o resto das persoas, como se a sensibilidade fose unha cuestión xenética, ou un don maldito).

O inimigo (Fe7C18N18) nunca foi derrotado, vivía no medio de nós, latía dende as vellas pedras e alí criaba os seus ataques na humidade do chan. Caeu a súa cabeza e a espada pasou de man en man como só debera facelo a vida. A pantomima de deus baixa o pano, e seguimos envisgados de azul até o fígado. A agulla sobre a pel castigada coa que as bestas queren (de novo) que sexamos máis homes.

Repasaremos o oco que deixaron os teus dentes na mazá. A maxia das preguntas sen resposta. Contendo o alento,

porque todos quixemos algunha vez
deter os alemáns,

morrer como princesas.


HYDE PARK

Sen dúbida hai un resto de toda esa animalidade. Sempre nos amamos nas cidades en guerra.
(Cando se buscan superviventes entre as pedras e aparecen
parellas copulando
e nunca tan aferradas como no momento
no que a pequena morte se agranda para sempre. Hai quen di
baixando o ton como un baltrón novo no terreo
que iso tamén é supervivencia). Pensamos que nos quitarán todo salvo o amor,
e que as manchas de seme na última planicie arrasada
simbolizan o pulso biolóxico, a vida sempre atopa camiños e como a vitoria prometida,
nunca para.

O noso amor xerminará nas pedras, e no ventre fendido dos mísiles.

Ti xa sabes que atopei outro xeito de amar. Que teño noxo dos mamíferos pequenos
e que os alemáns, dende o ceo, só defendían unha grande familia,
a conquista de terreo para novas enxurradas de máis sangue,
e máis esperma, e grandes momentos de camaradería e irmandamento.
Nunca pasará a túa semente pola miña pel. Nunca enxendraremos
nada máis que os froitos esmagados contra os muros da vida.

Os meniños atopados entre o cascallo, a nosa orfandade repetida nun prisma multicolor.
Soidades unidas nun monllo de continuidade e pranto.

E saber que cando me amabas
baixo o ceo queimado de Hyde Park, nin sequera entón
cando aínda eramos soamente dous,
e os paxaros fuxían ao azoute dos xemidos
e as bombas bailaban o seu abrazo ao noso redor,
nin sequera entón
coa morte en sorriso e as patrullas de salvamento
berrando
e meniños entre prantos, a afogar baixo pedras, tixolos,
móbeis rachados,
nacendo do noso amor, que non xerminará nunca,
pero que xorde tamén do medio dos tempos mordidos do conflito,
nin sequera entón,
non meu amor, tampouco alí.
CINCO
Five balls! Five bright brass balls!
To juggle with, my love, when the sky falls.

Sylvia Plath

Para min naciches cando aínda se podían atravesar pontes,
cun libro baixo o brazo e unha promesa nos dentes.
O meu cerco é tan estreito e hai tantas fronteiras que non ves:
o roce da pel, os lugares comúns da conversa, a liña de encaixe
que me delimita como unha pequena nación apetecíbel.
Esa que serve como carta de troco, ou provocación consentida,
esa á que se lle supoñen faccións que desexan ser tomadas ao asalto,
e que recibirán ao inimigo erguendo bandeiras cheas dun gozo culpábel.

O xogo imposto de ser algo distinto do que ti es. A miña cultura,
feita de potas, roupa lavada e tenrura.
A túa cultura, que se resume na única palabra guerra.
E no nome desta os comboios, os corpos amoreados,
a miña imaxe relicario pegada ao teu peito.
A túa cabeza ten dous soños. Un chámase Stalingrado,
o outro suma diminutivos ao nome que escolleu meu pai.
Os dous están feitos de ruínas. Nas rúas dos dous
combátese até o último home, (até a última muller).

Os dentes e as promesas rompen dun xeito similar.
Pingan polas comisuras que as conteñen.
Din que debo laiarme contra a túa marcha ou contra o conflito,
volver ao vello camiño común das cantareiras medievais.
Ser troiana ou penélope, calquera papel tramado no albor deste tempo.

Pero só podo pensar no disfrace de campesiña da camarada Pavlichenko,
no ferro ucraíno do seu pulso, nos seus centos de puntos vermellos.
Tan sutil como nunca foi a paixón,
eu querería que o último rebentase sobre a túa fronte espida.

Déronche cinco balas de canón brillantes, para xogar a ser deus.
Cinco balas, meu amor, para lanzar contra o ceo do Leste,
e esnaquizar Troia dunha vez por todas.
E vas xogar con elas como un neno fermoso.
Até que o ceo se derrube sobre ti.

E ogallá morras sen ver as pontes que chegan aos peiraos.
E nunca máis circundes coas túas cadeas
(Saxonia ou Conventry)
a miña prisión de séculos.

12 de julho de 2014

Poema de L. K. Holt



REVOLTA
traduzido por Daniela Neves

1.

O início é 
o mais longe

o mais selvagem 
domínio do fim.

Minhas lágrimas são
a minha comida.

Por que és tão pesada, alma minha,
Agitando-se em rolamentos interiores?

Chamados profundos às profundezas do mar.
A tempestade massiva derrama saliva sobre mim.

Por que não se pode acalmar
alma minha?

Mesmo sem fé
há sempre um cenário melhor.




2. 


Dia e noite choro
ao pé dos seus ouvidos.

Sou como aqueles com a morte por vir.
Repouso ao meu lado, em meus joelhos

remoendo a terra.
Seus terrores sofro desde jovem

em cada criado-mudo anoitecendo no quarto,
em cada gota de olhos escuros,

em cada xícara quente bebida 
o coração desponta,

a cada soneto se encolhe a cabeça
enrolada ao pescoço.

O medo me ronda dia-a-dia,
maré-cheia sem lua, a cada lado.




3.


Perguntei à pedra: quem está satisfeito,
por que vou com tanto peso,

por que os ossos se arrastam?
Após a pequena gentileza de luz

devo cantar pela estação da noite?
Sou co-participante.

Adúltera. Facilitadora.
Cão-de-guarda asfixiador.

Assisto agora os pássaros
para não ver a mim.

Quando o pássaro que rogo
lança vôo

respiro fundo – uma só vez:
devemos punir a vida que segue adiante.




4.


Escute-me. Não esconda sua face
que oculta sua cabeça horrível.

Todas as minhas visões são metades.
A galhada aparente de um cervo escondido;

rastro fresco de um raposa em fuga
cheia de pêlos e ossos, estática como os bonecos de vudu...

Apenas para ter a visão nítida
do amor.

Meus inimigos desafiam meus dentes
em minha língua, e zombam de mim

pois onde está agora o seu Amante?
Onde está ele?

Há coisas que nunca vi
e são minhas. São minhas para dar.




5.


O abismo é uma onda na rocha
que aguarda. Acostado no topo

está um filhote de albatroz, que acompanha
os passos da mãe à primeira luz do dia.

Não se move, nem pisca, adágio
até vir à frente o crepúsculo.

Você me deixa assim sobre essa rocha
e ordena que eu permaneça.

Meu coração um navio cargueiro
estacionado na superfície,

marítima pele negra reluzindo
na luz interior.

Firme o pulsar do coração prometido:
um batimento mutilador, outro paciente.

26 de junho de 2014

Obrigado, Senhor!

Por Márcio-André



Vídeo dedicado a Fabiane Maria de Jesus, que há um mês foi torturada e assassinada publicamente por uma nação insandecida, mergulhada nos extremos, desejosa da vingança como didática, que coloca os antagonismos partidários antes da vida humana.



Acreditamos durante muito tempo que a maior festa brasileira seria o carnaval. Também pensamos que poderia ser o futebol. Hoje sabemos que não. Chegamos a clareza de compreender que a maior festa brasileira é o linchamento. O episódio da mulher imolada no Guarujá por outros tão pobres quanto ela, inspirados pela mídia representante da classe média defensora do justicismo como correção social, nos trouxe essa revelação. Não foi a polícia arrastando favelados, não foram bandidos arrastando filhos da classe média, não foi a classe média financiando o extermínio. É no linchamento que vemos, reunidos em um mesmo espetáculo, sem qualquer hierarquia ou distinção, homens e mulheres, brancos e negros, pobres e ricos, favelados e classe média, polícia e bandido, culpados e inocentes, exploradores e explorados, "trabalhadores" e "vagabundos", militares e civis, ignorantes e cultos, reacionários e libertários, conservadores e liberais, mídia e espectadores, religiosos e ateus, crentes e "do mundo", cidadãos do bem e cidadãos do mal etc. Todos em comunhão, vibração e dança. Como em toda dança, não há heróis ou vilões, apenas a anulação das dicotomias para que a festa se dê no tempo e no espaço. O lichamento é o maior legado que nossa geração deixará às vindouras. Basta agora fundarmos o feriado nacional para o linchamento nosso de cada dia, só para a coisa ficar mais civilizada. Que venha a purga e que nos faça, a todos, irmãos.

8 de maio de 2014

Poema inédito de Arjen Duinker

Tradução de Arie Pos




Nascido em Delft, em 1956,  Arjen Duinker é considerado um dos mais relevantes poetas holandeses contemporâneos. Formado em filosofia e psicologia, publicou, além de um romance, onze volumes de poesia. Em 2001, recebeu o Prêmio Jan Campert pelo livro De geschiedenis van een opsomming (A história de uma enumeração, 2000). A coleção De Zon en de Wereld (O sol e o mundo) ganhou o Prêmio de Poesia VSB 2005 e foi publicado em tradução inglesa na Austrália. A obra de Duinker está traduzida em várias línguas, tendo também constado em várias compilações na França, Portugal, Itália, Irã, Rússia, Reino Unido, China, Finlândia, Croácia e México.


Sailor’s Home
Arjen Duinker
Tradução de Arie Pos


1

O apelo das ondas, vermelho.
Uma flor deslizando por um declive
Doa o seu perfume a uma escarpa
Silenciosa, livre no céu.

O orgulho das ondas, negro.
Os olhos roubam o inesperado
Que com pequenas folhas alivia
Os vergões na pele.


2

As pestanas quebram o desejo.
Os motores esmagam o desejo.

Cadência nos lábios, cadência no sangue!
Vento, espalha o cascalho em todas as direcções, vento!

Que a escuridão cintile, e seja noite em pleno dia!
Cadência nos dedos, cadência no cabelo!

Os motores, arfando, saboreiam o óleo.
As pestanas vêem o óleo num leque.


3

Cristas fustigantes e bicos estridentes...
Extremidades de palavras em fumo espesso...
O navio oculta os caminhos pelo idioma,
Faz riscos ao contrário no espelho,
O coração do mar cresce e torna a crescer...

Onde a flor mostra a sua beleza,
As gotas salgadas de orvalho evaporam-se num sussurro
De borboleta e ar.


4

Tremura com cauda
No dorso, olhos
Vêem dois lábios.

Onde a flor mostra a sua beleza...

Cintila o navio entre escamas desmedidas,
Serpenteia o navio para o seu destino em turbilhão,
Serpenteia o abismo em volta de seios delirantes,
Cintila o abismo como coração que estremece.


5

De repente, os elementos soltam as entranhas.
Relâmpagos formidáveis marcam a rota para o porto.
O cheiro de cabelos soltos é inelutável e fabuloso.
O navio avança ao encontro da cisão de realidades,
Navega através de factos insonoros e factos ruidosos.
Todos os factos se reúnem aqui para escolher palavras,
Todas as palavras se juntam para fazer sonhos,
Tão bem que o bater das velas deixa de existir.


6

Mesmo antes da prancha, os pés,
De calos salgados, andam calçados no cais.
Um órgão canta intenções para as gaivotas
Com o seu traje resplandecente de restos de comida.
Mesmo antes da prancha, o coração bombeia
Uma certeza extrema pelo ventre.

O espelho encanta a agulha da bússola!

Tonto de sonhos na bruma da Nova Caledónia,
Com mãos que lavam a dor de umas costas tailandesas,
Lúcido de sonhos no equilíbrio de Espanha.
Dedos girando nos topos do seu centro,
Palmeiras abanando rente a uma sobrancelha,
Ratos dançando na cavidade do pescoço.


7

Calças com camisa de botões assobiando.
A ondulação transparente nas pedras ao vento.
Uma mulher seca os pulsos e os braços.
Que sonho enxuga as lágrimas de uma nuvem?
A comunidade de palavras é um turbilhão
Que vive nas entranhas, e na boca.

Agulha de bússola encanta espelho...

Enquanto os lábios não precisam da boca,
Enquanto a língua faz aproximar estrelas cheias
Para explicar como o desejo é cruel
A pálpebra, omoplata, pergunta, possibilidade,
Enquanto os lábios saboreiam uma laranja,
Enquanto a língua se bifurca ardentemente.


8

Caro Lian, querido amigo, Lian, em frente do Sailor’s Home
Está um homem alto e louro que diz a um outro:
Em Copenhaga, numa cave nojenta? Aí aloja-se a máfia.
E eu vejo a minha vida condicionada pela minha cabeça cara.
O que eu não percebo, diz o outro, é como tu,
Com o teu intelecto, pescas tão pouco de processos sociais.
Isto é yin e yang, diz o alto, dar o mal e receber o bem.
Nada disso, diz o outro, tens mas é de agir normalmente.

Passa um carro, abre-se a porta,
O corredor é elegante, o refeitório fica à esquerda,
Escadas sobem em ângulo para o piso seguinte,
Abre-se uma porta: o jogo de dominós,
Os olhos rebrilham, com champanhe.
Lian, estivemos em Génova, contei quatrocentas ruas.
Aqui, em Gante, perdi dedos, importa apenas esta doca brilhante.
Onde a flor mostra a sua beleza, o marinheiro está em forma.
Olha, bolhas que saltam de pés que tremem para tornozelos que perguntam,
Olha, bolhas que beijam o fundo entre o número certo de olhos.


9

As palavras nas metades da língua
Tornam-se mais autónomas e mais independentes!
Começam a gritar coisas uma para a outra,
Ambiciosas debaixo de um céu infinito!
Fazem o seu melhor, chocantes e transparentes,
Para destilar estrelas de saliva!

O saco junto à janela.
Os sapatos junto à janela.
Os cigarros junto à janela.
O colar sobre a cama.

Agora, as palavras já não pertencem à língua,
Mas a língua é propriedade das palavras,
Ondas enfeitadas que afagam tornozelos.
Os dedos dos pés soltam-se do chão,
É uma adoração no fundo que sentem os dedos dos pés,
Os dedos dos pés espalham um pó negro avermelhado,
Deslizam suavemente pelo ar os dedos dos pés,
Os dedos dos pés mostram-se numa nuvem.


10

Onde a flor mostra a sua beleza,
O desejo solta-se do depois,
Há nomes pendurados em dois cachos de oito,
Uma unha grava o horizonte na pele.

Onde a flor mostra a sua beleza,
Dedos transformam-se em aqui e aqui e aqui,
Mãos agarram véus de cabelo,
Cores respiram infinitamente o infinito.

Onde a flor mostra a sua beleza,
Insectos zunem em luz ininteligível,
Olhos atravessam o ventre atordoado,
O braço inferior cheira sonhos esquecidos.

Onde a flor mostra a sua beleza,
A consoante inspira a vogal.

Onde a flor mostra a sua beleza,
Borboletas tomam o sal do mar.

Onde a flor mostra a sua beleza,
O tempo esmalta tatuagens em pequenas folhas.